O evangelho sob as lentes dos pesquisadores do espiritismo

O 19º Enlihpe - Encontro Nacional da Liga de Pesquisadores do Espiritismo, realizado no final de agosto, em São Paulo, apresentou seis trabalhos inéditos sobre conteúdos relacionados à ciência e à filosofia presentes em O evangelho segundo o espiritismo, lançado por Allan Kardec, em Paris, há 160 anos.

Considerado por muitos apenas como livro religioso de simples leitura, O evangelho é obra de peso na história do espiritismo e do pensamento humano, ao realizar a crítica aos dogmas de fé da época e apresentar um novo paradigma para a interpretação dos ensinos morais de Jesus.

A obra foi publicada por Allan Kardec sete anos depois de O livro dos espíritos (1857), sendo antecedida ainda por Instruções práticas sobre as manifestações espíritas (1858), O que é o espiritismo (1859), O livro dos médiuns (1861), O espiritismo em sua mais simples expressão (1862), Viagem espírita (1862) e pelos estudos da Revista Espírita. Quando O evangelho segundo o espiritismo apareceu, a doutrina espírita já estava, portanto, consolidada em suas bases científicas. Já havia sido revelada não somente a existência do mundo dos espíritos como também sua intercomunicação com o mundo dos encarnados. Kardec sabia que iria tocar em terreno delicado, ao abordar o aspecto ético da nova doutrina, enaltecendo a moral universal contida nos ensinos de Jesus, interpretados agora com maior clareza, sob novas lentes. Trazia uma argumentação bem diferente, já contendo premissas espíritas, como a existência de Deus, inteligência suprema do universo (não antropomórfico), a imortalidade da alma, o mundo invisível, a comunicabilidade dos espíritos, a mediunidade e a justiça divina baseada na lógica da reencarnação. 

O encontro

Realizado na sede da USE-União das Sociedades Espíritas, o 19º Enlihpe contou com o apoio da LIHPE - Liga dos Pesquisadores do Espiritismo e do CCDPE-ECM – Centro de Cultura, Documentação e Pesquisa do Espiritismo – Eduardo Carvalho Monteiro. O evento prestou homenagem ao pesquisador e escritor mineiro Jáder Sampaio, um dos iniciadores dos Encontros da Liga, que desencarnou no mês de fevereiro. 

A autoria dos trabalhos ficou por conta de Ricardo Terini (São Paulo), que explorou os aspectos históricos de O evangelho segundo o espiritismo; Daniel Salomão (Juiz de Fora), que abordou a exegese adotada por Kardec na interpretação dos textos bíblicos;  (Brasília) Farias, que em parceria com Silvio Chibeni (Campinas) e Luís Jorge Lira Neto (Pernambuco), trouxe a investigação sobre a mediunidade curadora e a singularidade da obra, respectivamente; Alexandre Fontes da Fonseca (Campinas), que analisou a relação entre espiritismo e a ciência articulada por Kardec; David Monducci (São Paulo), que abordou a dimensão religiosa do espiritismo.

Durante todo o evento, pesquisadores chamaram a atenção para o trabalho primoroso realizado por Allan Kardec na construção do espiritismo. Com a colaboração de perto das “vozes do céu”, ao lançar O evangelho segundo o espiritismo, ele inaugurou uma nova época de instruções para a humanidade. 

Leia a seguir um pequeno extrato dos artigos apresentados.

Aspectos históricos

O evangelho segundo o espiritismo foi elaborado durante um dos períodos mais conturbados para Kardec, desde o seu contato com as mesas girantes. Ele mesmo o considerou como “o período de luta”, iniciado a partir do Auto de Fé de Barcelona (1861) e que sucedeu ao “período da curiosidade” (mesas girantes) e ao período filosófico” (O livro dos espíritos). 

Na Revista Espírita de dezembro de 1863, ele comenta que as comunicações dos espíritos nesses períodos tinham um caráter especial para cada ocasião: primeiro, eram frívolas e levianas, depois se tornaram graves e instrutivas e, no terceiro período, pressentiam a luta, principalmente com o clero. 

A campanha difamatória sofrida por Kardec por membros da Igreja Católica o incentivou a focar na essência do ensino moral de Jesus, de interesse geral, buscando sua significação profunda à luz do espiritismo. Ele também toca em conceitos abordados até então como religiosos e os desenvolve em todos os 28 capítulos do livro com base na ciência espírita disposta nas obras anteriores. 

A falta desse conhecimento prévio pode prejudicar o entendimento de vários trechos de O evangelho segundo o espiritismo. Melhor seria que ele não fosse o primeiro livro para iniciar uma formação espírita, pois sem a compreensão dos conteúdos espíritas acaba por deixar a porta aberta para a assimilação dos ensinos de Jesus com base em outras vertentes religiosas.

Hermenêutica bíblica espírita

A relação com o texto bíblico pode ocorrer de duas formas, pela exegese (acesso científico-descritivo ao texto) e pela aplicação (adaptação do texto ao presente). Há um olhar espírita específico para as escrituras. 

