Olhar para dentro. Mexer com as estruturas

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Por Paula Guimarães*

O cantor e compositor Regis Danese foi extremamente inspirado quando escreveu a música Faz um milagre em mim. E é com sua primeira estrofe que gostaria de começar este texto-reflexão:

“Entra na minha casa. Entra na minha vida. Mexe com minha estrutura. Sara todas as minhas feridas. Me ensina a ter santidade. Quero amar somente a ti. Porque o Senhor é meu bem maior. Faz um milagre em mim.”

Gosto muito de pensar que a casa a que a música se refere somos nós seres humanos, a casa de nossas consciências, nosso mundo íntimo tão peculiar e particular, tão delicado e sensível, tão imperscrutável e misterioso ainda para nós, contudo, que, no correr das reencarnações, deve ser visitado, observado, pensado e desnudo para que possamos de fato corrigir nossas arestas e fazer escolhas melhores, que não comprometam nossos passos nem nossa felicidade futura. 

Vida externa e sedutora

E, movida por esta analogia, me deparei com um post de Marlon Reikdal, psicólogo e palestrante espírita, em rede social. Marlon postou uma foto de uma casa rústica como quem olha de dentro para fora e vê um céu azul límpido, onde fulgura plena uma lua cheia, com a legenda – intrigante e provocativa: “(...) É uma pandemia, ou seja, o mundo está doente... Nós estamos doentes e precisamos nos curar dessa vida tão pra fora que construímos! (...) Nesses dias tão eufóricos que estávamos vivendo, aproveitar o tempo em casa para enxergar, sentir e viver novas experiências pode facilitar a transformação que precisamos viver para nos curarmos dessa pandemia.”  

Veja que Marlon fala da vida pra fora, externa e sedutora, com voz melíflua de sereia que canta e encanta e amortece os sentidos e, supostamente, cura as dores, sendo que, na verdade, nos afasta da real cura que está em olharmos para dentro sem tanta euforia, qual rojão que explode no céu deixando múltiplo em cores, porém cores tão passageiras que se dispersam ao vento, que as dilui diante de nossos olhos. 

A coragem para Drummond

É preciso centrar para que possamos olhar para dentro de nós, de maneira encorajada, como escreveu Drummond, no poema “Ano Novo”: “Tente, experimente, consciente”. Isto mesmo. Olhar para dentro é uma tentativa ora frustrada ora exitosa, ora infeliz ora radiante, e em todas elas reside a necessidade, pois que vamos nos aprofundando e nos descobrindo verdadeiramente para que possamos organizar nossa casa, retirando os excessos de pensamentos deletérios e modelos mentais, encrustados em nós, como as crenças que nos salvam, mas nos limitam e nos enclausuram em muitas outras, impossibilitando que nossos passos de progresso sejam largos. 

Se nestes tempos em isolamento já tivemos  inúmeros ‘surtos’, é porque fugimos desta ‘reforma’ obrigatória a todo espírito em evolução: surto de masterchef, cozinhar o que nunca vimos como possibilidade; limpar tudo que podíamos, testando produtos antivirais; ler os livros que nos prometemos há anos; nos matricularmos em cursos e formações online para preencher nossas agendas vazias da produtividade, antiga e velha conhecida. 

Eis provas contumazes da fuga, fuga da introspecção que nos devassa, nos liberta; mas  que requer coragem, filha da fé, segundo Joanna de Ângelis. Coragem para vivermos plenamente, como diz o psiquiatra Roberto Assagioli, onde é preciso experimentar e aceitar tanto a luz quanto a escuridão, tanto a alegria quanto a tristeza e a dor. 

O receio do desconhecido

E, nesses dias de olhar para dentro de casa, possivelmente tivemos medo do que iríamos encontrar nos nossos cantos e recônditos e ainda fugimos para o fazer externo, até encontrarmos boa dose de coragem e nos olharmos nos ‘olhos da alma’ para aninhá-la com carinho e lhe dizer que esta jornada não fazemos sozinhos, mas com Jesus. Somente ele, através de seus exemplos, pode nos auxiliar a mexer em nossas estruturas tão sedimentadas em vidas pretéritas e curar nossas feridas tão antigas quanto estes pilares necessários e urgentes de serem movidos, para que se possa fazer sua luz entrar e em nós residir para que possamos ter, um dia, sua ‘santidade’. 

Afinal, esta é nossa jornada, do átomo ao arcanjo, conforme nos assegura a questão 540 de O livro dos espíritos, de unicelulares a espíritos angelicais, em suas escolhas mais nobres e excelsas, daqueles que venceram a si mesmos. 

O olhar para dentro

Não é sem motivo que o psiquiatra e psicoterapeuta Carl Jung escreveu que “quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro, desperta.” Desperta porque, nesta busca íntima, se depara com o que é imprescindível mudar em si para que não volte aos erros tão conhecidos, mas, de modo antecipado e precavido, os evite, uma vez que conseguiu identificar seu padrão de comportamento diante dos fatos, não mais reagindo instintivamente, mas desperto diante dos convites experienciais de Deus para seu acordar do sono cataléptico, como de Lázaro. 

Sim, sabemos que nossos espíritos protetores e amigos não invadem nossas consciências nem abrem nosso véu de memórias para que façamos uma evolução a fórceps; contudo, se não escolhermos por nossos próprios passos, o progresso se dará à nossa revelia, enquanto podemos ser dele seu contribuinte, não apenas um anteparo que este leva de roldão. É o que nos assegura inconteste O livro dos espíritos, na questão 783:  “Segue sempre marcha progressiva e lenta o aperfeiçoamento da Humanidade? R. Há o progresso regular e lento, que resulta da força das coisas. Quando, porém, um povo não progride tão depressa quanto deveria, Deus o sujeita, de tempos a tempos, a um abalo físico ou moral que o transforma.”

O despertar 

Sobre isso, o poeta Carlos Drummond, em seu poema,  traz uma reflexão:

“Para você ganhar belíssimo Ano Novo, cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,

(...) para você ganhar um ano, não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;

Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta. (...)

Não precisa chorar arrependido pelas besteiras consumadas nem parvamente acreditar que por decreto de esperança a partir de janeiro as coisas mudem e seja tudo claridade, recompensa, justiça entre os homens e as nações, liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, direitos respeitados, começando pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.”

Enfim, o novo

O nosso ano novo começa com o plantio de sementes do vir-a-ser, do homem novo que seremos um dia e, para isso, a lista amarelecida nas gavetas dos muitos 31 de dezembro de anos incontáveis se faz inútil, tanto quanto o olhar para o passado do que não se realizou; tão pouco o olhar para o futuro infantil e ilusório. Apenas o que nos conduzirá a esta sólida construção é nosso merecimento, que nasce dentro de nós próprios e está à nossa espera desde que fomos criados por Deus e, como centelha divina que é, nos impulsiona para nosso , o vir-a-ser,  o homem real e novo. Para todo este jornadear, o início dormita no conhece-te a ti mesmo, tão convidativo de nossos mentores e, para nós, ainda tão agigantado que nos parece apequenar diante de tamanha empreitada. 

*Oradora espírita, Paula Guimarães é coach e professora da Fundação Getúlio Vargas, nas áreas de comunicação e gestão de pessoas.