A razão das aflições terrenas

Por Rodrigo Romani Nicolau*

O capítulo 5 de O evangelho segundo o espiritismo, Bem-aventurados os aflitos, traz a interpretação espírita de importante parte dos ensinamentos de Jesus. A relevância desses ensinamentos pode ser verificada pela especial atenção dada por Allan Kardec ao próprio conteúdo moral desenvolvido sobre o tema, constituindo-se no mais extenso de todos na obra e trazendo diversos detalhamentos sobre aquilo que realmente precisamos compreender em relação às angústias, aos sofrimentos e às aflições que todos nós, vinculados à Terra, ainda passamos.

As bem-aventuranças são narradas pelo apóstolo Mateus no Novo Testamento também no capítulo 5. Trata-se do capítulo que possui, pode-se dizer, a maioria dos ensinamentos mais conhecidos do cristianismo, entre os quais a afirmativa de que somos o sal da terra e o alerta à necessidade de que a candeia, o conhecimento, não seja colocada debaixo do alqueire. É nesse capítulo também que Jesus ensina que seu reino não é deste mundo e que não teria vindo para destruir a Lei, mas sim para que tudo fosse cumprido. Convida-nos ainda a nos conciliarmos com nossos desafetos, antes de nos dirigirmos a Deus em prece, arrematando as belas lições com um dos ensinamentos mais importantes e mais difíceis de cumprirmos na nossa condição evolutiva: “amai vossos inimigos, fazei o bem àqueles que vos odeiam e orai por aqueles que vos perseguem e vos caluniam”.

As bem-aventuranças foram ditas por Jesus em seu Sermão da Montanha. Elas foram consideradas pelo líder Mahatma Gandhi (1869-1948) como o mais completo conjunto de ensinamentos morais que a humanidade já possuiu, observando que, se todos os livros do mundo fossem queimados e somente sobrassem as bem-aventuranças, a humanidade estaria bem encaminhada. 

Vale lembrar que esse sermão foi realizado por Jesus em cima de um monte a uma multidão que ao redor sentou-se para ouvi-lo, ou seja, a comunicação efetiva não teria se dado unicamente pela propagação do som, mas, sobretudo, espiritualmente, permitindo que cada um daqueles que o ouviam pudesse assimilar o que fosse necessário para sua caminhada evolutiva individual.

A justiça das aflições

Mas como podemos entender o sofrimento como uma bem-aventurança? De que forma nossas angústias, nossas frustações e nossas decepções nos fazem evoluir e nos aperfeiçoarmos? 

O espiritismo nos responde de forma bem racional e objetiva, pelo binômio causa-efeito. Se Deus é perfeitamente justo e tudo está submetido à Sua vontade, tudo que ocorre só pode ter um único propósito, qual seja, a justiça, tanto nos momentos felizes, como nos de mais complexa aceitação, nos momentos tristes, infelizes. 

Se a causa é justa, seu efeito também o será. O efeito será sempre educativo, não punitivo, para que possamos melhor trilhar o caminho da evolução espiritual, nossa finalidade, enfim. Por isso, esse efeito pode, sim, ser um sofrimento, uma aflição, assim como um remédio amargo, que ninguém gosta, mas que é necessário muitas vezes nessas nossas andanças pelas reencarnações sucessivas. Entender isso passa pela aceitação de que são justamente as reencarnações, nossas várias existências como espíritos imortais que somos, as oportunidades oferecidas pela misericórdia divina para sempre recomeçarmos e abraçarmos os desafios da vida com coragem e novo ânimo.

As causas das aflições, sabemos, podem ser encontradas tanto nesta vida, como em reencarnações passadas. Independentemente de onde estejam, é preciso lembrar que ainda pertencemos a um mundo de provas e expiações. Ter consciência e aceitar este fato amplia nossa capacidade de resignação perante as dificuldades. 

Expiações ou provas

 Allan Kardec esclarece que os espíritos que estão em expiações podem ser notados por sua revolta, por sua grande resistência, uma não aceitação da aflição, em suma, quando se nota a falta de resignação. São os que ainda não despertaram para o próprio erro, não entenderam onde se enganaram, não se arrependeram, e tentam racionalizar seus erros, através de justificações variadas. Suas provas, portanto, são mais ou menos impostas (expiações). Esses espíritos sofrem as consequências de sua própria incúria, por ainda se negarem a aprender, a reparar seu passado, o que os conduziria a um novo degrau de evolução moral.

Por outro lado, os espíritos que estão em prova são aqueles que veem as dificuldades, as aflições, como momentos difíceis, sim, mas temporários. Entendem suas necessidades evolutivas através dos desafios que burilam seu espírito, provas que eles mesmos solicitaram para passar, pois têm consciência de que, após vencê-las, aquilo que foi aperfeiçoado e aprendido não retrocederá. Afinal, o objetivo do espírito é vencer, progredir sempre. 

