Sonambulismo: uma janela para a imortalidade

Por Silvio Seno Chibeni*

Em sua face mais conhecida, o sonambulismo é um fenômeno da natureza humana, no qual alguém que está dormindo realiza ações como conversar e andar. A palavra ‘sonambulismo’ denota, em sua origem, justamente o andar ou perambular durante o sono. Parece ser mais comum na infância, e na maioria dos casos desaparece espontaneamente com a idade.

Entretanto, como é um estado aparentemente anômalo, foi classificado na medicina atual como um distúrbio do sono, ou parassonia. Aqui não vamos adentrar essa questão médica, mas relembrar ao leitor o que o Espiritismo tem a dizer sobre o fenômeno.

Comecemos notando que todo o Espiritismo gira em torno da constatação de que os seres humanos não são apenas um corpo vivo, mas um Espírito encarnado, a sede dos pensamentos, sentimentos e vontade.

Embora essa seja uma concepção milenar, comum na filosofia e, particularmente, nas religiões, apenas com o trabalho de Allan Kardec o assunto foi efetivamente trazido para o plano da investigação experimental, ou empírica. Os fatos principais que embasaram as conclusões de Kardec são aqueles relativos aos fenômenos por ele chamados de “mediúnicos”. Isso tudo é do conhecimento dos espíritas. O que poucos deles sabem é que, além da mediunidade, Kardec examinou com bastante cuidado outra “janela” para a imortalidade: o sonambulismo.

Já em sua face mais comum, em que ele se manifesta espontaneamente, o sonambulismo pode dar uma pista importante sobre a natureza humana – e Kardec a seguiu com muito empenho. O ponto principal é o fato de que, no estado sonambúlico, a pessoa pode referir-se a coisas e acontecimentos que escapam à sua observação sensorial presente ou passada. Um caso emblemático foi ilustrado, por exemplo, na famosa ópera de Vincenzo Bellini A Sonâmbula, em que a protagonista, Amina, atravessa dormindo uma perigosa pinguela.

Para a atenção apurada de Kardec, se o sonâmbulo é capaz de fazer e conhecer coisas que não dependem de suas faculdades corporais, isso pode indicar que o ser humano não se limita a esse corpo. Ele comentou que era singular que fenômenos desse tipo não tivessem ainda recebido a atenção que merecem por parte das pessoas interessadas em estudar a mente humana. (Veja-se o artigo “A dualidade do homem provada pelo sonambulismo”, Revista Espírita, julho de 1863.)

Na ópera A Sonâmbula, de Vincenzo Bellini, encenada em Milão, em 1831, a protagonista, Amina, atravessa dormindo uma perigosa pinguela

Tais considerações, porém, ainda não nos conduzem aos pontos principais do assunto. Como sabemos, já em sua juventude Kardec – ainda Denizard Rivail – se interessou e se dedicou ao campo de estudo então chamado de magnetismo, ou, mais propriamente, magnetismo animal, movimento cuja figura central tinha sido o médico alemão Franz Mesmer (1734-1815). Seus adeptos, os magnetistas, se dedicavam a dois tipos principais de investigação e atividades: curar ou tratar enfermidades por meio da “magnetização”, e a indução de estados sonambúlicos em pessoas especialmente propensas a serem “magnetizadas”. Assim, distinguia-se o sonambulismo “natural”, a que nos referimos anteriormente, e o “magnético”, produzido artificialmente por um “magnetizador”.

Embora o sonambulismo assim produzido fosse, como posteriormente notará Kardec, uma ferramenta valiosa para a pesquisa dos limites da percepção sensorial humana, e assim se pudesse inferir a falsidade da visão materialista do homem, curiosamente não houve consenso quanto a essa via de pesquisa e raciocínio entre os magnetistas. O próprio Kardec observou que, ao contrário, muitos deles não aceitavam a existência de uma alma ou espírito independente da matéria, embora essa fosse a explicação mais óbvia para as faculdades cognitivas sonambúlicas!

Ao tomar contato com os fenômenos mediúnicos e, por meio deles, convencer-se da natureza espiritual do ser humano, Kardec não tardou em ligar os pontos. Visto sob a perspectiva espírita, o sonambulismo poderia ser considerado como uma rota auxiliar, capaz de conduzir à verdade básica estabelecida pelo Espiritismo: o homem é um ser espiritual, além e acima de um ser corporal.

