Suicídio: a importância de se multiplicar o cuidado

Por Eliana Haddad

Há 10 anos, a editora Correio Fraterno iniciava o projeto gráfico e a preparação do livro Viver é a melhor opção, de autoria do jornalista André Trigueiro, que seria lançado em 2015, abordando o cenário da prevenção do suicídio no Brasil e no mundo. A obra vanguardeira, diferenciada, passou a ganhar foco como referência em congressos por todo o país.

Incansável, com muita responsabilidade jornalística e como espírita assumido que é, Trigueiro levantou essa bandeira também fora do espiritismo, sendo convidado a falar sobre o tema em universidades e entidades afins, como o CVV – Centro de Valorização da Vida, programas de rádio e tevê, sempre levando informações relevantes e provocando maior reflexão sobre o tanto que ainda há a se fazer para se prevenir o que tem sido causa de tantas mortes em todas as idades e classes sociais. Afinal, desespero e inquietude é o que não falta no mundo de hoje.

Participante ativo na campanha de quase 10 anos do Setembro Amarelo, em entrevista exclusiva ao Correio, o jornalista analisa o cenário atual da prevenção do suicídio, a contribuição do espiritismo para o esclarecimento do tema e revela os novos dados que tem encontrado por conta de suas constantes pesquisas. Acompanhe.

O que você tem encontrado de relevante em suas pesquisas sobre os novos números do suicídio?

Um estudo recém-publicado na The Lancet Regional Health – Americas, desenvolvido pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde, da Fiocruz, em parceria com pesquisadores de Harvard, trouxe dados preocupantes. De acordo com o levantamento, a taxa de suicídio entre jovens cresceu 6% ao ano no Brasil entre 2011 e 2022. O número foi maior do que na população em geral, cuja taxa de suicídio teve crescimento médio de 3,7% ao ano. Os pesquisadores também perceberam que as estatísticas nas Américas seguiram na contramão da média global de suicídio, que registrou uma queda de 36% entre os anos 2000 e 2019. Nesse período, as Américas registraram um aumento de 17% nos casos, enquanto no Brasil o aumento foi de 43%. Como todas as pesquisas do gênero, é importante não tirar conclusões precipitadas e buscar as melhores fontes.

O que percebe que avançou, no Brasil e no mundo, desde que publicou o Viver é a melhor opção?

A pandemia escancarou as mazelas da saúde mental e a omissão das autoridades no enfrentamento do problema no Brasil e em várias partes do planeta. As campanhas de prevenção (como o Setembro Amarelo) passaram a ter maior visibilidade. Tem sido importante também o posicionamento de pessoas famosas que declaram publicamente a necessidade de interromper suas rotinas profissionais para priorizar a serenidade, o equilíbrio e a autoestima. A supercampeã mundial de ginástica Simone Biles, o surfista Gabriel Medina, o jornalista Ricardo Boechat e o padre Fábio de Melo são alguns exemplos de personalidades que, ao darem publicidade ao diagnóstico de depressão, permitiram que muita gente pudesse compreender melhor o que isso significa. Portanto, me parece que algo está mudando para melhor. Ainda assim, particularmente no Brasil, entendo que estamos aquém do mínimo necessário para dar a devida assistência a pessoas em situação de risco. É preciso fazer mais e melhor.

As iniciativas mais recentes do Governo Federal têm seguido um caminho adequado e surtido efeito positivo?

Até onde me foi possível buscar informação sobre esse assunto, é grande o descontentamento de muitos especialistas na área sobre políticas públicas que deem assistência a pessoas em situação de risco. Vou dar um exemplo prático: ao cobrir a maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul, percebi uma gigantesca demanda de serviços na área da saúde mental sem a devida resposta. As boas iniciativas que existem são exceção à regra. Ao que parece, saúde mental continua sendo a parte menos prestigiada das políticas públicas de saúde.
Como as casas espíritas podem intensificar ações no sentido de apoiar a prevenção do suicídio e os cuidados com os enlutados?

Alertar sobre o equívoco do suicídio não nos dá o direito de estigmatizar o suicida. É terrível quando um parente ou amigo de uma pessoa que se matou assiste a uma palestra na casa espírita em que o orador se exalta na ‘demonização’ do suicida, sem considerar que todos somos falíveis, imperfeitos, e que mesmo assim, Deus nos ama incondicionalmente. O espiritismo não preconiza penas eternas e o suicida terá outra chance. Tão importante quanto valorizar a oportunidade da existência e a permanência nesse plano “até quando Deus quiser”, é explicitar as razões pelas quais o suicídio deve ser evitado.

