Por trás do ‘cancelamento’ nas redes sociais
Por David Monducci*
Vivemos uma época muito conturbada de esgarçamento dos valores morais e de padrões comportamentais estabelecidos, em função de mudanças sociais rápidas.
Nesse cenário, de alguma forma caótico, presenciamos um ‘apagar’ dos limites entre o certo e o errado, o bem e o mal, o normal e o anormal, o lícito e o conveniente (1 Co 10:23). Simultaneamente, vivemos o período da imposição do politicamente correto e da pós-verdade, representada por declarações pessoais, com forte apelo emocional e apoiada exclusivamente em um conjunto de crenças, impostas no grito e na força, como uma suposta verdade alternativa para influenciar a opinião pública e o comportamento social. Isso tudo cria um pano de fundo desafiador, no qual os indivíduos ou grupos que não se amoldam a um determinado perfil ou modelo, são vistos como nocivos e perniciosos, e por isso, passíveis de serem desprezados, excluídos e cancelados.
Em cenários complicados assim, de tantos ‘cancelamentos’, fica evidente a falta de tolerância dos que se enrijecem em torno de um discurso e de ideias naturalmente falíveis, agindo de modo a cancelar, ou eliminar, as vozes dissonantes, erroneamente imaginando que silenciando os mensageiros podem cancelar as ideias.
A visão espírita
O livro dos espíritos (782 e 783) traz uma interessante explicação sobre essa questão. Kardec pergunta se não há homens que de boa-fé entravam o progresso, acreditando favorecê-lo porque o veem segundo seu ponto de vista. “Assemelham-se a pequeninas pedras que, colocadas debaixo da roda de um grande carro, não o impedem de avançar”, respondem os Espíritos, complementando logo a seguir, sobre a marcha progressiva e lenta do aperfeiçoamento da humanidade, que “há o progresso regular e lento, que resulta da força das coisas. Quando, porém, um povo não progride tão depressa quanto deveria, Deus o sujeita, de tempos a tempos, a um abalo físico ou moral que o transforma”.
Allan Kardec comenta ainda que “o homem não pode conservar-se indefinidamente na ignorância, porque tem de atingir a finalidade que a Providência lhe assinou. Ele se esclarece pela força das circunstâncias. As revoluções morais, como as revoluções sociais, se infiltram nas ideias pouco a pouco, dormitam durante séculos; depois, irrompem subitamente e produzem o desmoronamento do carunchoso edifício do passado, que deixou de estar em harmonia com as necessidades novas e com as novas aspirações. Nessas comoções, o homem muitas vezes não percebe senão a desordem e a confusão momentâneas que o ferem nos seus interesses materiais. Aquele, porém, que eleva o pensamento acima da sua própria personalidade admira os desígnios da Providência, que do mal faz sair o bem. São a tempestade e o furacão que saneiam a atmosfera, depois de a haverem revolvido”.
Distúrbio mental, emocional?
A dominação da organização psíquica por uma única ideia ou associação mental, configurando um estado prolongado de monoideísmo (ideia fixa), pode ser incluído como um sintoma em alguns transtornos psicológicos. Isso, se pensarmos em um distúrbio como aquilo que atrapalha ou perturba alguma coisa. Se pretendermos, porém, uma interpretação biológica, equiparando com uma enfermidade orgânica, não.
Segundo a doutrina espírita, é plausível argumentar que quando o psiquismo se acha fixamente dominado por uma ideia, ele cria as condições para o desenvolvimento de um quadro obsessivo autoinduzido, cenário que foi muito bem representado recentemente no desenho animado Soul (Pixar, 2020).
Por si só, o radicalismo e a intolerância por mais nefastos que possam ser, não configuram um estado doentio. Mas é interessante termos em mente a possibilidade de um distúrbio social como nos resultados do experimento social da “Terceira Onda”, conduzido pelo professor de história americano Ron Jones, em 1967, e transformado no filme alemão A onda de 2008. A experiência de Jones evidenciou como a diversidade e a pluralidade de ideias e visões enriquecem o mundo, a vida das pessoas e os contextos sociais. A história é farta de registros de épocas e contextos sociais nos quais as divergências de ideias e comportamentos foram suprimidas em nome de uma (pseudo) uniformidade.
Os contrários da vida
Os intolerantes não percebem que suas próprias vidas ficam pobres, monocromáticas, enfadonhas e monótonas quando cancelam os que pensam diferente.
A vida pode ser comparada com os brinquedos em um parque infantil. Quer na gangorra ou no balanço o que se tem é uma alternância entre pontos divergentes e opostos, para frente x para trás, em cima x embaixo, mocinho x bandido, quem pega x quem esconde. Se suprimimos um dos lados, a brincadeira acaba e só resta o tédio, o vazio de um espaço não preenchido.
Toda necessidade advém de uma ausência, carência ou insuficiência. No esforço de tentarmos preencher um vazio, buscamos alguma coisa que nos dê motivo e uma razão significativa para nos movermos. A percepção, mais ou menos consciente, de uma sensação de vazio existencial pode funcionar como a força motriz que leva os indivíduos a se identificarem com uma ideia ou grupo que lhes dê significado de vida ou que os acolha. O fato de nos identificarmos com um grupo ou um sistema de ideias propicia-nos o sentimento de pertencer a algo maior e mais importante do que a nós mesmos.
