As lições de Allan Kardec para a boa convivência no centro espírita
Por Eliana Haddad
Sempre atento à qualidade das atividades realizadas nas sociedades espíritas, quando o espiritismo ainda dava seus primeiros passos na França no século 19, Allan Kardec preocupava-se com o fortalecimento da socialização e da união dos grupos nascentes, com foco na delicada tarefa da convivência fraterna entre seus membros. Sabia ele ser esse um guia indispensável para o empreendimento de qualquer trabalho ou estudo do espiritismo.
Em discursos ou em textos na Revista Espírita, por ocasião da abertura e encerramento do ano social da Sociedade Parisiense, há nos comentários de Kardec valiosas instruções para a real compreensão não apenas da doutrina espírita, mas também um convite direto aos espíritas ao empenho pelo cultivo de valores e sentimentos de renovação moral.
Kardec e os espíritos sempre deixaram claro o caráter educativo das instituições espíritas, aspecto importante a ser primeiramente reverenciado em qualquer tarefa, tendo-se os grupos que se formavam como um laboratório fraterno de experiências individuais e coletivas que tinham como finalidade a renovação social através do melhoramento dos indivíduos.
Ensina o espiritismo que não basta saber, sendo necessário vivenciar a aplicação dos conhecimentos adquiridos no aprimoramento das relações humanas, constituindo-se os grupos espíritas células indispensáveis para fomentação de um mundo melhor, mais ético, espiritualizado e fraterno.
“O homem chegou a um período em que as ciências, as artes e a indústria atingiram um limite até hoje desconhecidos. Se os gozos que delas tira satisfazem a vida material, deixam um vazio na alma e ele aspira a algo melhor”, já observava Kardec, em 1862, ao se dirigir aos espíritas de Lyon e Bordeaux, em 1862.
Cidadão de vanguarda, Allan Kardec constatava no século 19 que o homem “sonha” com melhores instituições. “Quer a vida, a felicidade, a igualdade, a justiça para todos. Mas como atingir tudo isso com os vícios da sociedade e, sobretudo, com o egoísmo?”, refletia, sabedor que era da imperfeição humana como fonte geradora dos mais diversos conflitos.
Proposta renovadora
Foi assim que o espiritismo chegou à Terra, tendo como bandeira a caridade e muito bem representando a proposta de esforço para a renovação humana, com base nos novos conhecimentos da vida futura e da imortalidade da alma. Havia, ao mesmo tempo, a necessidade de se aprender a fazer nas próprias sociedades espíritas a lição de casa do respeito mútuo e da fraternidade, superando-se melindres, ressentimentos, dissidências.
Hoje, essa delicada tarefa continua e faz lembrar a afabilidade e a seriedade de Kardec em seus encontros com os espíritas, “um banquete de amigos”, segundo ele, que deveria prezar sempre pela união e pelos sentimentos de amor.
Assim como à época do espiritismo nascente, habitamos um mundo imperfeito conforme nosso merecimento e, ainda que as verdades espirituais nos animem e nos consolem, não podemos viver alienados do agora, do que se passa a nossa volta.
Observamos com frequência tantos quadros de desajustes, que assinalam distúrbios mentais e emocionais associados a obsessões, perguntando-nos até quando estaremos a comprometer e a atrasar nossa caminhada evolutiva nesse orbe repleto de tantas belezas, mas que também nos assusta pela prevalência do materialismo, retratado por vezes pela agressividade e, por outras, pela apatia.
A convivência na casa espírita necessita desse reconhecimento, da consciência de que todos estamos em processo de evolução na complexidade desse mundo contemporâneo bastante conturbado, mas que também nos oferece inúmeras possibilidades de aprendizado e retomadas de rotas. “Coloco em primeira instância o consolo que é preciso oferecer aos que sofrem, erguer a coragem dos caídos, arrancar o homem de suas paixões, do desespero, do suicídio, detê-lo talvez no limiar do crime...”, discursou Kardec em 1862 sobre as tarefas a serem desempenhadas pelos grupos espíritas.
Falíveis e frágeis
Não são poucas as vezes em que a convivência na casa espírita fica estremecida pela falta de observação das condições ainda limitantes da nossa história espiritual. Esquecemos quase sempre de que estamos todos no mesmo barco, navegando nas mesmas águas, mas temporariamente sentados em lugares diferentes, que também nos proporcionam visões e desafios diferentes.
Ser espírita não é apenas uma questão de rótulo, mas exige reflexão. “Não basta dizer-se espírita. Aquele que o é de coração prova-o por seus atos, não pregando senão o bem, o respeito às leis, à caridade, à tolerância e à benevolência para com todos”, escreveu Kardec na Revista Espírita de janeiro de 1867.
Antes, em junho de 1865, já alertava ele que havia espíritas dos mais variados temperamentos. “Entre os impacientes, há alguns de muito boa-fé e que gostariam que as coisas andassem mais depressa. Assemelham-se a essas criaturas que julgam adiantar o tempo adiantando o relógio. Outros, não menos sinceros, são impelidos pelo amor-próprio a serem os primeiros a chegar; semeiam antes da estação e apenas colhem frutos malogrados. Infelizmente, ao lado destes, existem outros que empurram o carro a mil por hora, na esperança de vê-lo tombar”.
