Adoção: uma construção de amor e verdade

Por Eliana Haddad 

Pediatra e homeopata Marco Antonio Pereira dos Santos e Pedagoga Maria Cristina Ferreira dos Santos

Pediatra e homeopata Marco Antonio Pereira dos Santos e Pedagoga Maria Cristina Ferreira dos Santos

Adoção é um projeto de grande parceria, uma construção de amor e verdade. Em 1993, surgia a ideia do Projeto Acalanto, um grupo de apoio à adoção na cidade de São Paulo. Convidado para uma entrevista ao Correio Fraterno sobre o tema, o pediatra e homeopata Marco Antonio Pereira dos Santos, 64 anos, foi logo perguntando: Só eu? E a minha esposa? Eles têm nove filhos, sete adotivos. Entre irmãos, tios, filhos, sobrinhos, netos e bisnetos, já perderam a conta do número de adotados da família. São cerca de 50 e a história vem se repetindo a cada nova geração. Abraçando a causa em várias frentes, também foi dele e da esposa, Cristina Ferreira dos Santos, a iniciativa da criação do Dia Nacional da Adoção, comemorado no Brasil em 25 de maio. Juntos há mais de 45 anos, eles abriram o coração e esclareceram aspectos importantes sobre a experiência adotiva.

Como tudo começou?
Marco: Somos espíritas desde o berço. Jovens, éramos amigos no Grupo Espírita Batuíra, em São Paulo. Ela trabalhava na evangelização infantil e eu era diretor da mocidade. Minha mãe, aos 50 anos, adotou uma criança. Eu tinha seis anos quando o Paulo Sérgio chegou em casa. Depois, ela adotou mais três, uma delas com deficiência. Somos quatro irmãos biológicos e quatro adotivos. Aos 89 anos, minha mãe tem mais de 50 netos, cerca de 20 bisnetos e já tem trineta. Meu pai já é falecido.


E o preconceito na época?
Éramos crianças, não tínhamos uma ideia muito clara sobre isso. Dentro do meio espírita, a família foi muito bem aceita, mas fomos sentindo o preconceito à medida do convívio, porque o Paulo Sérgio estudava na mesma escola, íamos aos mesmos lugares. Eu sentia a reação das pessoas, não tanto pela adoção, mas por ele ser negro. Não havia legislação. Muita gente tinha 'filhos de criação'. Tudo muito velado, evitando-se inclusive de contar para a criança sua história.


Essa situação mudou?
Hoje é exatamente o contrário. Desde o primeiro momento, orientamos nos grupos de apoio que a adoção deve ser uma relação baseada no amor e na verdade. Se não houver amor, construído, já que não existe amor pronto, será um ideal frustrado. Adoção não termina no processo legal, quando você recebe a certidão de nascimento e leva a criança para casa. Ela apenas começa.


Como vocês se decidiram pela adoção?
Casamos em 1980. Tivemos um casal de filhos. Felizes, quisemos agradecer a Deus pela bênção recebida, pelos filhos queridos. Dissemos a Ele que, se estivesse no nosso projeto espiritual, gostaríamos também de ajudar outras crianças. E elas foram chegando.


Como analisam essa experiência?
A experiência adotiva transcende. Começamos a fazer palestras dentro do movimento espírita e passamos a ser convidados a falar sobre o tema em congressos e em várias reportagens na tv. Também o meu trabalho em salas de parto favorecia o contato com médicos amigos, que ao se depararem com crianças abandonadas nos hospitais, logo me ligavam, porque sabiam que eu as encaminharia para outros casais, o que era possível na ocasião.
Além de todas essas crianças na família, temos pelo menos 20 casos de adoção entre amigos, que vieram dessas situações. Surgiu então a ideia de formalizarmos este trabalho grupo e, juntamente com duas irmãs e o meu irmão Paulo Sérgio, iniciamos o Projeto Acalanto, Alugamos uma casa, disponibilizamos um telefone e atendíamos presencialmente aos sábados, e em grupos: os que queriam adotar, mas não entendiam o processo; os que já estavam decididos, mas precisavam de esclarecimentos sobre os trâmites, documentação etc.


