Uma fábrica de loucos: psiquiatria x espiritismo no Brasil
Por Eliana Haddad
Com o objetivo de investigar os motivos que levaram à interpretação da mediunidade como “loucura espírita”, a historiadora Angélica Silva de Almeida realizou vasta pesquisa sobre o espiritismo e a psiquiatria na primeira metade do século 20, quando experiências mediúnicas espíritas passaram a ser interpretadas como causa ou manifestação de doenças mentais, provocando vários embates entre espíritas e psiquiatras, que resultaram em diversas publicações em livros, artigos científicos e imprensa leiga.
Angélica, que lançou em livro sua tese de doutorado em história — Uma fábrica de loucos: psiquiatria x espiritismo no Brasil (1900-1950), ed. Dialética—, explica como se deu a resolução desse conflito, que coincidiu com a conquista de diferentes espaços, tanto da psiquiatria como do espiritismo. Isso não só marcou como definiu a história do movimento espírita no Brasil. Saiba por quê.
O que levou você a se interessar por esse tema em sua tese de doutorado?
Quando estava elaborando minha dissertação de mestrado, comecei a identificar os principais argumentos contra o espiritismo, que estava começando a chegar no Brasil. No início, as críticas vinham da Igreja Católica. A doutrina espírita foi considerada uma heresia e fruto de uma ação demoníaca. Mas, com o passar do tempo, outros argumentos começaram a chegar e vinham dos meios científicos. Os fenômenos mediúnicos foram considerados pelos médicos e psicólogos como uma importante causa de loucura. A partir de então, todos os opositores passaram a incorporar esse discurso da loucura espírita contra o espiritismo. Embora esse debate entre médicos e espíritas tenha ocorrido ao longo de vários anos, são poucas as pesquisas acadêmicas voltadas para a compreensão desse fenômeno. Foi a partir da descoberta desse tema tão interessante que resolvi realizar a minha pesquisa.
Quando surgiram as primeiras manifestações dos médicos e psicólogos sobre os “perigos do espiritismo” e por que a visão negativa de que ele seria uma fábrica de loucos?
Os debates surgiram nos Estados Unidos, quando aconteceram os primeiros fenômenos mediúnicos que deram origem ao espiritualismo moderno. Em 1858, um ano após a publicação de O livro dos espíritos, identificamos a primeira publicação médica manifestando a esse respeito.
O espiritismo, que vinha ampliando o seu número de adeptos e se espalhando por diversos países, preocupou a classe médica, pela crença dos perigos em potencial que ele representava, de que ele seria capaz de desencadear ou agravar a loucura, pela frequência às reuniões mediúnicas.
Os psiquiatras, fortemente influenciados pelos princípios do materialismo e da ciência vigentes à época, procuravam excluir completamente a possibilidade da existência do espírito. Os espíritas, que também destacavam a importância da ciência, diziam ser possível conciliá-la com o elemento espiritual, unindo a investigação científica dos fenômenos espirituais (e sua influência positiva na vida dos homens) aos avanços e descobertas científicas da época. Além disso, a moderna psiquiatria e o espiritismo, defendiam perspectivas diferentes para lidarem com questões comuns aos dois: origem da mente, a relação mente–corpo, a loucura, seu tratamento, suas causas e modos de prevenção. Esses pontos de contato e de conflito geraram esse grande debate, que percorreu a segunda metade do século 19 e a primeira metade do século 20.
Além da questão da loucura espírita, que outras percepções eles tinham a respeito dos fenômenos mediúnicos?
Além do argumento da loucura, o espiritismo também foi associado à charlatanice e fraude. Para muitos integrantes da classe médica, a possibilidade de aceitar a existência dos espíritos era sinônimo de primitivismo e deveria ser fortemente combatido. Como a hipótese da existência real dos espíritos não poderia ser aceita, só restava classificar esses fenômenos como fraude, charlatanismo e exploração da credulidade pública.
A ideia de que o espiritismo desencadearia à loucura ou seria uma fraude foi unânime entre médicos e psicólogos?
Não. Enquanto um grupo de médicos se ocupou dos riscos do espiritismo para o desenvolvimento de transtornos mentais, um segundo grupo enfatizou um outro aspecto: a mediunidade. Embora reconhecessem a possibilidade de que as experiências mediúnicas poderiam levar à loucura, buscaram pesquisar os fenômenos para ampliar a compreensão do funcionamento da mente. No surgimento da moderna psiquiatria e psicologia, na transição entre os séculos 19 e 20, diversos pesquisadores estudaram intensamente a mediunidade. Esse grupo era composto por: Pierre Janet, William James, Frederic Myers e Carl G. Jung. No entanto, a visão que mais prevaleceu e que permaneceu entre os médicos brasileiros foi a do desencadeamento de transtornos mentais.
Como Kardec lidou com essa questão de “loucura espírita”?
Já na introdução de O livro dos espíritos, Kardec discute as causas da loucura. Defende que os motivos dos transtornos mentais estariam associados ao organismo, à influência do ambiente cultural do paciente e a uma predisposição orgânica.
