Estudo espírita do processo de desenvolvimento do Cristianismo
Nunca insistiremos demais na afirmação de que o cristianismo é um processo histórico ainda em desenvolvimento, e não suficientemente estudado. A maior parte de tudo quanto se tem escrito, sobre esse processo, não vai além do seu aspecto formal. Um estudo em profundidade sobre o cristianismo teria de penetrar o seu espírito, mas essa penetração só tem sido possível em raras ocasiões e, assim mesmo, por breves momentos. O próprio desenrolar do processo, sob os nossos olhos, veda-nos a sua compreensão real e profunda.
O espiritismo, pelo fato, mesmo, de representar a fase mais recente do desenvolvimento histórico do cristianismo e, por implicar a volta aos seus princípios fundamentais, é a grande oportunidade que surge, entre os séculos dezenove e vinte, para uma revisão dos estudos sobre esse processo e sua consequente ampliação. Não é, pois, de admirar que, mesmo entre os espíritas, apareçam os que se mostram inseguros nesse terreno. Em geral, os estudiosos se inclinam por uma solução mais rápida do problema: a distinção artificial e forçada entre o cristianismo e o espiritismo.
Ainda há pouco, escrevia um autor espírita, que o cristianismo representa apenas uma tradição morta, estratificada no tempo, e que os espíritas devem evitar toda confusão entre ele e o espiritismo. Ao dizer isso, o autor não refutava a verdade cristã, os princípios evangélicos, mas tão somente o processo histórico conhecido por cristianismo. Para ele, o espiritismo é o cumprimento da promessa evangélica do Consolador mas, por isso mesmo, deve ser separado do cristianismo, como este o foi do judaísmo, do qual se originou. O erro desse autor decorre da premissa falsa de que o Consolador pode ser "outra coisa" que não o cristianismo. Sim, pois se aceitarmos a promessa do Consolador, temos de aceitar também o que ela representa, ou seja, a continuidade e o restabelecimento do cristianismo em espírito e verdade.
Entre o judaísmo e o cristianismo havia pouco mais que a ligação profética do advento do messias. O espírito do judaísmo era, em muitos sentidos, contrário ao do cristianismo. O rompimento entre os dois se fazia inevitável e necessário. Mas, entre o cristianismo e o espiritismo, não existe esse antagonismo. Pelo contrário, o que existe é a mais perfeita unidade espiritual. Todos os princípios fundamentais do cristianismo, que realmente caracterizam o ensino evangélico, estão presentes no espiritismo. E as únicas diferenças entre o que conhecemos por tradição cristã e o que o espiritismo ensina decorrem dos elementos estranhos que se misturaram àquela tradição, ao longo dos séculos.
O fato de ter havido essa mistura, entretanto, não representa uma quebra no desenvolvimento do processo histórico do cristianismo. E, tanto não representa, que a promessa do Consolador já encerrava a previsão dessa mistura. A verdade é que o cristianismo, como um processo de transformação substancial do homem, e do mundo, exige para o seu desenvolvimento uma sucessão muito mais complexa de fases evolutivas, do que todos os demais processos que conhecemos. Essa complexidade leva os estudiosos, no desejo natural de simplificá-la, a negarem a unidade da linha evolutiva do cristianismo.
A melhor maneira de compreendermos o desenvolvimento do cristianismo é a que nos oferece o próprio Evangelho, na parábola do semeador. Jesus a desenvolveu até as últimas consequências, quando se referiu à necessidade de que o grão de trigo ''morra" na terra, para germinar. O cristianismo segue exatamente essa linha de desenvolvimento que podemos acompanhar no crescimento do trigo. Os ensinos de Jesus, lançados à terra dos corações e das consciências, germinaram como uma semeadura de trigo. Mas, para que houvesse germinação, esses ensinos tiveram de "morrer", de se desfazer na terra. Depois, brotaram como hastes frágeis e tenras (a igreja primitiva) e cresceram, adquirindo volume e força. Mas, para isso, absorveram os elementos do solo e do ar, integrando-se no seu corpo. E, assim como um pé de trigo é completamente diferente da semente de que proveio, assim o corpo do Cristianismo se diferenciou profundamente dos ensinos que o originaram.
Mas, quando o trigal chega ao termo do seu desenvolvimento, começa a dar flores que, por fim, se transformaram em espigas e, destas, surgem os grãos perfeitamente semelhantes àqueles que foram plantados. Quem não se lembra das palavras de Jesus a respeito? Pois é assim que vemos, no próprio evangelho, a melhor e mais perfeita descrição do processo histórico do cristianismo. O espiritismo procede da tradição cristã, da mesma maneira que o trigo procede do trigal, por mais que os grãos sejam diferentes da haste que os gerou. As condições históricas que o cristianismo teve de enfrentar, para se desenvolver, assemelham-se às condições mesológicas em que o trigo se desenvolve. Vencidas essas condições, o cristianismo chega, ao nosso tempo, àquela fase anunciada por Jesus à mulher samaritana, em que Deus não será adorado no templo de Jerusalém, nem no Monte Garasin, mas "em espírito e verdade".
Do livro O mistério do bem e do mal, Editora Correio Fraterno, que contém crônicas de J. Herculano Pires, publicadas no jornal O Diário de São Paulo, de 1957 a 1970, com o pseudônimo de Irmão Saulo.