Os intrincados caminhos da Mediunidade de cura
Por Eliana Haddad
Nos próximos meses, especialmente em setembro, quando estreia no Brasil o filme Predestinado, Arigó e o espírito do dr. Fritz, o tema mediunidade ganhará evidência não apenas entre os espíritas, uma vez que o fenômeno da cura continuará sempre a surpreender e a despertar o interesse, principalmente quando alguém muito simples, sem anestesia e sem assepsia, consegue realizar cirurgias delicadas, restabelecendo a visão ou retirando tumores, utilizando-se de instrumentos comuns, como facas, canivetes, os que estiverem por perto.
O médium José Pedro de Freitas, o Arigó (1921 – 1971), desafiou cientistas do mundo inteiro e provocou verdadeiro alvoroço em Congonhas do Campo, em Minas Gerais, entre as décadas de 1950 e 1970. Ele chegou mesmo a ser preso, acusado de charlatanismo e prática ilegal da medicina. Mas nada disso foi capaz de acorrentar a sua mediunidade ou impedir que grande fluxo de pessoas continuasse a buscar por sua ajuda para os mais diversos males, muitas delas desenganadas pelos próprios médicos.
Diante do fato de a mediunidade ser vulgarmente entendida como restrita ao espiritismo, o escritor Herculano Pires foi enfático, ao escrever sua obra, Arigó, vida, mediunidade e martírio (Paideia): “É preciso deixar bem claro para o leitor, seja ele espírita, católico, protestante, livre-pensador, materialista, ou de qualquer outra posição ideológica, que o caso Arigó não é religioso. Seu interesse fundamental é o desafio que ele lança aos meios científicos”.
O que dizem os espíritos
No início do espiritismo, no século 19, na França, Allan Kardec quis saber detalhes sobre a mediunidade de cura e em O livro dos médiuns (1861) explica, no item 175, que “este gênero de mediunidade consiste, principalmente, no dom que possuem certas pessoas de curar pelo simples toque, pelo olhar, mesmo por um gesto, sem o concurso de qualquer medicação”. Kardec lembra que podem até dizer que isso nada mais é do que magnetismo e concorda que o ‘fluido magnético’ (doado pelo próprio médium) desempenha aí importante papel, mas observa que quem examinar cuidadosamente o fenômeno verá que há mais alguma coisa: “A magnetização ordinária é um verdadeiro tratamento seguido, regular e metódico; no caso que apreciamos, as coisas se passam de modo inteiramente diverso. Todos os magnetizadores são mais ou menos aptos a curar, desde que saibam conduzir-se convenientemente, ao passo que nos médiuns curadores a faculdade é espontânea e alguns até a possuem sem jamais terem ouvido falar de magnetismo. A intervenção de uma potência oculta, que é o que constitui a mediunidade, se faz manifesta, em certas circunstâncias, sobretudo se considerarmos que a maioria das pessoas que podem, com razão, ser qualificadas de médiuns curadores recorre à prece, que é uma verdadeira evocação”.
No caso de Arigó, por exemplo, havia a intervenção do espírito dr. Fritz. Perseguido e acusado de prática de medicina ilegal, certa vez, o médium pontuou que a lei estava certa e que só médico mesmo poderia exercer a medicina. E completou: “Quem opera aqui não sou eu, é o dr. Fritz”. Por isso não aceitava a concessão de indultos especiais quando estava na prisão, dizendo não reconhecer a razão pela qual estava sendo condenado.
Como atuam os médiuns curadores
O espiritismo explica que para que os médiuns curadores possam atuar, é necessário possuir uma aptidão orgânica, uma força magnética, para serem utilizados pelos espíritos. “Na ação magnética propriamente dita, é o fluido pessoal (perispírito) do magnetizador que é transmitido, e sabe-se que esse fluido participa sempre, mais ou menos, das qualidades materiais do corpo, ao mesmo tempo que sofre a influência moral do espírito.”
Assim, as curas realizadas por médiuns contam com a interferência espiritual e, sem ela, nada aconteceria.
Para se entender o processo da cura é preciso que se atente para vários aspectos – o médium, o espírito comunicante, o doente, o planejamento encarnatório, a fé, o merecimento etc. Afinal, na visão espírita, sabe-se que, muitas vezes, a cura de uma doença não é possível por ser ela o próprio instrumento de educação para a ‘saúde’ do espírito, a oportunidade de sanar e fortalecer a caminhada evolutiva.
Kardec aprofunda essa questão em O livro dos médiuns e, depois, em A gênese, ao analisar as curas realizadas por Jesus. Ele acrescenta que esse fenômeno foi suficientemente explicado para provar que entra na ordem das leis naturais e que nada há de miraculoso. “Ele é o produto de uma aptidão especial, tão independente da vontade quanto todas as outras faculdades mediúnicas; não é um talento que se possa adquirir; ninguém pode transformar-se em médium curador, da mesma maneira que pode tornar-se médico”. A aptidão para curar é inerente ao médium, mas o exercício da faculdade só acontece com a atuação dos espíritos. Se não mais quiserem servir-se do médium, este será como um instrumento sem músico, fato que revela a impossibilidade de o médium utilizar a mediunidade como profissão, alerta Kardec.
Limites e responsabilidade
Uma das coisas que sempre se especula quando se fala em médiuns de cura é o fato de muitos deles terem vida breve, sofrerem mortes repentinas. Arigó, por exemplo, desencarnou aos 54 anos num acidente automobilístico. Da mesma forma, partiu o médium pernambucano Edson Queiroz, que atuava nos mesmos moldes de Arigó, aos 41 anos, em 1991.
