Um legado de histórias de amor e trabalho no bem

“Se um único homem atingir a plenitude do amor, neutralizará o ódio de milhões.” – Mohandas K. Gandhi

Por Ana Landi*

Divaldo Pereira Franco sempre foi uma pessoa conhecida no movimento espírita. O médium e orador, que faleceu no último 13 de maio, em Salvador, BA, aos 98 anos, por falência múltipla dos órgãos, andava cansado. Paralelamente à sua luta contra um câncer, seu nome, por vezes, via-se envolvido em assuntos polêmicos com relação a suas declarações sobre temas políticos, identidade de gênero etc.

Independentemente dos argumentos, uma coisa é certa: Divaldo foi extraordinário em inúmeros pontos. Como médium e como palestrante, levou a doutrina a inúmeros países. Penetrou pela primeira vez em lugares nunca ocupados por representantes da doutrina ou regiões violentíssimas, como em comunidades, onde várias vezes foi recebido com violência.

Tinha o dom único da oratória e, acima de tudo, criou uma obra social como poucas no mundo.

A capital baiana sedia sua contribuição mais impressionante: a Mansão do Caminho. A obra foi fundada no dia 15 de agosto de 1952. Tem uma área de 78 mil metros quadrados e 44 edificações. Acolhe e educa mais de 5 mil pessoas que procuram ajuda material, educacional e espiritual.

São escolas, uma creche, oficinas profissionalizantes, consultórios e laboratórios para atendimento médico, que transformam a entidade em um grande complexo.

Lá, são desenvolvidas atividades, como a distribuição de cestas alimentícias, de enxovais, administração de colégios de educação infantil, ensino fundamental e médio, cursos técnicos diversos, bibliotecas. A faculdade, que Divaldo ansiava construir, não ficou pronta antes de sua desencarnação.

Instalada em um cenário de imensa carência, o bairro de Pau da Lima, um dos mais pobres e violentos de Salvador, a entidade recebeu desde seus primeiros anos centenas de crianças, em seu início, em lares temporários.

Com a ajuda de Nilson de Souza Pereira, colaborador de primeira ordem, Divaldo adotou ainda jovem muitos, muitos filhos: todos hoje já adultos e encaminhados.

As dificuldades vivenciadas naqueles anos foram ainda maiores daquelas enfrentadas no centro espírita, que fundou ainda novo no bairro da Calçada, centro do município – a Casa do Caminho.

Esse local já não comportava o número de necessitados. E eles eram muitos, mães solos, doentes de mais vária ordem, moradores de lugares insalubres, como palafitas e pontes. As filas eram imensas.

Na Mansão do Caminho, à época um pequeno sítio com poucas ruas de terra (traçadas e construídas à mão por Divaldo e Nilson), nada era luxuoso; havia apenas alguns cômodos e um refeitório que não passava de pequena mesa.

Essas iniciativas fazem dele um homem ímpar. Como está no Evangelho de Mateus: “Porventura colhem-se uvas dos espinheiros, ou figos dos abrolhos? Assim, toda a árvore boa produz bons frutos, e toda a árvore má produz frutos maus. Portanto, pelos seus frutos os conhecereis.”

Divaldo deixa saudades, muitas lembranças de sua inconfundível oratória de conhecimento e convites ao amor, um imenso legado e, sem dúvida, um trabalho marcante na história do espiritismo recente, encerrando talvez uma fase de propagação da doutrina espírita através dos grandes médiuns e abrindo, simultaneamente, um novo período em que a responsabilidade de cada trabalhador espírita, no estudo e na prática, se agiganta frente a tudo que o espiritismo ainda tem a oferecer para toda a humanidade que ainda se perde na busca de um sentido para a vida.

A história da biografia

Em 2012, após várias tentativas de agendar uma entrevista com Divaldo Franco, no dia 3 de maio de 2012, às vésperas de seu aniversário de 85 anos, eu desembarcava em Salvador com a tarefa desafiadora de convencê-lo pessoalmente daquilo que não havia logrado por e-mail ou telefone – sua autorização para uma biografia jornalística.

Muitas já haviam sido escritas por amigos, simpatizantes ou expoentes espíritas. A ideia era justamente apresentá-lo a um público mais amplo.

À época, tudo que o envolvia já era superlativo – o número de órfãos acolhidos, o porte de sua obra social, o total de palestras ao redor do mundo e a produção e venda de livros psicografados. Naquela quinta-feira de 2012, eu fazia minha primeira visita à Mansão do Caminho com a expectativa de que, nesse diálogo pessoal, eu pudesse explicar melhor o projeto.

