A guerra que sensibiliza e impulsiona a humanidade

Por Eliana Haddad

Em 1914, Léon Denis vivenciava na França os horrores da Primeira Guerra Mundial e, durante mais de três anos, através de uma médium, acompanhou como reagiam e o que pensavam os espíritos sobre aquele episódio.

Inspirado pelas comunicações espirituais, acabou por escrever a obra O mundo invisível e a guerra, publicada originalmente em 1919, reunindo vários artigos que escrevera sobre o tema.

Estava o escritor e filósofo espírita com a alma ferida, o que não o impediu de comentar com lucidez e segurança a dificuldade moral que assolava a humanidade terrena e a necessidade ainda da dor para a sensibilização dos espíritos mais endurecidos que, segundo ele, iriam também despertar um dia para a verdadeira cultura de paz.

Triste consequência do orgulho e do egoísmo, individuais e coletivos, a guerra proporciona reflexões importantes para o progresso do espírito. Não passa despercebida, quer nos campos específicos de batalha, quer nos locais mais distantes do planeta. A globalização, comunicação rápida e a facilidade dos meios digitais permitem que se acompanhe aflitivamente combates ao vivo, com todos seus horrores e negociações.

A guerra na Ucrânia

A atual guerra na Ucrânia, deflagrada em 24 de fevereiro,  nos faz perguntar como isso ainda é possível em pleno século 21, depois de tantos acordos internacionais firmados após os trágicos episódios dos ataques nucleares americanos a Hiroshima e Nagasaki, em 1945. Também, como ficará o compromisso de paz assumido pelas potências mundiais para se evitar um risco planetário, ainda que detenham poderosos arsenais de guerra?

Vale lembrar ainda que sempre tivemos conflitos e que o uso da força foi sempre uma forma de exercer poder. Segundo a ONU, existem atualmente 30 regiões do mundo com a presença de conflitos armados. A maior parte destes conflitos envolve disputas por território e inclui, dentre as motivações, diferenças étnicas, religiosas e o controle de recursos naturais.

As perguntas de Kardec

No século 19, Allan Kardec, para compreender como atuava o mundo espiritual, também quis saber sobre as guerras. Fez perguntas importantes aos espíritos que se propuseram a auxiliá-lo para trazer o espiritismo ao conhecimento da humanidade terrena. O conteúdo mereceu destaque em O livro dos espíritos, lançado em Paris, em 1857. Na terceira parte da obra, dedicada às leis morais, foram revelados os aspectos espirituais da guerra, especificamente no capítulo 6 sobre a lei de destruição: “O que impele o homem à guerra? A guerra sempre ocorrerá na Terra? Qual o objetivo da Providência com relação à guerra? O que pensar daquele que suscita a guerra em proveito próprio? O homem é culpado pelos assassínios que comete durante a guerra”?

Responderam-lhe os espíritos que é a predominância da nossa natureza animal sobre a natureza espiritual e o transbordamento das paixões que nos motivam à guerra. “No estado de barbárie, os povos um só direito conhecem: o do mais forte. Por isso é que, para tais povos, o de guerra é um estado normal. À medida que o homem progride, menos frequente se torna a guerra, porque ele lhe evita as causas. E, quando se torna necessária, sabe fazê-la com humanidade.”

Isso explica por que ainda somos tão instintivos, não conseguindo fazer com que a razão e o equilíbrio preponderem em muitas das nossas atitudes. Isso também explicaria o desejo pela guerra, que não surge do nada, mas porque já encontra no homem uma predisposição à violência, própria do estado evolutivo em que nos encontramos. Isso é facilmente reconhecido, por exemplo, nas brigas das torcidas de futebol, nas agressões motivadas por nacionalismos exacerbados, no revide fácil, na banalização da força.

Os espíritos afirmam que a guerra só desaparecerá da Terra quando os homens compreenderem a justiça e praticarem a lei de Deus. “Nessa época, todos os povos serão irmãos”, complementaram. Segundo eles, o objetivo da Providência, ao tornar necessária a guerra, está no fato de a guerra permitir o exercício da liberdade e o impulso ao progresso. Sua subjugação temporária acaba por pressionar os povos a progredirem mais depressa. É enorme, porém, a responsabilidade de quem suscita a guerra para proveito próprio. “Grande culpado. Muitas existências lhe serão necessárias para expiar todos os assassínios de que haja sido causa, porquanto responderá por todos os homens cuja morte tenha causado para satisfazer à sua ambição”, afirmam.

A situação é diferente quanto aos homens no campo de batalha. Eles não têm culpa dos assassínios que praticam, se forem constrangidos pela força. Só serão culpados pelas crueldades que venham a cometer, sendo levado em conta o sentimento de humanidade com que proceda.