Lembremos, assim, que há o bem e o mal sofrer. Mal sofrer quando duvidamos da bondade divina e afirmamos que Deus nos abandonou, que não é justo esse ou aquele acontecimento, que nossos pedidos não foram ouvidos, que uma expectativa foi injustamente frustrada, e assim por diante. O bem sofrer acontece quando uma situação imprevista, uma vontade contrariada, uma suposta injustiça são acompanhadas do sentimento de fé em Deus, em sua bondade infinita, na certeza de que as provas e expiações, do passado ou do presente, são cumpridas (e sofridas) para nos preparar para um futuro de regeneração e, mais lá na frente, para um mundo de paz e felicidade moral e espiritual, que ainda nem temos capacidade plena de compreensão, mas pelo qual nosso espírito originalmente anseia. Essa seria a verdadeira fé no futuro., ainda que passemos por momentos infelizes, oportunidades de aprendizado, de ampliação da nossa visão para além desta vida, certos de que o fardo que Jesus nos mostra é leve e que seu julgamento será sempre suave, porque a lei divina é lei de amor e misericórdia. Isso explicaria por que, diante das faltas já cometidas na nossa existência espiritual, o que vale é a nossa atual ação no bem, nosso esforço no amor, o que cobre a multidão de pecados. Nem uma décima parte estaria, assim, nos sendo cobrada, pois Deus sabe da nossa condição de criaturas em aperfeiçoamento constante. Ora, se hoje ainda podemos observar em nós diversas falhas latentes em nosso comportamento (e, principalmente, em nossos pensamentos), como teríamos sido em outras existências, já que pela Lei do Progresso estamos melhores do que já fomos? 

O poder da fé

O bem sofrer tem a fé como principal analgésico para as dores que as adversidades e contrariedades nos trazem. Mas essa fé não pode ser cega, e sim racional, a que compreende que todo efeito tem sua causa correspondente, sempre dentro da amorosa justiça divina. 

Vale refletir ainda que a máxima de que somente evoluímos através do amor ou da dor não estaria correta, pois é a nossa limitação evolutiva que nos leva a assimilar a dor não como um gesto de amor, mas como uma punição. Não é. Evoluímos pelo amor. A dor é resultado de nossa ignorância, nossa falta de resignação, da fé ainda tão abalável e do nosso orgulho que nos coloca como seres já bem aperfeiçoados, isentos de pormenores imorais, quando ainda temos muito a caminhar. 

Sabemos que a verdadeira felicidade não está disponível para nós, aqui neste mundo de provas e expiações em que nos encontramos. A felicidade de que eventualmente desfrutemos é uma felicidade parcial, pois ainda há muito a se aperfeiçoar em todas as existências que ainda estão vinculadas à Terra. E, também, é preciso considerar que aquilo que entendemos como felicidade muitas vezes é a verdadeira infelicidade moral e espiritual. Por exemplo: as alegrias exacerbadas que camuflam os sofrimentos, os prazeres materialistas ou carnais que reforçam os laços do corpo e não do espírito, a busca pela fama e o poder que tanto incentivam o orgulho e a vaidade, a vã agitação que estimula a ansiedade e se sobrepõe à fé. 

Liberdade ou escravidão

Enganamo-nos facilmente, quando não consideramos a vida imortal do espírito em suas diferentes fases de experiência. A liberdade de se fazer o que se quer, de se ter o que se deseja e de reagir sempre defensivamente a tudo que nos atormenta são muitas vezes considerados pontos importantes para o pleno exercício da liberdade individual. Pela explicação da lei divina, porém, pode ser exatamente o que nos escraviza a este plano terrestre, o que nos atrela ao chão. São as amarras das vontades, dos desejos, dos orgulhos e das vaidades o que nos dificulta a visão mais ampla que transpassa encarnações.

Jesus, como espírito mais elevado que esteve entre nós, sabendo das nossas imensas dificuldades, em sua infinita bondade nos auxilia com seus ensinamentos a saldarmos mais facilmente dívidas passadas, convidando-nos a amar, perdoar e trabalhar sempre. Além de nos oferecer descontos generosos ainda nos ensina que é possível acumular créditos, preparando-nos para o Reino de Deus através da prática sincera e verdadeira da caridade. 

A verdade é que, para todos os que sofrem (e sofremos de variadas formas), há um bom caminho para aliviar sentimentos menos construtivos: a fé aliada à prática da caridade. Dessa forma, poderemos perceber que nossas dores não são punições, mas incentivos à mudança, ao progresso, frutos do amor de Deus, que quer que suas criaturas evoluam através do próprio livre-arbítrio, da aprendizagem e do aperfeiçoamento constante. 

Que sejamos, pois, cada vez mais caridosos em nossas ações e relações e que tenhamos sempre a fé como guia de nossas existências.

 

*Rodrigo Romani Nicolau é professor de história.

A razão das aflições terrenas

A felicidade dos espíritos bem-aventurados não está na ociosidade contemplativa, que seria, uma eterna e fastidiosa inutilidade. A vida espiritual, em todos os níveis, é, ao contrário, uma constante atividade, mas uma atividade isenta de fadigas.

A bem-aventurança suprema consiste no gozo de todos os esplendores da criação que nenhuma linguagem humana poderia exprimir, que nem a imaginação mais fecunda poderia conceber; no conhecimento e a penetração de todas as coisas; na ausência de toda dor física e moral; numa satisfação íntima, uma serenidade de alma que nada altera; no amor puro que une todos os seres, em consequência da ausência de todo atrito pelo contato com os maus, e acima de tudo na visão de Deus e na compreensão de seus mistérios revelados aos mais dignos.

Ela está também nas funções em que se é feliz por ser delas encarregados. Os puros espíritos são os messias ou mensageiros de Deus para a transmissão e execução de suas vontades; eles cumprem as grandes missões, presidem à formação dos mundos e à harmonia geral do universo, tarefa gloriosa à qual só se chega pela perfeição. Unicamente os da ordem mais elevada compartilham os segredos de Deus, inspirando-se no seu pensamento, do qual são os representantes diretos. – O céu e o inferno, Allan Kardec, 1ª parte, cap.3.

(Redação)

As bem-aventuranças

Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus.
Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos.
Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia.
Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus. Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus.
Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.
Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós por minha causa. – Evangelho de Mateus, cap. 5:3–12.

(Redação).