Iniciativas como o CVV ainda têm se mostrado efetivas no apoio à prevenção do suicídio?

O CVV é um serviço gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio sem qualquer vinculação política ou religiosa. Foi fundado em 1962 no Brasil inspirado no modelo bem-sucedido dos Samaritanos de Londres, onde o voluntário é treinado para ouvir de forma acolhedora, sem julgamento, todos os que ligam para o número 188 (ligação gratuita) ou fazem contato pelo chat (www.cvv.org.br). Por vezes, ter com quem conversar num momento difícil faz toda a diferença. Um simples desabafo opera milagres. Embora não seja um serviço terapêutico, o CVV é reconhecido pelo Ministério da Saúde como um serviço de utilidade pública.

O Setembro Amarelo ainda tem sido um ponto de apoio importante?

O Setembro Amarelo marca no calendário um período ligado à causa da prevenção do suicídio. Enquanto estratégia de comunicação, tem o seu valor porque mobiliza governos, empresas, organizações não governamentais, igrejas, universidades e ativistas. É importante também porque potencializa pautas ligadas ao tema nas mídias. Mas todo dia é dia de valorizar a existência e promover a prevenção do suicídio.

Acompanhando iniciativas espíritas ao longo do país, você percebe que a mentalidade sobre os suicidas tem se modificado? (Por exemplo, os ranços da culpa, do retorno difícil à encarnação, a permanência em um vale assustador.)

Creio que sim. Na verdade, torço para que seja assim, porque o que se convencionou chamar de ‘movimento espírita’ é algo difícil de mapear com precisão. Não somos uma religião formal com hierarquia e dogmas. Somos uma filosofia espiritualista que repele o negacionismo e segue a ciência. Tão importante quanto acompanhar a evolução do conhecimento na área da saúde mental (psicologia, psiquiatria, suicidologia) é não generalizar as situações que aludem à realidade dos suicidas no mundo espiritual. Com o perdão do clichê, “cada caso é um caso”. Embora o suicídio jamais signifique alívio ou solução para os problemas, as experiências pós-desencarne possuem singularidades. Em O céu e o inferno, as evocações feitas por Allan Kardec revelaram isso claramente.

Em que o espiritismo ajuda ou atrapalha para a compreensão do suicídio? Qual a maior dificuldade para se esclarecer o tema na visão espírita?

O suicídio é um problema complexo e multifatorial. A compreensão do assunto vai requerer uma abordagem sistêmica e cuidadosa. A doutrina espírita é, seguramente, a maior fonte de informações sobre a realidade do suicida no plano espiritual. É também extremamente consoladora quando nega a existência das penas eternas. Mas precisamos evitar o risco das generalizações, caso contrário, incorreremos em erro.

Como o avanço do uso das redes sociais em toda a sociedade tem impactado a questão do suicídio?

A exposição excessiva às telas digitais tem justificado uma avalanche de trabalhos científicos que reportam diferentes impactos sobre a nossa resiliência psíquica e emocional. Elevação das crises de ansiedade e depressão, perda das interações sociais, vulnerabilidade aos casos de bullying virtual ou ‘apagamentos’, busca frenética de seguidores (likes e curtidas), adequação ao padrão de beleza ‘instagramável’, são alguns dos efeitos colaterais dessa virtualização da vida. Mas há ainda o fomento criminoso ao suicídio em certas redes sociais ou jogos mórbidos que podem resultar em tragédias, como a “Baleia Azul”¹. Penso que a internet não é boa nem má. O uso que fazemos dela define a qualidade dessa relação. Pais ou responsáveis precisam buscar informações sobre como proteger seus filhos dessas armadilhas e mostrá-los às maravilhas de uma vida mais presencial.

O cenário empresarial tem se modificado no sentido de atenção à saúde mental. Estamos caminhando da forma adequada?

Muitas empresas já perceberam que a promoção da saúde mental reduz o risco de prejuízo. Trabalhadores afastados por depressão (ou outro problema qualquer) impactam a rotina operacional, até porque nem todos são facilmente substituídos. É importante proteger os funcionários, disponibilizando informação e apoio psicológico e/ou psiquiátrico. Mas não creio que esse cuidado seja a regra no Brasil.


¹ Suposto “game” que surgiu em 2017 nas redes sociais, com incentivo à automutilação, suicídio e outras situações de risco entre adolescentes.