O prazer pelo mal
Freud propôs uma teoria sobre o funcionamento da energia psíquica que se mostra suscetível a aumentos, diminuições e equivalência, de modo que poderíamos falar em prazer, sofrimento e substituição. Para evitarmos a angústia e o sofrimento do vazio existencial, quando não temos uma vida repleta de amor e ternura, buscamos algum tipo de prazer ao pertencermos a um grupo ou a um movimento mesmo que ele gere algum ônus. Uma metáfora famosa pode ser vista no conto de Claude Steiner Uma história de carícias com a paródia entre carinhos quentes e espinhos frios.
Numa visão simplista, podemos interpretar o prazer pelo mal, segundo a teoria freudiana da economia psíquica, pleiteando alcançar um estado de prazer pessoal ou coletivo impondo uma dor ou castigo ao outro. Seriam os traços de personalidade sádica descritos na literatura.
Para melhor lidarmos com esses desafios é preciso buscar a serenidade, o equilíbrio e algum distanciamento. Serenidade para não nos deixarmos envolver em um torvelinho de emoções e paixões que impeçam uma visão clara e lúcida do momento e dos movimentos da sociedade na qual estamos inseridos (Jo 17: 15-23). Equilíbrio para discernir o bem do mal, a verdade da impostura, o certo do errado, a luz das trevas, a essência da aparência, o eterno do passageiro (Mt 10: 16-23). Distanciamento na higiene mental que permite ir até os ímpios sem se fazer como eles (Mt 16: 6).
*David Monducci é neurocirurgião, mestre em filosofia e autor do livro Saúde e Vida, uma abordagem espiritual sobre emoções e doenças, Correio Fraterno, 2016.
Soul, uma comédia dramática da Pixar (2020) sobre o significado da vida, ganhou o Oscar de melhor filme de animação em 2021. O desenho conta a história de Joe Gardner, um professor de música em Nova York que sonha em ser um famoso pianista de jazz. Ele consegue ter uma chance para tocar em um show, mas, numa queda acidental, cai num buraco e se vê preso entre a Terra e o além. Por engano, vai parar num mundo onde as almas se preparam para uma nova vida. Neste universo, são abordadas características da condição humana, buscando-se respostas para dúvidas como: nascemos com um propósito? A vida tem sentido? Precisamos encontrar esse significado? Soul apresenta uma pequena sequência que representa o que acontece com pessoas que ficam presas em um pensamento único.
A paz e a espada
Analisando os ensinamentos de Jesus, em O evangelho segundo o espiritismo, no capítulo 23, Estranha Moral, Allan Kardec pergunta se seria mesmo possível que Jesus, a personificação da doçura e da bondade, que não cessou de pregar o amor do próximo, haja dito: “Não vim trazer a paz, mas a espada; vim separar do pai o filho, do esposo a esposa; vim lançar fogo à Terra e tenho pressa de que ele se acenda”? Não estarão essas palavras em contradição flagrante com os seus ensinos?
Conclui Kardec, à luz da razão, não haver contradição nessas palavras, que dariam, aliás, testemunho da alta sabedoria de Jesus, não podendo ser interpretadas literalmente. E explica; “Toda ideia nova forçosamente encontra oposição e nenhuma há que se implante sem lutas. Ora, nesses casos, a resistência é sempre proporcional à importância dos resultados previstos, porque, quanto maior ela é, tanto mais numerosos são os interesses que fere. (...) Assim, pois, a medida da importância e dos resultados de uma ideia nova se encontra na emoção que o seu aparecimento causa, na violência da oposição que provoca, bem como no grau e na persistência da ira de seus adversários.
Cada um é livre de encarar as coisas à sua maneira, e nós, que reclamamos essa liberdade para nós, não podemos recusá-la aos outros. Mas, porque uma opinião é livre, não se segue que não se possa discuti-la, examinar o seu lado forte e o fraco, pesar suas vantagens e inconvenientes. – Allan Kardec – Revista Espírita janeiro 1866
Qual o maior obstáculo ao progresso?
“O orgulho e o egoísmo. À primeira vista, parece mesmo que o progresso intelectual duplica a atividade desses vícios, desenvolvendo a ambição e o gosto das riquezas, que, a seu turno, incitam o homem a empreender pesquisas que lhe esclarecem o Espírito. Assim é que tudo se prende, no mundo moral, como no mundo físico, e que do próprio mal pode nascer o bem. Porém esse estado de coisas não durará para sempre; mudará à medida que o homem compreender melhor que além do gozo dos bens terrenos existe uma felicidade infinitamente maior e infinitamente mais duradoura.”
O comentário de Allan Kardec
Há duas espécies de progresso, que uma a outra se prestam mútuo apoio, mas que, no entanto, não marcham lado a lado: o progresso intelectual e o progresso moral. Entre os povos civilizados, o primeiro tem recebido, no correr deste século, todos os incentivos. Por isso mesmo atingiu um grau a que ainda não chegara antes da época atual. Muito falta para que o segundo se ache no mesmo nível. Entretanto, comparando-se os costumes sociais de hoje com os de alguns séculos atrás, só um cego negaria o progresso realizado. Ora, sendo assim, por que haveria essa marcha ascendente de parar, com relação, de preferência, ao moral, do que com relação ao intelectual? Duvidar seria pretender que a humanidade está no apogeu da perfeição — o que é absurdo —, ou que ela não é perfectível moralmente — o que a experiência desmente. — Allan Kardec, O livro dos espíritos, p.785.