Os espíritos na guerra

Durante uma batalha há espíritos assistindo e amparando cada um dos exércitos, estimulando-lhes a coragem, conforme enaltecido até mesmo pela mitologia, quando os antigos asseguravam que havia diversos deuses tomando o partido deste ou daquele povo.

 Há espíritos que se identificam com causas injustas, uma vez que se comprazem na discórdia e na destruição. Há os que podem influenciar o general também na concepção de seus planos de campanha para levá-lo à derrota, se não tiver critério bastante para distinguir uma ideia falsa, como também poderá ser guiado por uma espécie de segunda vista, uma visão intuitiva, que lhe mostre de antemão o resultado de seus planos.

Alguns espíritos que sucumbem no tumulto dos combates podem continuar a se interessar pela batalha; outros, se afastam.

Dá-se nos combates o que ocorre em todos os casos de morte violenta: no primeiro momento o espírito fica surpreendido e como que atordoado. Julga não estar morto. Parece-lhe que ainda toma parte na ação. Só pouco a pouco a realidade lhe surge.

Os espíritos informaram que são raras as mortes verdadeiramente instantâneas. Na maioria dos casos, o espírito cujo corpo acaba de ser mortalmente ferido não tem consciência imediata desse fato. Somente quando ele começa a se reconhecer é que se pode distinguir o espírito, a mover-se ao lado do cadáver. Parece isso tão natural, que nenhum efeito desagradável causa a vista do corpo morto. (O livro dos espíritos, p. 548)

A visão de Léon Denis 

O homem, espírito imortal, é um centro de vida e de atividade que, de todas as vicissitudes, todas as provações, mesmo as mais cruéis, deve conseguir outros processos pelos quais se expandam cada vez mais as energias existentes em nosso íntimo.

As grandes emoções nos fazem esquecer as preocupações corriqueiras (muitas vezes frívolas) da vida, abrindo em nós uma passagem para as influências do Espaço.

Nos mundos mais adiantados, nas humanidades superiores à nossa, os flagelos não têm mais razão de ser, não existindo a guerra, porque a sabedoria do espírito elimina todos os conflitos.

Os habitantes dos mundos felizes, iluminados pelas verdades eternas, com a aquisição dos poderes da inteligência e do coração, não têm mais necessidade desses terríveis estímulos para despertar e cultivar os recursos ocultos da alma.

É preciso sofrer para sentir e amar, crescer e elevar-se. Só o sofrimento domina os furores da paixão, desperta em nós as meditações profundas e revela às almas o que há de melhor, mais belo e mais nobre no Universo: a piedade, a caridade e a bondade! (Léon Denis em O mundo invisível e a guerra).

O mundo pelo avesso

Dizia-me recentemente um amigo: “Estão virando o mundo pelo avesso!” E a impressão que se tem é precisamente essa. Alguém enfiou a mão no fundo e puxou o avesso do mundo. Todos os princípios morais estão sendo atirados no lixo. Matar, violar, achincalhar, agredir e desrespeitar são as novas palavras de ordem. E tudo isso por quê? Há um século o Espiritismo proclamou a existência de uma lei de evolução dos mundos e demonstrou que o nosso mundo, o planetinha humilde em que viajamos no espaço, está passando por uma nova etapa de sua evolução. 

Quem conhece um pouco de geologia sabe que já fomos um mundo primitivo, sem vida. Quem conhece um pouco de história e de antropologia sabe que já fomos uma humanidade animalesca, selvagem, evoluindo para as civilizações agrárias e avançando depois, lenta e penosamente, até os nossos dias. E quem enxergar um palmo adiante do nariz está vendo que damos agora um salto para uma nova civilização. É fácil compreender que esse salto coletivo exige enorme esforço. Todos sabemos que temos de mudar, de passar de um sistema de vida para outro, de reformar as nossas ideias, mas nem todos compreendemos o que é isso. A maioria das criaturas está procedendo como ratos de navio na hora do naufrágio. 

É a hora do “vale tudo”. Ninguém se engane, porém, diante do tumulto do mundo. Não caminhamos para a confusão, para a anarquia, para a baderna, mas para um mundo melhor. Os que lutam pelo bem e pela ordem, pela preservação dos grandes princípios morais que dignificam a vida humana, pela cultura e a beleza, pela bondade e a fraternidade, acabarão vencendo. “Os pacíficos herdarão a Terra”, como ensinou Jesus. Os baderneiros serão simplesmente transferidos para mundos inferiores, pela ação compulsória da morte. O mundo se renova pela sucessão das gerações. Tudo passa e a vida continua triunfante o seu curso evolutivo. O espiritismo nos ensina que esta hora do mundo é como a das trevas que precedem o alvorecer. Mas é preciso estudá-lo para bem compreender o que se passa. Uma leitura atenta de O evangelho segundo o espiritismo e um estudo sério de O livro dos espíritos nos deixarão tranquilos nesta hora de agitações, de guerras e rumores de guerras. (J. Herculano Pires em O infinito e o finito).