Manuscritos: os bastidores do trabalho de Kardec
Por Adair Ribeiro Junior, Carlos Seth Bastos, Luciana Farias
Folheando as obras fundamentais do espiritismo e os números da Revista Espírita, encontramos em abundância trechos de mensagens e diálogos com os espíritos. Neles estão contidos exemplos e ensinamentos que fundamentam os princípios da doutrina. A sistematização desse trabalho demandou de Allan Kardec um método e uma organização próprios, percebidos apenas por quem o acompanhava nos bastidores.
Desde a sua fundação, há cerca de um ano, o museu AKOL – Museu AllanKardec.Online — atraiu pesquisadores para colaborar em um minucioso trabalho de pesquisa, tendo em mãos documentos raros, ainda desconhecidos do movimento espírita, incluindo manuscritos e correspondências, que nos oferecem acesso a estes bastidores, por serem registros preservados e que dão testemunho deste trabalho. Eles são originários dos arquivos de Kardec, guardados durante décadas. Alguns foram encontrados recentemente na Livraria Leymarie, em Paris, e trazidos para o Brasil.
Ao iniciarmos o trabalho nessas fontes, pudemos observar diversos exemplos de como as comunicações dos espíritos eram anotadas, classificadas e trabalhadas por Kardec e como o texto impresso era revisado antes da publicação. Sobre a preparação dos textos para impressão, encontramos ricas informações em uma dessas correspondências. Em uma carta, Kardec descreve a seu amigo Bonnamy alguns dos cuidados que o autor deveria ter ao elaborar os manuscritos a serem enviados para a tipografia e quais os prejuízos de não os observar.
Convidamos você agora para uma visita guiada por esses bastidores, em que os itens deste acervo – cadernos de anotações, folhas manuscritas e impressos – descrevem situações reais e, de forma ilustrada, nos auxiliam a contar, de maneira fundamentada, e até mesmo emocionante, um pouco da história do espiritismo.
Como as comunicações eram recebidas e documentadas
O aproveitamento das comunicações com o mundo espiritual na composição dos textos era essencial, uma vez que respaldava o método experimental adotado por Kardec. Sua aplicação incluía coletar, selecionar, classificar e analisar as inúmeras mensagens recebidas.
Semanalmente, os espíritos se comunicavam com os encarnados em sessões fechadas, realizadas às sextas-feiras, às 20 horas, na SPEE - Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. As perguntas endereçadas a eles e as respostas recebidas eram registradas, assim como as comunicações espontâneas. Comunicações obtidas por médiuns em outros centros também chegavam à Sociedade, por meio de cartas. Todos estes registros eram utilizados como base para o estudo das manifestações, sendo deles extraídos os ensinamentos a serem organizados e divulgados.
Um caderno com anotações das sessões da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, entre dezembro de 1860 e janeiro de 1861, apresenta as comunicações dos espíritos em ordem crescente de data, e está totalmente preenchido com a caligrafia de Kardec. Ao que tudo indica, ele contém as transcrições das psicografias recebidas pelos médiuns.
Nos anos posteriores, folhas soltas com as comunicações, nas caligrafias dos médiuns e de Kardec, foram arquivadas em pastas, cada uma com um tema específico. Mediunidade, educação, manifestações, dissertações espíritas e notas diversas são alguns exemplos de temas usados para classificação. Há dúvidas se Kardec mantinha a transcrição no caderno e os originais em pastas ou se ele mudou a forma de organização ao longo do tempo.
As páginas manuscritas ilustram o padrão instituído por Kardec para registrar e classificar essas comunicações:
Do lado esquerdo, há uma margem de cerca de cinco centímetros.
Uma linha horizontal divide os textos das comunicações em uma mesma página.
Dentro desta margem, no alto, são registradas diversas informações, como: o local e a data em que foi realizada a sessão, o nome do médium e se foi uma comunicação lida na sessão.
Em algumas, aparece a indicação da publicação em que será veiculada. Por exemplo: copiar para a Revista Espírita.
Em algumas comunicações, na sequência, consta uma classificação: B (bom), TB (Muito bom) ou TTB (Muito, muito bom), aparentemente para a qualidade do conteúdo dos ensinamentos.
