CIÊNCIA: mediunidade não é distúrbio mental
Por Eliana Haddad
Não é difícil para nós espíritas entendermos que, apesar da possibilidade de uma manifestação mediúnica ser eventualmente semelhante a um surto psicótico, trata-se de situações diferentes, cientes que somos da interferência espiritual no mundo dos encarnados, captada por pessoas de maior sensibilidade: os médiuns. Mas essa não é uma realidade para o universo da pesquisa acadêmica, que tem como ponto de partida as evidências do mundo material, muitas vezes desconsiderando as experiências espirituais.
Embora haja ainda um percurso grande a ser trilhado, estudos nesta direção começaram a ganhar espaço nos últimos vinte anos, principalmente no campo da psiquiatria, e que poderão ampliar os horizontes, no aprimoramento dos diagnósticos e tratamentos mais precisos.
Uma boa notícia diz respeito a um estudo específico de pesquisadores brasileiros sobre o tema e que acaba de ser divulgado na revista Schizophrenia Research, publicação científica da Associação Internacional de Pesquisa em Esquizofrenia. Desenvolvido em parceria entre a Universidade de São Paulo (USP) e o Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade (NUPES) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), MG, o estudo traz importantes evidências sobre a distinção entre as condições específicas do transe mediúnico e do surto psicótico, salientando ainda que os médiuns pesquisados desfrutavam de melhor saúde mental e qualidade de vida. A autoria do trabalho é dos médicos psiquiatras Marianna Abreu e Alexander Moreira-Almeida, do NUPES, sob a coordenação do professor-titular de psiquiatria da USP, Wagner Gattaz, referência mundial em esquizofrenia.
Ao Correio Fraterno, os três especialistas envolvidos com a pesquisa esclareceram:
O ponto de partida
O principal resultado da pesquisa foi a constatação de que experiências mediúnicas não têm nenhuma relação com distúrbios mentais, e em especial não têm relações com vivências psicóticas, explicou o coordenador Wagner Gattaz. “Os médiuns apresentaram não só excelente saúde mental, comparável à de seus parentes de primeiro grau sem mediunidade, como também conquistas profissionais e de qualidade de vida até um pouco superiores”. Para ele, a importância maior desse estudo é para a sociedade, ao mostrar que mediunidade não significa doença ou distúrbio mental. “Isso nos motiva a pesquisar mais a fundo quais são as bases científicas que conferem a uma pessoa o dom da mediunidade, e o impacto desses resultados na prática está justamente em estimular a pesquisa científica nesta área”. Segundo Gattaz, já estão sendo realizados pela equipe estudos de aspectos neurobiológicos que também poderiam orientar na melhor compreensão dos fenômenos mediúnicos.
Visão materialista
A pesquisadora Marianna Abreu, também médica psiquiatra, diz tratar-se de um tema desafiador, ao comentar sobre os motivos de sua escolha. “A mente humana despertou minha curiosidade desde muito jovem. Sei que entender a mediunidade pode abrir novas portas no estudo da mente e da intrigante relação entre a mente e o cérebro”. Ela explica que “a semelhança entre médiuns e pessoas com transtornos mentais reside na descrição dos fenômenos que experimentam, como ver e ouvir coisas que os outros não podem perceber – alterações na sensopercepção e em crenças que desafiam a visão fisicalista do mundo”. No entanto, “as diferenças são substanciais”. “Nos transtornos mentais, pode haver desorganização cognitiva e comportamental, embotamento afetivo, alterações no nível de energia e prejuízos significativos na vida diária, por exemplo. Essas características não são observadas nos médiuns, que geralmente mantêm um ótimo funcionamento cognitivo-comportamental e adequado ajuste na vida”.
Marianna, que é pós-doutoranda do NUPES, diz esperar que essas pesquisas, junto com os estudos de diversos pesquisadores ao redor do mundo, contribuam para fornecer aos psiquiatras melhores ferramentas para diagnósticos diferenciais precisos, lembrando que as diretrizes já estão disponíveis, como a publicada no ano passado pela Associação Brasileira de Psiquiatria1. “Acredito que nossa pesquisa traga dois principais benefícios para a saúde mental da população: primeiro, evita a patologização errada e o consequente tratamento e medicação de experiências que não são patológicas; segundo, reconhece a experiência do médium como única, permitindo que suas percepções sejam incorporadas no contexto do tratamento de saúde mental, ajudando o paciente a encontrar o próprio significado da experiência”. Segundo ela, a demonstração de que os médiuns não apresentam variáveis sugestivas de transtorno mental, quando comparados a seus familiares, está alinhada com a literatura científica, que mostra que ter percepção extrassensorial não é, por si só, indicativo de transtorno mental. “É essencial que os profissionais de saúde mental compreendam profundamente a sobreposição fenomenológica entre experiências espirituais saudáveis e sintomas psicóticos”, destaca.