Foi sob esse ângulo que Kardec continuou, mesmo na fase espírita, a observar, analisar e comentar os fenômenos sonambúlicos com a mesma dedicação com que o fazia com os mediúnicos. Assim, encontramos na Revista Espírita, já desde a sua fundação, em janeiro de 1858, numerosos artigos que relatam e examinam casos de lucidez sonambúlica que, direta ou indiretamente, chegaram ao seu conhecimento. Antes de mencionar alguns deles, porém, notemos que, quanto ao aspecto teórico, Kardec o abordou em diversas questões da primeira edição de O Livro dos Espíritos, de 1857, num capítulo chamado “Da emancipação da alma durante a vida corporal” (cap. 8 da parte I). Depois, ao reformular o livro para sua segunda edição, publicada em 1860, Kardec ampliou muito esse capítulo, que passou a contar com 55 itens, o último dos quais (nº 455) é um denso texto em que ele sintetiza o assunto da emancipação, em toda sua amplitude.

Com sua costumeira sabedoria, Kardec percebeu que o sonambulismo era apenas um dos casos de “emancipação da alma”, ou seja, das situações em que a alma (ou Espírito), não obstante encarnada, recobra parcialmente suas faculdades anímicas, atenuadas pela encarnação. Além do sonambulismo, esse importante capítulo de O Livro dos Espíritos trata ainda do sono e sonhos, das visitas espíritas entre pessoas vivas, da transmissão oculta do pensamento, da letargia, catalepsia e mortes aparentes, do êxtase e, por fim, da segunda vista. De todos esses estados que envolvem a emancipação, o sono é o mais comum, evidentemente, e o sonambulismo é o mais importante para subsidiar as conclusões espíritas sobre a natureza espiritual do homem.

Voltando à Revista Espírita, a relevância do magnetismo e do sonambulismo para o Espiritismo é indicada já na própria folha de rosto do primeiro fascículo da revista, sendo o seu estudo um dos seus objetivos principais. Nela encontramos diversas análises teóricas, como o texto “Magnetismo e Espiritismo” (março de 1858), bem como diversos relatos de casos de sonambulismo, atestados por Kardec, e dos quais ele extrai as devidas consequências filosóficas e morais.

Já no primeiro número da Revista, de janeiro de 1858, o texto “Evocações particulares: Uma conversão”, relata a conversão de um rapaz, materialista convicto, pelo diálogo mediúnico estabelecido, mediante evocação, com seu falecido pai, que também fora materialista. Logo no dia seguinte, o moço participou de uma sessão com a senhora Roger, sonâmbula, que, espontaneamente, deu sobre seu pai e seus familiares detalhes tão precisos e íntimos que, diz Kardec, “acabaram de dissipar o pouco de dúvida que poderia lhe restar”. Nas palavras do próprio moço, “na evocação, meu pai me havia revelado sua presença; na sessão sonambúlica, fui, por assim dizer, testemunha ocular da vida extracorpórea, da vida da alma”.

No mês de novembro do mesmo ano, aparece outro relato de dois outros casos envolvendo a mesma sonâmbula. Em um deles, ela foi capaz de, em sonambulismo, desvendar o mistério do desaparecimento de um homem, indicando como, quando e onde havia sofrido um ataque e caído no rio Sena, bem como o local exato onde se encontrava o corpo, levado dali pela correnteza. Investigações subsequentes confirmaram a exatidão dessas informações dadas pela sonâmbula. No outro caso, ela localizou o lugar onde se encontrava, num certo armário de uma casa que desconhecia, uma soma em dinheiro, que falsamente se acreditava haver sido roubada de outro lugar, por um visitante ocasional que lá estivera. De novo, tudo o que a senhora Roger disse se confirmou.

Ambos esses casos ilustram exemplarmente o que Kardec chamou de “independência sonambúlica” (que é o título do artigo), ou seja, o que a sonâmbula relatou não era conhecido por ninguém, de modo que não se poderia alegar – como faziam muitos magnetistas não espíritas – que elas simplesmente refletiam o pensamento de quem as consultava.

Em 1865, com parte de uma série artigos ligados à desencarnação do Dr. Demeure, dois deles (meses de abril e setembro) referem-se a fatos ocorridos com duas outras sonâmbulas, as senhoras G. e Maurel. Elas, em estado sonambúlico, foram eficazmente recuperadas por tratamentos magnéticos feitos pelo próprio Espírito Demeure. Note-se, a propósito, que Kardec reconheceu que o sonâmbulo pode também ser médium, pois tipicamente percebe os Espíritos com naturalidade. Daí a categoria de “médiuns sonâmbulos”, estudada nos parágrafos 172 a 174 de O Livro dos Médiuns.

Muitos outros textos da Revista poderiam ser aqui enumerados. Só para se ter uma ideia, nela há nada menos do que 510 ocorrências de palavras começando com ‘sonambul-’ (que inclui ‘sonambulismo’, ‘sonâmbulo’, etc.). Fica ao leitor a prazerosa tarefa de ler tais textos, com vistas a verificar como os fenômenos sonambúlicos, estudados à luz do Espiritismo, de fato constituem uma importante “janela para a imortalidade”, que abre a nós o consolador horizonte da vida futura.




* Silvio Seno Chibeni é professor titular do departamento de Filosofia da Unicamp.