A margem também era utilizada por Kardec para acréscimo de texto na comunicação original.
No corpo da página, aparece no topo um título para a comunicação.
Nas comunicações assinadas, o nome do espírito aparece ao final.
Uma comunicação revisada por Kardec e publicada na Revista Espírita
O artigo “Regeneração dos povos do Oriente”1, da Revista Espírita de novembro de 1868, contém a comunicação de Clélie Duplantier, em 18 de setembro, que chegou em decorrência de uma carta recebida de um correspondente da Síria sobre o estado moral dos povos do Oriente e os meios de cooperarem em sua regeneração, descrita na introdução do artigo.
O manuscrito, com a caligrafia do médium Desliens, traz também a caligrafia de Kardec, indicando sua revisão, com alterações e inclusão de um título. O texto também foi por ele selecionado para publicação, e sua versão final apresenta todas as alterações realizadas, além de outros ajustes.
Sabemos que Kardec costumava omitir nomes e focar mais no conteúdo do que nas palavras das mensagens recebidas. Na transcrição dessa comunicação para a Revista, observa-se que Kardec retira o nome do médium e ainda altera o nome do sr. Constant para sr. X.
Preparação dos manuscritos e a revisão das provas de impressão
A tecnologia utilizada para impressão no século 19 impunha um maior envolvimento do autor para que o texto final refletisse o que ele havia escrito.
Kardec elaborava um manuscrito com o texto final a ser publicado, que deveria ser redigido de maneira legível e correta, do contrário a correção de provas poderia ser difícil e exigir um alto custo de retrabalho. Kardec viveu essa experiência ao ajudar Bonnamy a elaborar os manuscritos finais da obra La raison du spiritisme (A razão do espiritismo, publicada em 1868), fato que ele relembrou em uma carta de 13 de outubro de 1868.
Ao receber o manuscrito, o tipógrafo preparava manualmente todas as páginas de impressão, primeiro ordenando em linhas os caracteres móveis que formavam cada palavra, inclusive os espaços entre elas, e em seguida juntando as linhas até obter uma página, atento à diagramação e à numeração de cada uma.
Uma prova era, então, impressa em um prelo, folha a folha, para ser revisada pelo autor, que deveria conferir se a montagem feita pelo tipógrafo correspondia ao texto original e indicar as devidas correções, podendo também efetuar melhorias no texto, se necessário.
No exemplo do artigo “Os pobres e os ricos”, da Revista Espírita de outubro de 1861, a folha impressa foi enviada para ser revisada por Kardec antes da publicação no periódico. Nela, ele inseriu o título e assinalou alguns pontos a serem corrigidos, seguindo os códigos para revisão de textos utilizados até hoje.
Só após a revisão das provas tipográficas o autor autorizava a impressão de uma quantidade de exemplares para venda.
Acesso à informação detalhada e segura
O século 21 está sendo bastante frutífero para os historiadores. O acesso a uma parte do acervo de cartas, manuscritos e documentos pessoais de Kardec possibilita a eles descrever uma história mais completa e detalhada do espiritismo, fundamentada nos registros dos eventos, fontes documentais seguras e fidedignas.
Neste rápido passeio pelos documentos preservados, pudemos conhecer exemplos reais do trabalho de Kardec e sua participação ativa como pesquisador, autor e editor. Sem os recursos tecnológicos da atualidade, ele estruturou não só a doutrina, mas também a ciência espírita, como suporte para melhor aproveitar o diálogo com os seres invisíveis e, em coautoria com os espíritos, instituir e divulgar o espiritismo. Este era Kardec, na busca constante pela excelência do seu trabalho.
Referências:
1 Manuscrito inédito de A. Desliens: “Regeneração dos povos do Oriente”, carta de Kardec a Bonnamy.
2 Para mais informações, consulte os sites AllanKardec.Online, obrasdekardec.com.br e a página do Facebook CSI - História do Espiritismo
(Todas as imagens de manuscritos e impressos foram obtidas dos originais, pertencentes ao acervo do museu AKOL).