Nascida em família espírita, com pai presidente de centro no interior de São Paulo, eu já o conhecia de palestras, mas nunca havia tido alguma simpatia especial ou contato mais próximo. Tudo mudou após aquela conversa breve.

Era dia de reunião pública e me posicionei junto à porta de entrada do Centro Espírita Caminho da Redenção, à sua espera. Assim que ele desembarcou do carro que o trazia à tribuna, eu me aproximei. Gentil, mais uma vez reiterou que não desejaria de forma alguma tornar-se personagem de um livro que o tivesse como assunto central. O que deveria se tornar conhecido era a obra, a “Casa de Joanna e Francisco”, não ele.

Tentei alternativas. Uma delas, convencê-lo a dar entrevista para uma das revistas em que eu colaborava. Reticente, o orador foi à tribuna. Eu já havia guardado lugar e sentei-me logo à frente. A palestra, tão linda e profunda, me tocou profundamente.

Semanas antes de decidir ir à Mansão, eu passava por muitas angústias profissionais. Havia acabado de editar um livro com grande sucesso de vendas e mídia. A história de Eliana Zagui, moradora da UTI do maior hospital do Brasil, estava naquele ano em todos os jornais e programas de TV. Vítima de poliomielite, tetraplégica e abandonada pela família na instituição, ela foi criada e educada pelos médicos da casa. Era uma história rica demais, linda demais. Eu me sentia em dívida com o mundo, sentia que tinha uma tarefa, a de continuar contando boas histórias de vida e superação.

Pensava nisso, quando Divaldo começou a palestra daquela noite: tratou da história de Dominique Lapierre, famoso autor francês que escreveu o livro a respeito de Mohandas K. Gandhi, intitulado Esta noite a liberdade, que lhe rendeu uma fortuna e o fez descobrir-se com expressiva dívida de amor para com a Índia. Certo dia, estando Dominique nas escadarias em Benares, observando as crianças que se atiravam às águas sujas do rio Ganges, para recolher objetos dos cadáveres a fim de serem revendidos, tomou conhecimento da existência de uma menina, que era considerada a mais notável ‘pescadora’. Seu nome era Ananda, que significa ‘alegria’ em sânscrito. Então, Dominique acompanhou uma parte da trajetória de Ananda por vários anos e escreveu o livro Muito além do amor. Obviamente, aqui, nenhuma comparação pessoal com o escritor, mas tudo parecia se encaixar. Naquele momento, tive a certeza de que seria ‘o contar direito’ (e de forma honesta) a história de Divaldo a forma de retribuir toda felicidade interior que o livro de Eliana me proporcionara. Eu tinha essa obrigação. E, assim, não medi esforços para que ele aceitasse. E ele aceitou. Primeiramente, a entrevista. Muitos dias depois, o livro.

Divaldo Franco: a trajetória de um dos maiores médiuns de todos os tempos foi lançado em 2015 e, espero, atingiu o propósito inicial de levar uma história ímpar ao conhecimento de mais pessoas. E, principalmente, pessoas que precisam ouvir a mensagem, independentemente de religião ou crença.

O livro que virou filme

Em 2019, a biografia chegou às telas de cinema em todo o Brasil, através do filme Divaldo, o mensageiro da paz, produzido pela Fox Film, com a produção da Cine e da Estação Luz e direção de Clovis Mello.O longa-metragem Divaldo – O mensageiro da paz, que levou o público para os cinemas e se encontra agora nas plataformas digitais, apresenta a sua história desde a infância, quando descobriu que conseguia conversar com os espíritos. Mostra os dilemas e preconceitos com que ele precisou lidar desde cedo e acompanha a sua trajetória de vida, a sua dedicação aos trabalhos sociais e as palestras que passa a realizar pelo mundo.

A trama, faz jus ao bom humor do baiano, com momentos de leveza e graça, a exemplo de, quando moço, iniciar-se em seu emprego e não conseguir distinguir os espíritos dos encarnados, quando se apresentavam no balcão para serem atendidos.

Momentos emocionantes também não faltam. Um deles traz uma das crianças que é deixada à porta da instituição; ao acolhê-la, Divaldo trava um lindo diálogo com o espírito que o perseguia com cobranças do pretérito, e que tem o seu coração tocado ao ver sua mãe reencarnada – a criança abandonada – acolhida por quem ele tanto perseguia.

Além da abnegação para o bem, o filme traz temas de forma acessível não só ao público espírita, como suicídio, aceitação da morte, obsessão e solidão, dentre outros. (Redação)

O ator Bruno Garcia interpreta Divaldo já na maturidade.

*Jornalista e autora do livro Divaldo Franco: a trajetória de um dos maiores médiuns de todos os tempos. Dirige a Bella Editora.