Sacramento: religiosidade e fenômenos mediúnicos
Por Eduardo Carvalho Monteiro
Sacramento, sede da Fazenda Santa Maria, onde o médium Sinhô Mariano desenvolveu sua mediunidade, se preparando para receber Eurípedes Barsanulfo, um espírito de hierarquia superior, foi fundada com a predestinação de ser “Pasto Espiritual em bem das almas”, ou seja, segundo terminologia da época, para ser um lugar especial de evangelização. Essa terminologia foi utilizada pelo próprio rei ao autorizar a fundação de uma capela no Desemboque.
Segundo o historiador Amir Salomão Jacob, que detém os documentos originais da fundação de Sacramento, a expressão Santíssimo Sacramento ou Capella do Santíssimo Sacramento pelo Patrocínio de Maria é repetida na documentação 53 vezes, como que reafirmando a vocação da cidade de Pasto Espiritual.
O fundador da cidade foi o Cônego Hermógenes Casimiro de Araújo Brunwich, que ergueu à margem esquerda do Ribeirão Borá a Capela do Santíssimo Sacramento, apresentada sobre o Patrocínio de Maria Santíssima.
Depois de estabelecer o marco inicial da cidade e formar um arraial que daria origem a Sacramento, Cônego Hermógenes, que tinha recebido a incumbência do Rei D. João VI de demarcar a sesmaria que ia do Desemboque até Uberaba com extensão de 8.000 alqueires mineiros, ao encontrar uma clareira na floresta, local de repouso de viajantes, denominou aquele local de Fazenda de Santa Maria. Mais tarde, o Desemboque tornou-se ponto de contrabando de ouro e pedras preciosas, por causa do rio, propício para as fugas da estrada oficial utilizada. Desemboque, sede da Comarca da Farinha Podre (hoje chamado de Triângulo Mineiro) era tão famoso que deu origem a todas as cidades da região e até de Goiás. As proximidades com o Rio Grande, a fartura de caça, pesca e as terras férteis, favoreciam a estada de viajantes e contrabandistas no local.
Essa clareira ainda pode ser identificada próxima ao casarão, sede da fazenda, e hoje abriga uma capela do século 19, que está sendo restaurada, e resquícios de um antigo altar onde os escravos faziam suas preces e oferendas. Capitães do mato destruíram o altar original. Próximas ainda do local, há rotas usadas pelos escravos para chegarem às senzalas.
A Fazenda Santa Maria foi dada pelo Cônego Hermógenes para seu irmão, também sacerdote, Antonio Alves Portela Damiese de Araújo, Este teve um filho bastardo com uma escrava de nome Heleodora. Esse filho, Capitão Joaquim de Araújo São Roque, herdou a Fazenda Santa Maria e constituiu vasta prole. Seus descendentes ainda detêm a propriedade dividida entre vários moradores. Conta-se que o Capitão São Roque era muito condescendente com os escravos, que tinham privilégios pouco comuns para a época.
O médium Sinhô Mariano
Mariano da Cunha, tratado familiarmente por Tio Sinhô e conhecido da comunidade local como Sinhô Mariano, nasceu em Sacramento-MG, em 17 de abril de 1875 e desencarnou na Fazenda Santa Maria, em 27 de abril de 1949. Criado em lar de católicos fervorosos, com vários parentes sacerdotes e muito influentes na sociedade da região, Sinhô Mariano possuía, pelo lado da avó paterna, dois tios avós padres, um deles homem notável em seu tempo.Vigário da Capela Imperial, doutor em teologia, latinista, professor de Ciências e político, tendo sido deputado às cortes de Portugal e às Assembleias Provinciais e Geral, em sucessivas legislaturas.
Apesar dessa formação, Mariano foi, em sua juventude, materialista convicto, demonstrando aversão às religiões tradicionais. Médium, no entanto, desde criança via “almas do outro mundo” sem se importar com essas ocorrências. Essa situação de comodismo iria mudar quando estranhos fenômenos começaram a acontecer na Fazenda Santa Maria, onde residia, então, recém-casado com sua prima Escolástica.
Testemunhas da época afirmam que os fenômenos de voz direta em Santa Maria eram de tal modo que os espíritos se comunicavam como nos tempos dos druidas, servindo-se até mesmo do vento na ramalhada de árvores.
Para a comunidade rural, o que acontecia eram “coisas do Demônio”: pedras voavam sobre os telhados, vozes que não se sabia de onde vinham, assobios, médiuns tomados de espíritos. Certa feita, um tamborete de propriedade de Mariano foi totalmente desmontado por um espírito, sem contato físico de ninguém.
Mariano, sabedor que seu antigo patrão Frederico Peiró, morador nas Paineiras (hoje Peirópolis), a 28 Km de Uberaba, havia se convertido ao espiritismo no final do século 19, recorre a ele para tentar solucionar o problema. Peiró vai a Santa Maria e diagnostica a grande quantidade de médiuns que tinha o local entre seus habitantes. Após algumas sessões, os fenômenos cessam, mas havia necessidade de continuar a tarefa iniciada e para isso Peiró e seu companheiro Maximiliano Alonso, do Núcleo Espírita de Paineiras, prosseguem, dando retaguarda ao primeiro grupo espírita de Santa Maria.