Investigação sobre experiências espirituais
Professor-titular de psiquiatria da UFJF, Alexander Moreira-Almeida, fundador e coordenador do NUPES, explica que o núcleo de pesquisa tem investigado de diversas formas as experiências espirituais. “Uma das questões fundamentais é o que elas podem nos ensinar sobre a mente e o cérebro. Especialmente nos interessa saber como o cérebro funciona durante essas experiências, mas também, e principalmente, evidências de que a mente pode atuar além do cérebro”, diz. Os diversos trabalhos acadêmicos em andamento abrangem conteúdos voltados a experiências de quase-morte, fora do corpo, memórias de vidas passadas, experiências mediúnicas e experiências de final de vida. “Em todas essas experiências há relatos de atividade da mente além do cérebro, uma das linhas principais que estamos investigando”, conta o pesquisador, que já em 2004 defendeu tese de doutorado pela USP sobre mediunidade e esquizofrenia2.
Vinte anos se passaram e o que era um tema muito inicial, com poucas pesquisas, hoje pode ser verificado, segundo Moreira-Almeida, em vários estudos, não só realizados no Brasil e que se tornaram referências, como também em trabalhos acadêmicos internacionais. “São pesquisas que consolidaram de modo muito claro que tanto experiências espirituais como as experiências mediúnicas não são de um modo geral patológicas. São bem distintas de experiências de doenças mentais, e há critérios para se fazer essa distinção”, afirma o psiquiatra, que participou do grupo de trabalho para elaboração do CID 11 (último Código Internacional de Doenças), recentemente lançado pela Organização Mundial da Saúde, contendo esses critérios e já apontando a diferença entre experiências espirituais saudáveis e transtornos mentais.
Psiquiatria do futuro
Alexander Moreira-Almeida esclarece que a prática, tanto da psiquiatria como da psicologia, também depende da visão que se tem do que seja o ser humano. “Se ele é visto apenas como fruto da atividade dos neurônios ou da influência do ambiente, sendo simples consequência e vítima impotente frente a isso, ou se o que pensa, o que sente, a alma, é algo além, que sofre essas influências, mas pode tomar uma atitude frente a elas”, compara, prevendo que a compreensão da mente como algo além do cérebro vai ter um impacto muito grande, não somente na psiquiatria, mas na compreensão geral do ser humano e como ele pode se posicionar frente à vida e ao próprio adoecimento.
Realizada entre abril de 2020 e abril de 2021, a pesquisa “Experiência anômala espírita não está associada à psicose” investigou 78 médiuns espíritas brasileiros e 62 parentes adultos de primeiro grau, sem mediunidade, para descobrir se a presença de alterações na percepção sensorial (experiências mediúnicas) por si só indicava necessariamente doença mental. As 140 pessoas formaram dois grupos similares, com fatores sociológicos, culturais e econômicos comuns, tendo apenas como diferença a presença ou não das experiências mediúnicas.
Os critérios de inclusão dos médiuns foram: ter pelo menos 10 anos de experiência mediúnica; praticar pelo menos uma vez por semana; ser reconhecido por seus pares como tendo alta capacidade; exercer a mediunidade de graça; e ter um histórico consistente de obtenção de informações anômalas verificáveis e precisas. As habilidades mediúnicas reuniram psicofonia, psicografia, incorporação, visão de espíritos, projeção, audição de espíritos, cura, efeito físico e pintura mediúnica.
1Mosqueiro BP, de Costa MA, Caribé AC, Oliveira FHO, Pizutti L, Zimpel RR, et al. Brazilian Psychiatric Association guidelines on the integration of spirituality into mental health clinical practice: Part 1. Spiritual history and differential diagnosis. Braz J Psychiatry.2023;45(6):506-517 http://dx.doi.org/10.47626/1516-4446-2023-3056
2 Almeida, A. M. (2004). Fenomenologia das experiências mediúnicas, perfil e psicopatologia de médiuns espíritas. Tese de Doutorado, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo.
https://doi.org/10.11606/T.5.2005.tde-12042005-160501