A infiltração espiritual
Outro ponto não menos importante enaltecido por Allan Kardec sobre os grupos espíritas foi sobre a questão da invigilância.
Sabe-se que os maiores processos obsessivos, individuais e coletivos, começam pelas pequenas brechas de sintonia e sentimentos. Por isso, se a função prioritária da instituição espírita diz respeito ao melhoramento humano, sabe-se também que, por aprendizado, é preciso zelar para que espíritos ainda opostos ao trabalho do Bem não encontrem ambiente propício para tumultuarem as instituições. Aproveitam-se de pequenas desavenças e ausência de sentimentos nobres, situações tão comuns no estado evolutivo em que nos encontramos e que são causadoras de intrigas e disputas internas, consequências do orgulho e da vaidade. “Espíritos malfeitores se ligam aos grupos, do mesmo modo que aos indivíduos. Ligam-se, primeiramente, aos mais fracos, aos mais acessíveis, procurando fazê-los seus instrumentos e gradativamente vão envolvendo os conjuntos...”, ensina O livro dos médiuns, item 340.
Sem dúvida, o orar e vigiar deve estar sempre presente também nas relações do centro espírita. “Se o espiritismo não pode escapar às fraquezas humanas, com as quais se tem de contar sempre, pode, todavia, neutralizar suas consequências e isto é o essencial”, observou Kardec (veja o quadro).
Opiniões divergentes
Quantas vezes, nas mais variadas situações da vida, nos desentendemos por não compartilharmos as mesmas ideias, as mesmas opiniões?
Quando isso acontece na convivência nas instituições espíritas, cumpre-nos observar que o equilíbrio e a resposta devem estar focados na obra de Allan Kardec, pois os objetivos do espiritismo não estão relacionados a meras opiniões pessoais, mas a uma orientação doutrinária estabelecida pela teoria espírita tão bem trabalhada por Allan Kardec após a observação dos fatos. Não se trata, portanto, de buscar soluções com base em “achismos”, mas em ações responsáveis apoiadas na fidelidade aos princípios espíritas elencados e analisados amplamente nas obras de Allan Kardec, o que permitirá uma linguagem comum a todos em momentos de dúvidas ou conflitos.
Aqui se vê a importância do estudo sério e constante do espiritismo como um todo e não apenas a simples leitura de partes de capítulos de uma obra tão vasta, que podem até mesmo ser utilizadas erroneamente para justificar defesas pessoais.
Como observou o escritor e filósofo J. Herculano Pires, o espiritismo ainda é “um grande desconhecido” e Allan Kardec deixou muito claro que o conhecimento de qualquer ciência exige tempo de dedicação.
O estudo, para melhor compreensão, e a caridade, para melhor vivência, constituem-se nos dois grandes pilares de sustentação dos trabalhos desenvolvidos na casa espírita, cuja síntese se realizará através da fé raciocinada, que deverá nortear os valores para uma melhor convivência.
Kardec destacou que, para neutralizar a influência de ideias errôneas, é preciso um maior empenho na divulgação dos temas espíritas e na formação de “adeptos” esclarecidos. “Está provado que o espiritismo é mais entravado pelos que o compreendem mal, do que pelos que não o compreendem absolutamente”, observou.
Compromisso ético
Naturalmente, o espiritismo nos convida a um novo olhar para as relações, e as casas espíritas nos oferecem as oportunidades de vivenciar essa experiência a todo momento.
A ética espírita relembra as lições de amor, sabedoria e justiça enaltecidas por Jesus, o espírito mais evoluído que esteve entre nós: Não fazer ao outro o que não gostaria que lhe fizessem.
Kardec também chamou a atenção sobre isso na Revista Espírita de 1864: “A caridade e a fraternidade são reconhecidas pelas obras e não por palavras. (...) É a pedra de toque com a qual identificamos a sinceridade dos sentimentos. E, em espiritismo, quando se fala de caridade, sabemos que não se trata apenas daquela que dá, mas sobretudo daquela que esquece e perdoa, que é benevolente e indulgente, que repudia todo sentimento de inveja e rancor”.
• A convivência saudável e prazerosa na casa espírita exige esforços de todos – dirigentes, colaboradores e frequentadores.
• Devem colocar-se em posição de destaque todos os que militam pela causa com coragem [...] e sem segunda intenção pessoal, que buscam o triunfo da doutrina pela doutrina e não pela satisfação de seu amor-próprio.
• São as nossas falhas que causam situações embaraçosas nas nossas relações, atraindo influências espirituais infelizes que podem comprometer o trabalho sério. Sobre o assunto, Allan Kardec analisa, em O livro dos médiuns, o perigo da influência espiritual negativa nos grupos espíritas e prescreve valioso roteiro de valores para afastar essas influências:
- Perfeita comunhão de vistas e de sentimentos;
- Cordialidade recíproca entre todos os membros;
- Ausência de todo sentimento contrário à verdadeira caridade;
- Um único desejo: o de se instruir e se melhorar por meio dos ensinos dos espíritos e do aproveitamento de seus conselhos.