Fundação do Centro Espírita Fé e Amor
As reuniões eram realizadas nas casas dos moradores da Fazenda, mas, a profusão de médiuns de efeitos físicos ocasionava situações inusitadas. Era tudo precário e muito difícil. Por esse motivo, Sinhô Mariano e seu amigo inseparável, Delfino Pereira de Araújo, fundam na Fazenda o Centro Espírita Fé e Amor, em 28 de agosto de 1900. Outros médiuns que ali atuavam era Jason e Aristides, ambos muito simples e sem qualquer estudo. Já Delfino era um homem culto, conferencista que criou também um jornal e uma banda. Foi grande benfeitor de Santa Maria, embora morador de Vargem. Mariano e Delfino dividiam a direção dos trabalhos e o serviço da mediunidade. Os trabalhos iniciavam-se todos os domingos às 17 horas. Havia desenvolvimento mediúnico, passes e os médiuns eram colocados em ordem para dar passividade aos espíritos que eram doutrinados na frente do público. No último domingo do mês, só participavam médiuns já experientes, pois era dia em que as crianças também participavam. Estudo das obras básicas procurava instruir o público que não conhecia o espiritismo.
Curiosamente, faziam uso do que eles chamavam de “a mesinha telegráfica”, igualmente às manifestações de tiptologia com as mesas girantes do começo do espiritismo. Sinhô Mariano e outros dois médiuns de efeitos físicos eram os agentes do fenômeno e Mariano era quem decifrava as palavras e frases ditadas pelas batidas da mesa e passava-as para que o secretário Sábio Garcia as escrevesse. Um código suplementar criado pelos dois planos, fazia com que o espírito comunicante balançasse a mesa na direção da pessoa que queria cumprimentar. Sinhô Mariano, depois da sessão decifrava e transcrevia para o livro de atas as mensagens. Conta-se que sua caligrafia era perfeita.
Também participavam das sessões com a “mesinha telegráfica” d. Areolina, d.Leonor Mortosa da Cunha, Sara da Cunha (filha de Tio Sinhô) e Cândida Honorato.
Sinhô Mariano fundou e manteve por mais de 30 anos uma farmácia homeopática que atendia gratuitamente ao povo, contando, para isso, com o auxílio de alguns companheiros abnegados, trabalho esse que também caracterizou a vida de Eurípedes Barsanulfo, que desenvolveu a mediunidade junto ao tio em Santa Maria.
Não foi sem muita luta, no entanto, que o Centro Espírita Fé e Amor pôde ser criado. Quando Sinhô Mariano anunciou a criação do centro, naqueles recuados tempos de desconhecimento e no seio de uma família de muita tradição católica e preconceituosa, teve a oposição frontal de quase todos, exceto sua avó, Joaquina Silvana de Araújo, e a mulher do sr. Roque, Ana Petrolina de Araújo (Tia Aninha), avó da Tia Herondina, segunda esposa do próprio Tio Sinhô, irmão de D.Meca, de quem falaremos adiante. Os demais eram contra a providencial iniciativa que, ali, em Santa Maria, daria curso a um planejamento da espiritualidade para que aquele pedaço de chão abençoado se tornasse um polo difusor da Doutrina Espírita e espalhasse um facho de luz por toda a região, expandindo-se para Peirópolis, Sacramento, Conquista Uberaba, Araxá, Franca, Ribeirão Preto, Igarapava, Palmelo (em Goiás), enfim todo o Triângulo, o Norte do Estado de São Paulo e o Sul do Estado de Goiás, projetando-se principalmente, a figura do grande missionário Eurípedes Barsanulfo, ilustre sobrinho e discípulo de Mariano da Cunha Júnior, seu iniciador no espiritismo.
Outra curiosidade do Centro Espírita Fé e Amor era o vestuário que as frequentadoras usavam ditado pelos espíritos ao Sinhô Mariano: vestido preto com uma prega e blusa branca com camadas de pregas e as Letras F e A estampadas na frente. Todos os detalhes tinham suas devidas explicações pelos espíritos..
Sessão 3
Como estamos vendo, alguns costumes pitorescos faziam parte dos idealistas trabalhos daquela comunidade rural. Não se pode, hoje, analisar com rigor e criticar esses costumes, porque faziam parte de um contexto de época e eram realizados com muita pureza de coração e boas intenções. Nossa mentalidade da era cibernética tem que fazer uma concessão e compreender o tempo e os costumes sociais a que estavam sujeitos os habitantes de Santa Maria.
Assim, um dos trabalhos instituídos era a “Sessão do dia 3”.
A “Sessão do dia 3” foi instituída na forma de trabalho de moralização somente para os homens, que deveriam ser portadores de cadernetas, onde eram lançadas breves mensagens dos mentores espirituais. Não eram todos os que frequentavam os trabalhos do dia 3.
Além dos trabalhadores da instituição, aos vizinhos moradores em Santa Maria eram proibidos jogos de carta em casa, assim como o uso de bebidas alcoólicas nos dias que antecediam a sessão dos trabalhos do dia 3.
Este trabalho foi mantido por décadas e após o desencarne de Sinhô Mariano pela médium Maria Cantora e pela atual presidente do Centro Espírita Fé e Amor, D. Iola Ramos da Cunha, que só o interrompeu por orientação da espiritualidade através de Chico Xavier.
Esse trabalho tinha um hino que era cantado por todos e uma prece que abria e fechava a reunião pronunciada por Sinhô Mariano:
Oh! Pai Celeste, que estais no céu, excelso trono de glória enviando aos seus filhos, Jesus Amantíssimo, Mestre com todos os poderes e bondade, essa oração é para respeitar e santificar seu Bendito nome: vem a nós o reino de vossa esperança; seja feita a vossa vontade e não a nossa, assim na Terra como no Céu; dai-nos hoje o pão de vossa Doutrina; perdoai nossos crimes e nossas ofensas, que tinha como dúvida perante a vossa lei, pedimos que nos livre de todos os males.
Pela fé que temos em Jesus, teremos a esperança na nossa salvação, assim seja.
(Publicado no jornal Correio Fraterno, edição 401, jan./ fev. 2005)