A conversa de Allan Kardec com São Vicente de Paulo sobre a caridade
Por Eliana Haddad
Muito repetida, mas nem sempre compreendida, a ideia de caridade permeia todas as obras do espiritismo. Sob a bandeira “fora da caridade não há salvação”, Allan Kardec fez, no século 19, uma crítica às interpretações literais bíblicas sobre o que era preciso para se alcançar a verdade e, consequentemente, a felicidade. Considerou que não seria a Igreja instituída a condição possível à salvação humana, mas sim o esforço constante na prática do amor, lei universal que a todos preside, a envolver a responsabilidade e o cuidado com as virtudes a serem revisadas em nós e por nós.
Na Revista Espírita de agosto de 1858, há um texto intitulado “A caridade”, que divulga uma instrutiva comunicação do espírito São Vicente de Paulo, ocorrida na sessão de 8 de junho do mesmo ano, na Sociedade de Estudos Espíritas de Paris.
Transcrito parcialmente nos livros Imitação do evangelho segundo o espiritismo, no capítulo 13, item 165 e, depois, em O evangelho segundo o espiritismo, capítulo 13, item 12, o texto merece leitura atenta de alguns trechos importantes da mensagem, incluindo uma interessante seção de perguntas e respostas sobre o assunto, numa conversa direta entre Allan Kardec e São Vicente de Paulo (veja ao lado), contendo pontuais esclarecimentos sobre a validade da esmola, o possível risco de acomodação que ela desencadeia, o papel de cada envolvido na ação e o discernimento na hora da ajuda. Confira os principais trechos da mensagem de São Vicente de Paulo e o instigante diálogo que Kardec teve com São Vicente de Paulo e que acabaram não entrando na edição dos livros citados.
A chave da caridade
“Sede bons e caridosos: essa a chave dos céus, chave que tendes em vossas mãos. Toda a eterna felicidade se contém neste preceito: ‘amai-vos uns aos outros’. Não pode a alma elevar-se às altas regiões espirituais, senão pelo devotamento ao próximo. Somente nos arroubos da caridade encontra ela ventura e consolação.”
O pulsar do coração
“Sede bons, amparai os vossos irmãos, deixai de lado a horrenda chaga do egoísmo. Cumprido esse dever, abrir-se-vos-á o caminho da felicidade eterna. Ao demais, qual dentre vós ainda não sentiu o coração pulsar de júbilo, de íntima alegria, à narrativa de um ato de bela dedicação, de uma obra verdadeiramente caridosa? Se unicamente buscásseis a volúpia que uma ação boa proporciona, conservar-vos-íeis sempre na senda do progresso espiritual. Não vos faltam os exemplos; rara é apenas a boa-vontade”.
Os homens de bem na história
“Notai que a vossa história guarda piedosa lembrança de uma multidão de homens de bem. Eu vos citaria aos milhares aqueles cuja moral não tinha por objetivo senão melhorar o vosso globo. Não vos disse o Cristo tudo o que concerne às virtudes da caridade e do amor? Por que desprezar os seus ensinamentos divinos? Por que fechar o ouvido às suas divinas palavras, o coração a todos os seus bondosos preceitos?
Homens fortes, cingi-vos; homens fracos, fazei da vossa brandura, da vossa fé, as vossas armas. Sede mais persuasivos, mais constantes na propagação da vossa nova doutrina. (...) As manifestações espíritas unicamente se produzem para os de olhos fechados e corações indóceis. Há, entre vós, homens que têm a cumprir missões de amor e de caridade: escutai-os, exaltai a sua voz; fazei que resplandeçam seus méritos e sereis exaltados pelo desinteresse e pela fé viva de que vos penetrarão.”
O edifício das virtudes terrenas
“A caridade é a virtude fundamental sobre que há de repousar todo o edifício das virtudes terrenas. Sem ela não existem as outras. Sem a caridade não há esperar melhor sorte, não há interesse moral que nos guie; sem a caridade não há fé, pois a fé não é mais do que pura luminosidade que torna brilhante uma alma caridosa; é a sua consequência decisiva.
A caridade é, em todos os mundos, a eterna âncora da salvação; é a mais pura emanação do próprio Criador; é a sua própria virtude, dada por ele à criatura. Como desprezar essa bondade suprema?”
A alegria espiritual
“(...) Homens de bem, de boa e firme vontade, uni-vos para continuar amplamente a obra de propagação da caridade; no exercício mesmo dessa virtude, encontrareis a vossa recompensa; não há alegria espiritual que ela não proporcione já na vida presente. Sede unidos, amai-vos uns aos outros, segundo os preceitos do Cristo.”
O que Kardec perguntou a São Vicente
Ao agradecer São Vicente de Paulo “a bela e boa comunicação”, Kardec dele obtém também permissão para lhe fazer perguntas complementares sobre o assunto. “Eu o desejo muito; meu objetivo é vos esclarecer; perguntai o que quiserdes”, disse Vicente de Paulo.
