Realidade ignorada

Por Herminio Miranda

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Vivemos uma época de perplexidade e, por conseguinte, de transição. Dependerá de nós, criaturas deste século, se o futuro trará no seu bojo a tão sonhada e adiada felicidade coletiva ou se continuaremos a tatear na escuridão dos descaminhos.

Se estamos insatisfeitos com os modelos civilizadores até agora experimentados, é porque ansiamos por propostas e, obviamente, soluções mais inteligentes, menos traumáticas e tão definitivas quanto o permite a mutabilidade da própria vida.

Um exame retrospectivo, mesmo superficial, mas honesto, informa que ainda estamos tentando corrigir disfunções do processo civilizador trabalhando mais com as instituições do que com o ser humano que nelas se integra. Insistem pensadores, filósofos, sociólogos, governantes e líderes de toda espécie em traçar programas estruturais destinados, teoricamente, a melhorar a condição humana, mas – novo paradoxo! – ignorando o principal componente da equação da vida, ou seja, o ser humano, por mais que a demagogia ou a incúria estejam a trombetear que é tudo imaginado em proveito da sociedade. Não é. Nossos desacertos são gerados, antes de qualquer outra consideração, por problemas humanos. Mas como equacioná-los corretamente e gerir com um mínimo de competência os esquemas propostos, se ainda não acrescentamos às fórmulas ditas salvadoras o indispensável ingrediente da realidade espiritual?

As leis, os decretos, os códigos jurídicos, os programas sociais, os planos econômicos, as disciplinas científicas, os sistemas políticos não estão ainda informados de que somos todos espíritos imortais, sobreviventes e reencarnantes, responsáveis perante a lei maior que regula o cosmos que as criaturas que o povoam.

Os aflitivos atritos entre árabes e judeus, por exemplo, se deslocariam prontamente para outra perspectiva se uns e outros se tornassem conscientes de que o árabe de hoje pode ter sido o judeu de ontem, em vidas anteriores, ou vir a ser o de amanhã, em vidas subsequentes.

Aquele que busca o enriquecimento a qualquer custo social ou ético precisa saber que estará sujeito a severo ajuste perante as leis divinas quando retornar ao mundo, em existência de privações e carências. A crescente preocupação com as condições ecológicas constitui evidência do desconforto que estão experimentando as novas gerações de encontrarem aviltado, a caminho de total destruição, aquele mundo em que viveram há umas poucas gerações, limpo e harmonioso no funcionamento de seus mecanismos de equilíbrio ambiental. Ainda trazem aqueles, na memória inconsciente, lembrança de um mundo no qual se podia beber a água cristalina dos rios, ouvir o canto dos pássaros, saborear a fruta e o legume sem tóxicos, respirar o ar incontaminado, contemplar o céu despoluído, caminhar sobre as paisagens sem as feias cicatrizes das minerações mutiladoras.

“Après moi, le déluge” (“Depois de mim, o dilúvio”), teria dito um soberano francês, num impulso arrogante de que-me-importismo egoísta. É difícil imaginar onde e como estaria hoje esse pobre espírito, mas não resta dúvida de que armou contra si mesmo o mecanismo infalível da correção, dado que todos os nossos atos e até pensamentos constituem atitudes responsáveis, pelas quais temos de responder de alguma forma, algum dia, em algum ponto do universo. 

Não há, pois, fórmulas mágicas nem modelos competentes para equacionamento e solução das assustadoras crises sociais, políticas, econômicas e religiosas que marcaram, com a sua presença, a tônica deste final de século. Os desajustes são profundos, antigos e resistentes. Não se resolvem no âmbito acanhado das leis humanas, nem com lideranças desinformadas da realidade espiritual. Enquanto esse componente básico e vital não for incorporado às estruturas do pensamento, seremos todos reféns da insatisfação em vez de hóspedes da felicidade. 

Curioso, contudo, que, por mais dramáticas que sejam as consequências e amplitudes desse conceito revolucionário, ele começa com a singela e tão ignorada verdade de que o ser humano é, antes e acima de tudo, um espírito imortal.

Do livro A reinvenção da morte, Herminio C. Miranda, Lachatre,1997.