O progresso inevitável da humanidade


Qual o motivo do aumento das doenças psíquicas no pós-pandemia? – Márcia Ayuri, Suzano, SP

Por Julio Peres*

A pandemia da Covid-19 configurou-se como um evento imensamente estressor, com potencial traumático coletivo que impactou a humanidade, repentinamente, em um vasto grupo de alto risco psíquico. Denominamos grupo de risco aquele conjunto de indivíduos expostos a condições de vulnerabilidade, tais como isolamento social prolongado, luto não elaborado, perda de referências de rotina e ruptura de vínculos afetivos. Durante o período pandêmico, essas condições deixaram de ser eventos isolados para se tornarem experiências universais, recorrentes e simultâneas.

Observou-se uma sobreposição de papéis no espaço doméstico, o que culminou em um expressivo aumento de conflitos familiares. A dissolução dos limites entre o ambiente profissional e o pessoal, sobretudo no contexto do trabalho remoto, intensificou a sobrecarga emocional. Em convergência, os índices de violência doméstica aumentaram de forma alarmante, revelando a fragilidade das estruturas psíquicas diante das mudanças significativas.

A desorganização psíquica desencadeada por esse cenário multifatorial teve repercussões clínicas profundas. Somos, por natureza, seres relacionais. A ausência de convívio presencial, a ruptura abrupta de rotinas e a impossibilidade de partilhar a dor de forma coletiva geraram descompensações significativas. Indivíduos que, até então, conseguiam manter certo nível de funcionalidade diante de quadros como transtornos de ansiedade, depressão, fobias específicas ou síndrome do pânico, viram-se submersos em estados emocionais regressivos diante do acúmulo de eventos estressores.

Muitas pessoas vivenciaram perdas de entes queridos sem a possibilidade de despedida ou ritual de luto, agravando ainda mais o sofrimento psíquico. A pandemia expôs a sociedade global a um trauma de natureza difusa, cujos efeitos, em muitos casos, se manifestaram de forma tardia. Esse fenômeno remete a experiências bem documentadas na literatura, como os transtornos pós-traumáticos em veteranos de guerra, indivíduos que, ao permanecerem em estado de ação durante o conflito, só desenvolveram os sintomas após os combates.

Analogamente, durante o período mais agudo da pandemia, predominou um estado de alerta, ou mesmo hiperatividade defensiva. A urgência de adaptação impunha a necessidade de ‘funcionar, independentemente do sofrimento interno. Porém, passado o estado de emergência, afloraram as marcas dolorosas nas esferas emocional, cognitiva e comportamental.

Os estudos epidemiológicos demonstram um aumento expressivo de transtornos mentais e emocionais no período pós-pandêmico, corroborando a hipótese de que o impacto psicológico da Covid-19 não se restringe ao tempo cronológico do isolamento, mas continua a reverberar como uma onda de sofrimento tardio, multifacetado e ainda em elaboração coletiva.

Portanto, é essencial assumir um papel ativo na reconstrução do próprio equilíbrio. Reconheça o sofrimento sem críticas/julgamentos e restabeleça rotinas saudáveis. Cultive vínculos afetivos e pratique atividades que promovam sentido, pertencimento e presença, como a escrita reflexiva e, especialmente, a vivência sincera da espiritualidade e da religiosidade, dimensões diretamente relacionadas à retomada do bem-estar. Busque apoio psicológico qualificado sempre que necessário. As dores vividas não definem o futuro, podem ser transformadas em crescimento, amadurecimento e renovação interior.

Enfim, o sentido maior da existência é a evolução. Estamos aqui para fortalecer nossas virtudes e, em cada desafio, revelar e consolidar as melhores versões de nós mesmos, aquelas que já residem em nossa essência, como expressões vivas da amorosa presença divina.

* Julio Peres é psicólogo, doutor em neurociências pela USP e pós-doutor pela UNIFESP e pela Universidade da Pensilvânia (EUA). Autor do livro Razão & prática: olhares terapêuticos sobre o significado e o uso das palavras, São Paulo: Editora Haikai, 2024.