Kardec: Pode-se entender a caridade de duas maneiras: a esmola propriamente dita e o amor aos semelhantes. Quando dissestes que era necessário que o coração se abrisse à súplica do infeliz que nos estendesse a mão, sem questionarmos se não seria fingida a sua miséria, não quisestes falar da caridade do ponto de vista da esmola?
Vicente de Paulo: Sim; somente nesse parágrafo.
Kardec: Dissestes que era preciso deixar à justiça de Deus a apreciação da falsa miséria. Parece-nos, entretanto, que dar sem discernimento às pessoas que não têm necessidade, ou que poderiam ganhar a vida num trabalho honesto, será estimular o vício e a preguiça. Se os preguiçosos encontrassem aberta com muita facilidade a bolsa dos outros, multiplicar-se-iam ao infinito, em prejuízo dos verdadeiros infelizes.
R: Podeis discernir os que podem trabalhar e, então, a caridade vos obriga a fazer tudo para lhes proporcionar trabalho; entretanto, também existem falsos pobres, capazes de simular com habilidade misérias que não possuem; é para os tais que se deve deixar a Deus toda a justiça.
Kardec: Aquele que não pode dar senão um centavo, e que deve escolher entre dois infelizes que lhe pedem, não tem razão de inquirir quem, de fato, tem mais necessidade, ou deve dar sem exame ao primeiro que aparecer?
R: Deve dar ao que pareça sofrer mais.
Kardec: Não se deve considerar também como fazendo parte da caridade o modo por que é feita?
R: É sobretudo na maneira de fazer a caridade que está o seu maior mérito; a bondade é sempre o indício de uma bela alma.
Kardec: Que tipo de mérito concedeis àqueles a quem chamamos de benfeitores de ocasião?
R: Só fazem o bem pela metade. Seus benefícios não lhes aproveitam.
Kardec: Disse Jesus: “Que vossa mão direita não saiba o que faz vossa mão esquerda.” Têm algum mérito aqueles que dão por ostentação?
R: Apenas o mérito do orgulho, pelo que serão punidos.
Kardec: Em sua acepção mais abrangente, a caridade cristã não compreende igualmente a doçura, a benevolência e a indulgência para com as fraquezas dos outros?
R: Imitai Jesus; ele vos disse tudo isso. Escutai-o mais que nunca.
Kardec: A caridade é bem compreendida quando praticada exclusivamente entre pessoas que professam a mesma opinião ou pertencem a um mesmo partido?
R: Não. É sobretudo o espírito de seita e de partido que se deve abolir, porquanto todos os homens são irmãos. É sobre essa questão que concentramos os nossos esforços.
Kardec: Suponhamos que alguém veja dois homens em perigo, mas não pode salvar senão um. Qual dos dois deverá salvar, considerando-se que um deles é seu amigo e o outro é seu inimigo?
R: Deve salvar o amigo, pois este amigo poderia acusá-lo de não gostar dele; quanto ao outro, Deus se encarregará.
Nascido em 1581, na aldeia de Pouy, ao Sul da França, Vicente de Paulo veio ao mundo em família que possuía terras e um rebanho de vacas, ovelhas e porcos, de cujas pastagens acabou por se encarregar. Cedo, nele se manifestam a inteligência aguda, o olhar observador, o espírito vivo, o coração generoso e sincera devoção a Maria, o que motiva os pais o encaminhar aos estudos eclesiásticos, ordenando-se sacerdote aos 19 anos.
Em 1610, a rainha Margarida, ex-esposa do rei Henrique IV, admite Vicente entre seus esmoleres (encarregados de distribuir as esmolas). Afetuoso, visita os doentes, abranda desavenças, dissipa dúvidas, instrui na fé os empregados e a todos presta incontáveis serviços, até o dia em que opta por se dedicar à instrução e ao serviço dos camponeses.
Em 1617, dá início à Confraria da Caridade, associação de mulheres, com o objetivo de visitar e prestar cuidados aos enfermos e posteriormente a associação de homens, para se dedicar aos idosos, viúvas, órfãos, prisioneiros, incentivando a organização de cooperativas agrícolas e implantando pequenas manufaturas, criando também centros de aprendizagem a crianças.
No século 19, é um dos espíritos a participar da codificação, em O livro dos espíritos, O livro dos médiuns e O evangelho segundo o espiritismo. (Baseado em texto de Maria Helena Marcon, Jornal Mundo Espírita, 2013.)
Para saber mais:
1. O evangelho segundo o espiritismo, cap. 13, itens 9 a 16.
3. Revista Espírita, julho de 1866. “Sobre o projeto de caixa geral de auxílio e outras instituições para os espíritas”.
4. O livro dos espíritos, 2.ed., p. 886, 929 e 930.