Financeiramente, como vocês criaram nove filhos?
Quando começamos a nossa vida, eu ganhava dois salários mínimos como residente do Hospital das Clínicas e a Cristina ganhava outro, como professora da Prefeitura São Paulo. Acredito que na vida, quando pedimos, Deus nos concede alguns problemas e espera que saiamos em busca da solução. Diante das adversidades, nossas potencialidades também se desenvolvem. Há quatro pontos importantes na reforma íntima: confiança em Deus, coragem nas adversidades, prática constante do bem e gratidão. Sem o esforço para desenvolvê-los, não vou saber viver todas as dificuldades, inclusive a econômica.


O que leva as pessoas a buscarem a adoção?
Um quarto dos casais tem problema de esterilidade. Há ainda as laqueaduras, as vasectomias, o segundo casamento etc. A idade avançada da mulher também é um grande fator, hoje levadas primeiramente a pensar na sua formação e profissão e depois em constituir família. É claro que a lei biológica acaba influenciando, mas não podemos esquecer que a lei espiritual é soberana e muito mais importante do que tudo isso.

frase.jpg


Existiria assim um projeto divino antes do projeto humano na adoção?
Olha, muitas vezes a adoção nem se realiza. Mas há casos também em que este projeto pode estar previsto para você. De repente, você acorda para essa possibilidade. Isso não existiria, se não houvesse algo mais que um projeto idealizado de vida. Por isso dizemos que em matéria de adoção não basta querer. São vários fatores.


E sobre as mães que doam seus filhos para adoção?
No livro que publiquei em 1996, O evangelho da adoção, há uma oração destinada a elas [Às mães que doaram seus filhos]. Certa feita Chico [Xavier] a leu, gostou, e me escreveu uma carta, convidando-me para ir a Uberaba. Chegando lá, ele me perguntou: "foi você, meu filho, quem escreveu isso?" E eu disse: "acho que não". Aí ele me respondeu: "então, está tudo certo. Isso é Maria Dolores." Adoção é um ato que nos inspira.


E o que vocês têm a dizer sobre o fato de se idealizar a adoção?
Há na adoção a idealização de crianças brancas e recém-nascidas. Mas a realidade do nosso país é outra. São crianças maiores, pardas ou negras, com algum comprometimento leve de saúde: uma anemia, por exemplo, plenamente tratável. Muitas vezes, essa criança vai ser completamente o contrário do que se sonha, mas é a que você precisa, é a que você tem lá algum ajuste a ser realizado e, se não pôde tê-la biologicamente, nada impede que você tenha com ela uma relação de amor construída nas adversidades.
Cristina: A idealização acontece tanto com o filho adotivo como com o biológico. Isso tem a ver com a maturidade do projeto família e com o que realmente se pretende. Tem-se que entender que a criança é um espírito encarnado e, adotiva ou biológica, traz uma história, um passado. O ideal é muito relativo e nem sempre se realiza.


E a ideia de que filho adotivo vai trazer problema mais tarde?
Hitler era filho biológico e trouxe a morte para no mínimo 6 milhões de pessoas. Moisés, adotivo, abandonado no leito do rio, trouxe a primeira revelação de Deus à humanidade. A primeira coisa que enfatizamos em nossas conversas no meio espírita é que nossos filhos são espíritos e estão crianças. Realmente, adotivos têm uma carga de sofrimento maior, pela rejeição que sofreram desde o primeiro momento da sua concepção. Mas isso tudo pode ser trabalhado em outros contextos, através do amor, da dedicação. Essa criança, no futuro, pode usar drogas, ter transtorno psicológico, psiquiátrico, uma esquizofrenia? Sim, assim como sua mãe biológica pode ter também geneticamente passado a você alguma predisposição, que aguarda o momento certo de eclodir. Penso que quem adota confia mais no amor e na verdade do que na carga genética que aquela criança possa trazer.