Kardec busca o espírito e não a letra para os textos bíblicos, diferentemente de outras denominações cristãs, que aceitam acriticamente tudo o que dizem as escrituras. Ele admite a existência de incongruências, seleciona o que é válido ou não a partir dos pressupostos científicos de sua época e adota uma hermenêutica de cunho ético, tendo por ponto de partida a validade indiscutível da moral de Jesus, revelado em O livro dos espíritos como modelo a seguir. 

Kardec reconhecia o espiritismo como a chave completa para se compreender o verdadeiro sentido dos textos sagrados. Sua hermenêutica já parte de certa confiança na metodologia histórico-crítica de sua época, ao mostrar um olhar mais crítico à religião e um desapego à letra. Isso possibilitou que ele questionasse ou mesmo negasse a autenticidade e a literalidade das passagens bíblicas, quando em desacordo com pressupostos científicos e espíritas – a existência de Deus, a imortalidade da alma, a mediunidade e a reencarnação. 

Mediunidade curadora

Há um texto sobre curas, bem pouco conhecido, que foi publicado por Allan Kardec como uma seção do capítulo sobre as preces espíritas no livro Imitação do evangelho segundo o espiritismo (1864). Essa obra foi a primeira edição de O evangelho segundo o espiritismo (1866), que ao ser revisado não contou com essa inserção. 

No texto (leia em correio.news), Kardec define de maneira precisa o que é a mediunidade curadora, explica seus mecanismos de ação, indica suas potencialidades e limitações para promover o bem do próximo, alertando para os escolhos envolvidos em sua prática.

 A retirada do texto não seria, entretanto, uma espécie de desprezo de Kardec pelo tema. Segundo os pesquisadores, ao contrário, reflete seu desejo de dar mais foco à seção das preces, visto que a mediunidade de cura passou a ocupar cada vez mais sua atenção, desdobrando-se em vários artigos da Revista Espírita.

A ciência espírita

O Evangelho segundo o espiritismo não é uma obra dogmática. Os conceitos, discussões e esclarecimentos em torno do ensino moral do Cristo se baseiam em fundamentos científico-espíritas, obtidos através de critérios da razão e do controle universal do ensino dos espíritos. Isso confere enorme valor e importância às máximas desenvolvidas por Kardec em torno da vivência e prática do Evangelho de Jesus. 

Esses fundamentos são identificados em vários conceitos desenvolvidos nos capítulos da obra, o que permite afirmar a importância de práticas que eram apenas consideradas rituais religiosos e culturais. A prece, o perdão e a caridade, por exemplo, estão fundamentados pelo espiritismo através da ciência espírita em princípios naturais.

Os fundamentos doutrinários são de total importância para a interpretação segura e correta do ensino moral de Jesus. 

Os conceitos da ciência espírita não são apenas importantes para estimular futuras pesquisas espíritas, mas também para fundamentar a discussão e interpretação espíritas dos ensinos do Cristo.

O aspecto religioso

Allan Kardec declara no preâmbulo de O que é o espiritismo que “o espiritismo é ao mesmo tempo uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática, ele consiste nas relações que se estabelecem entre nós e os espíritos; como filosofia, compreende todas as consequências morais que dimanam dessas mesmas relações”. Essa declaração permitiu que mais tarde se desenvolvesse na literatura espírita a ideia de que a doutrina espírita se apresenta com o tríplice aspecto de ciência, filosofia e religião. 

A palavra religião é complexa, plural em significados, possuindo múltiplos pontos de vista interpretativos que podem levar a desdobramentos muito diferentes. ´Trata-se de um problema histórico confundirmos um sentimento humano, inato, com as diversas formas exteriores utilizadas por diferentes sociedades, culturas e épocas para a sua manifestação. 

O espiritismo esquiva-se das formas institucionalizadas, cristalizadas em dogmas de fé que contradizem a razão. É algo diferente de tudo que o precedeu e aponta para um futuro que ainda está por realizar-se.

A singularidade da obra

Na França do século 19, a crítica positivista exigia a substituição da religião pela ciência. O espiritismo surge em 1857, com a publicação de O livro dos espíritos, caracterizado como uma proposta de reconciliação da razão com a fé. A Igreja Católica e o clero francês declaravam que o espiritismo era uma nova religião. 

O evangelho segundo o espiritismo é um livro de doutrina diferente dos demais em vários sentidos, da preparação ao conteúdo, da concepção à formatação. Para escrevê-lo, Allan Kardec fez um retiro na cidade balneária de Sainte-Adresse, pois necessitava de “recolhimento e isolamento”. Também, a nenhum encarnado dera conhecimento do assunto da obra em que estaria trabalhando.

 O livro colocou o espiritismo na linha da tradição cristã, apresentada de forma racionalista e positivista. Trata-se de obra singular pelo seu posicionamento no plano das obras fundamentais do espiritismo, um ponto de inflexão na estrutura da doutrina espírita, posicionando o espiritismo no debate do campo religioso, apresentando solução pacífica e harmoniosa para produzir a fé inabalável que enfrenta a razão em qualquer época da humanidade. 

1 Os trabalhos apresentados estão publicados no livro 160 anos de o evangelho segundo o espiritismo, Ed. CCDPE- ECM.