Assim, Kardec não negava as causas sociais e biológicas dos transtornos mentais, mais acrescentava uma outra: a obsessão, que seria “a ação persistente que um espírito mau exerce sobre um indivíduo” (A gênese). Ele também afirmou na Revista Espírita (1863): “Um dia a obsessão será colocada entre as causas patológicas, como o é hoje a ação de animais microscópicos, de cuja existência não se suspeitava antes da invenção do microscópio”.
Ele separava a loucura de causa orgânica daquela decorrente da obsessão: “Não confundamos a loucura patológica com a obsessão; esta não provém de lesão alguma cerebral, mas da subjugação que espíritos malévolos exercem sobre certos indivíduos, e que, muitas vezes, têm as aparências da loucura propriamente dita. Esta afecção, muito frequente, é independente de qualquer crença no espiritismo e existiu em todos os tempos” (O que é o espiritismo).
Contudo, reconhecia que a separação entre esses dois tipos (orgânica e espiritual) não era simples, pois as obsessões poderiam agravar problemas orgânicos que já existiam, ou gerar esses problemas (A gênese). Kardec também chamava a atenção dos espíritas sobre o erro de classificar todos os transtornos como sendo de base espiritual (obsessão): “Muitos epilépticos ou loucos, que mais necessitavam de médico que de exorcismo, têm sido tomados por possessos” (O livro dos espíritos).
E sobre a fraude/charlatanismo?
Kardec rebateu as acusações de que as manifestações dos espíritos não passavam de uma fraude utilizando quatro argumentos. O primeiro seria o de que a existência de fraudes em qualquer área de atividade humana não significava que todos os fenômenos desta mesma área fossem fraudulentos. O segundo ponto era de que os fenômenos espíritas teriam sido amplamente investigados por diversos cientistas, que afirmaram a sua autenticidade, inclusive se tornando adeptos. No terceiro, afirmava que os dados apresentados pelos médicos negando a existência dos espíritos não se baseavam num estudo aprofundado dos fenômenos mediúnicos, nem analisavam as pesquisas já realizadas. Por fim, argumentava que os médiuns não recebiam qualquer benefício pecuniário pelo exercício da mediunidade.
Quando esse conflito chegou ao Brasil e como ele se desenvolveu?
O espiritismo chegou ao Brasil já na segunda metade do século 19. A crescente disseminação de suas práticas e ideias em nossa sociedade contribuiu para despertar a atenção dos médicos. Nesse período, começaram a aparecer as primeiras manifestações sobre os “perigos” do espiritismo para a sociedade e os riscos para a saúde mental. Para o médico Brasílio Marques (1929): “O combate ao espiritismo deve ser igualado ao que se faz à sífilis, ao alcoolismo, aos entorpecentes (opio, cocaína, etc.), à tuberculose, à lepra, às verminoses, enfim, a todos os males que contribuem para o enfraquecimento, para o aniquilamento das energias vitais, físicas, psíquicas, do nosso povo, da nossa raça em formação”. O espiritismo chegou a ser criminalizado no código penal de 1890 e os médicos passaram a cobrar medidas efetivas do poder público e o cumprimento do código penal. Às acusações de loucura, crime, suicídio, misticismo e fraude, acrescentou-se a de exercício ilegal da medicina.
Por que dessa acusação de exercício ilegal da medicina?
No Brasil foi muito comum o desenvolvimento de práticas assistenciais, focado nas atividades de cura. Talvez essa tenha sido a maior contribuição do espiritismo brasileiro, o desenvolvimento das implicações terapêuticas presentes nas obras de Allan
Kardec. O movimento espírita no Brasil organizou uma ampla rede de terapias complementares, como não encontramos em nenhum outro lugar.
Em relação aos transtornos mentais, não só aceitaram a causa das doenças mentais proposta por Kardec, mas colocaram em prática propostas de tratamento. Defendiam a junção do tratamento médico ao espiritual para ajudar no reequilíbrio dos doentes. Para materializar essas ações, fundaram dezenas de hospitais psiquiátricos espíritas no Brasil. Estes estabelecimentos começaram a ser criados no final da década de 1910. Num levantamento realizado por Souza e Deitos, em 1980 haveria cerca de cem hospitais psiquiátricos de orientação espírita no país. Somente no estado de São Paulo haveria vinte e dois e sem fins lucrativos.
No entanto, muitos psiquiatras utilizaram a criação dessas instituições para atacar o espiritismo, argumentando que ele gerava tantos loucos que foi necessário abrir instituições para o tratamento deles.
Esse conflito entre psiquiatria e espiritismo permanece até hoje?
Por volta dos anos de 1950, o conflito foi diminuindo. Podemos apontar alguns fatores para isso: o primeiro, seria a legitimação do espiritismo como uma religião no Brasil, deixando de ser um concorrente direto da psiquiatria no trato das questões que envolviam a loucura, causas, modos de tratamento e prevenção. O segundo, seria a conquista pela psiquiatria da respeitabilidade no meio acadêmico e social, associado ao desenvolvimento com sucesso de medicamentos para o tratamento das doenças. Por fim, a adoção gradual de uma visão diferente sobre as questões religiosas por parte dos psiquiatras. A religião começou, gradativamente, a ser vista como um possível agente colaborador no processo de tratamento dos doentes.