Quem pode adotar uma criança? É fácil?
Qualquer brasileiro, de qualquer sexo, independentemente do estado civil, maior de 18 anos, com uma diferença mínima de 16 anos entre o adotante e o adotado. A pessoa tem que se inscrever na vara de infância e juventude da região em que reside. Será mais ou menos fácil, dependendo do que se projeta. Se você quer uma menina, recém-nascida, loira, de olhos azuis, vai ficar muito tempo na fila, se conseguir. Se quiser um menino, de 4 anos, pardo, talvez com algum probleminha orgânico, suave, conseguirá em bem poucos anos.


Pode-se fazer uma relação entre as crianças para a adoção e o número de interessados na fila?
Mais de 80% das crianças que estão acolhidas não estão liberados para a adoção, que requer um processo jurídico, que em média demora dois anos, pois é preciso destituir o poder familiar para serem transferidas ao Estado, para que o Estado possa transfira-las a outros. Essas crianças ficam aguardando... Mais que isso: 40% delas são negras e com idade maior, de 12 a 14 anos.
Vejo a adoção como um reflexo tardio da miséria, porque pais, com boas condições de um sistema de saúde e educação do Estado, com proteção social adequada, não abandonam um filho. A maternidade é lei divina, uma situação natural de amor. São laços biológicos muito fortes que Deus criou.


Adoção tem a ver com caridade?
A noção de caridade nem sempre é a adequada, por pensarmos muitas vezes que sempre é o outro que é o devedor, o pobre, o que tem que ser ajudado, quando na verdade nós é que somos os necessitados.


E adotar uma criança para ser feliz? É aconselhável?
Na mulher, em uma certa idade, explode o desejo de ser mãe. É como que um grito biológico das suas células, é natural. Ela traz em seus cromossomos a mensagem dessa condição incrível que Deus lhe deu. É natural querer realizar isso.


Ambos passam a ideia de terem construído uma família normal, com acertos e desacertos. É isso mesmo?
Sim, temos também dificuldades, normais, como toda família. A adoção é um processo de construir uma família de uma forma diferente, mas com todos os problemas ou até mais que a família biológica. Não existe nada mágico, felicidade pronta.


Cristina: Tudo depende da relação da criança com as vidas passadas. Se é um filho que vem por laços de amizade, amor, a conversa é bem diferente do que a com quem vem por resgate. Se é um espírito amigo nosso, que nasceu em uma comunidade, por exemplo, foi abandonado, e a espiritualidade consegue fazer uma 'reengenharia' para que ele se aproxime, a gente se reconhece facilmente. Pego no colo e em um minuto eu falo: ele é meu filho! Não podemos esquecer também que há influências espirituais contrárias. Há espíritos que não querem que o reencontro aconteça. Tudo isso deve ser colocado em pauta, com trabalho espiritual de passes e desobsessão para ajudar o processo.


A adoção é oportunidade de reajuste entre espíritos?
Eu diria mais. A adoção é a última fase do tratamento desobsessivo. Pela dificuldade, muitas vezes o espírito vai reencarnar longe de você, sendo depois trazido para que você transfira a ele os laços de amor, afetividade, para que recomecem uma nova história. Família não é um conto de fadas, mas um laboratório de experiências. Às vezes precisa de várias tentativas e erros para dar certo. A vida é linda.


Sinceramente, na hora do conflito, vocês sentem alguma diferença entre os filhos biológicos e os adotivos?
Cristina: Não, porque sempre os assumi como filhos. É para com todos uma relação de muito amor, graças a Deus. Divaldo Franco sempre responde sobre adoção: "São os filhos que você largou no caminho, caminho que agora está sendo retomado."
Marco: Acredito também que há casos de carona. Você está passando no lugar, tem uma vaga no seu carro, e diz: Você vai para lá? Eu te levo. Não vejo a adoção somente como resgate. Deus não quer a morte do pecador, mas a mudança do seu comportamento. É por isso que Ele nos dá tantas oportunidades. Quanto mais eu penso em devedores, mais crio relações de culpa, de medo, insegurança, quando elas têm que ser proveitosas, de felicidade. Precisamos parar com isso.

• Adoção Passo a Passo: [www.adocaopassoapasso.com.br]

• Angaad – Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção: www.angaad.org.br

(Artigo original publicado no Jornal Correio Fraterno)