“A mediunidade de cura é comprometedora e perigosa”, destaca Nena Galves, do Centro Espírita União, de São Paulo, que desfrutou por mais de 40 anos de intensa convivência com Chico Xavier, ouvindo suas orientações e ensinamentos sobre a tarefa mediúnica. “O médium de cura precisa ser muito desprendido das coisas materiais, pois acaba fazendo muito sucesso entre não espíritas, que se deslumbram com o fenômeno. Ficam agradecidas, idolatrando o médium, e muitas vezes acabam por cobri-lo de presentes, imóveis, facilidades. Penso que, se o médium tiver merecimento, o plano espiritual se incumbe de afastá-lo, por proteção, quando estiver correndo risco de comprometer-se em função da tarefa mediúnica, o que também prejudicaria a própria credibilidade do espiritismo. Além disso, há o perigo das fraudes”, analisa. Ela assinala ainda que o doente que recebe a cura também se compromete, pois estará recebendo uma nova oportunidade, que deverá ser bem aproveitada. Segundo Nena, é preciso lembrar o ensino de Jesus: “Vai e não peques mais, para que não te aconteça algo pior”.
Isso explicaria em parte por que nem todos são curados. Alguma peça da delicada engrenagem do processo de cura não estará de acordo com as expectativas. E Kardec considera muito bem a questão ao lembrar que, como a faculdade de curar está fundada em leis naturais, ela tem limites traçados por essas mesmas leis. “Compreende-se que a ação fluídica possa dar a sensibilidade a um órgão existente, fazer dissolver e desaparecer um obstáculo ao movimento e à percepção, cicatrizar uma ferida, porque então o fluido se torna um verdadeiro agente terapêutico, mas é evidente que não pode remediar a ausência ou a destruição de um órgão, o que seria um verdadeiro milagre. Há, pois, doenças fundamentalmente incuráveis, e seria ilusão crer que a mediunidade curadora vá livrar a humanidade de todas as suas enfermidades”.
Esclarece a doutrina dos espíritos que a mediunidade curadora não vem suplantar a medicina e os médicos. “Vem simplesmente provar a estes últimos que há coisas que eles não sabem e convidá-los a estudá-las; que a Natureza tem leis e recursos que eles ignoram; que o elemento espiritual, que eles desconhecem, não é uma quimera, e quando eles o levarem em conta, abrirão novos horizontes à ciência e terão mais êxito do que agora”.
Dúvidas de Kardec, respostas dos espíritos
Podem considerar-se as pessoas dotadas de força magnética como formando uma variedade de médiuns?
R. “Não há que duvidar.”
Entretanto, o médium é um intermediário entre os espíritos e o homem; ora, o magnetizador, haurindo em si mesmo a força de que se utiliza, não parece que seja intermediário de nenhuma potência estranha.
R. “É um erro; a força magnética reside no homem, mas é aumentada pela ação dos espíritos que ele chama em seu auxílio. Se magnetizas com o propósito de curar e invocas um bom espírito que se interessa por ti e pelo teu doente, ele aumenta a tua força e a tua vontade, dirige o teu fluido e lhe dá as qualidades necessárias.”
Há, entretanto, bons magnetizadores que não creem nos espíritos?
R. “Pensas então que os espíritos só atuam nos que creem neles? Os que magnetizam para o bem são auxiliados por bons espíritos. Todo homem que nutre o desejo do bem os chama, sem dar por isso, do mesmo modo que, pelo desejo do mal e pelas más intenções, chama os maus.”
Agiria com maior eficácia aquele que, tendo a força magnética, acreditasse na intervenção dos espíritos?
R. “Faria coisas que consideraríeis milagre.”
Há pessoas que possuem o dom de curar pelo simples contato, sem o emprego dos passes magnéticos?
R. “Certamente; não tens disso múltiplos exemplos?”
Nesse caso, há também ação magnética, ou apenas influência dos espíritos?
R. “Uma e outra coisa. Essas pessoas são verdadeiros médiuns, pois que atuam sob a influência dos espíritos; isso, porém, não quer dizer que sejam quais médiuns curadores, conforme o entendes.”
Pode transmitir-se esse poder?
R. “O poder, não; mas o conhecimento de que necessita, para exercê-lo, quem o possua. Não falta quem não suspeite sequer de que tem esse poder, se não acreditar que lhe foi transmitido.”
Podem obter-se curas unicamente por meio da prece?
R. “Sim, desde que Deus o permita; pode dar-se, no entanto, que o bem do doente esteja em sofrer por mais tempo e então julgais que a vossa prece não foi ouvida.”
Haverá para isso algumas fórmulas de prece mais eficazes do que outras?
R. “Somente a superstição pode emprestar virtudes quaisquer a certas palavras e somente espíritos ignorantes, ou mentirosos podem alimentar semelhantes ideias, prescrevendo fórmulas. Pode, entretanto, acontecer que, em se tratando de pessoas pouco esclarecidas, o uso de determinada fórmula contribua para lhes infundir confiança. Neste caso, porém, não é na fórmula que está a eficácia, mas na fé, que aumenta por efeito da ideia ligada ao uso da fórmula.” – O livro dos médiuns, 2ª parte, cap. 14: “Das manifestações espíritas”.