100 anos de Jorge Rizzini

O casal Iracema Sapucaia e Jorge Rizzini: parceria e compromisso no amor e na divulgação do espiritismo

Por Eliana Haddad

Conheci Jorge Rizzini (1924-2008) na Federação Espírita do Estado de São Paulo no início de 2001, onde trabalhava na área de divulgação e editava o Jornal Espírita. Tinha por companhia o também jornalista e amigo Altamirando Carneiro.

Numa tarde, concentrada, só com o barulho dos dedos no teclado do computador, alguém, displicentemente, deu duas batidas fortes na grande porta dupla de madeira da redação. Levei um susto. Era Jorge Rizzini, anunciando a sua chegada. Rizzini era esse menino travesso. Sentava-se no sofá da sala e ficava puxando conversa, contando histórias, comentando sobre o movimento espírita, até darmos uma brecha e descermos, os três, para tomar um café e comer pão de queijo.

 Bem-humorado, Rizzini era intenso. Tinha sede de viver e ... acontecer. 

Conversar com Maria Angélica Rizzini sobre seu pai, o jornalista, médium, amigo e eterno defensor da verdade, é a forma amorosa de o Correio Fraterno marcar a passagem dos 100 anos do seu nascimento, registrando aqui que seu vigor e sua disponibilidade para servir impulsionaram o movimento espírita, juntamente com o escritor Herculano Pires. Eles marcaram a história da editora Correio Fraterno, que, na década de 1970, iniciava sua jornada também na publicação de livros com a obra O besouro Casca-Dura, de Iracema Sapucaia, esposa de Rizzini, parceira e confidente de todas as horas. Acompanhe a entrevista.

Como analisa hoje a obra de seu pai, Jorge Rizzini?

Ele tinha uma percepção extrassensorial muito aguçada e a diversidade de suas obras reflete as inspirações que ele recebia da espiritualidade. 

Espelha o caminho que percorreu a própria doutrina espírita para a sua divulgação, onde foram travadas verdadeiras batalhas. Essa luta, na qual estavam empenhadas pessoas abnegadas, dentre elas o meu pai, está descrita em alguns de seus livros e em muitos artigos.

Escreveu e publicou contos, novelas, peças para teatro com fundo doutrinário, artigos e livros de estudos do espiritismo. Recebeu por psicografia e inspiração músicas de renomados compositores brasileiros. Lançou CDs sobre a vida de Allan Kardec e de Chico Xavier, enfim, sua atuação dentro do movimento espírita foi intensa e muito diversificada. “Os tempos são chegados”, dizia ele, com muito entusiasmo. 

Ele era intenso nas suas emoções, na defesa do espiritismo, da verdade. Era assim também em família?

Sim, ele foi intenso na nossa vida familiar, tanto no zelo da educação dos filhos, como no amor que sentia por minha mãe. Mais tarde, na relação com os netos, não foi diferente. 

Por outro lado, não media esforços para defender e propagar o espiritismo, deixando evidente o seu espírito de renúncia e de coragem, num período – décadas de 1950 e 1960 – em que o espiritismo era ainda pouco conhecido e sofria embates severos por conta do preconceito. Foi também uma época em que os fenômenos mediúnicos ficaram evidenciados através de médiuns como José Arigó, Otília Diogo e outros. Acredito que a espiritualidade tenha planejado a divulgação do espiritismo através da mediunidade de alguns – pois que os fenômenos sempre chamaram a atenção – e da coragem de muitos, como a demonstravam Deolindo Amorim, Jorge Rizzini, Herculano Pires e tantos outros. 

Seu espírito de renúncia, sua força na fé, e seu amor dedicado à Verdade ficaram evidentes em suas ações. Como exemplo, cito a campanha a favor do médium Arigó, que acabou sendo perseguido e preso, acusado indevidamente por fraude e exercício ilegal da medicina. Foram dez anos de trabalho perseverante, com publicação de artigos, conferências pelo Brasil, pelo exterior e a publicação na época do livro 

José Arigó: revolução no campo da mediunidade.1

Dessa mesma forma vigorosa, entusiasta e corajosa, ele participou de outras campanhas em defesa do espiritismo, como a do caso da médium Otília Diogo, sobre a qual também publicou o livro Materializações de Uberaba.2
Um grupo de repórteres da revista O Cruzeiro, muito popular à época, após assistirem a uma sessão mediúnica com a presença de Chico Xavier e da médium Otília Diogo [com extraordinária capacidade de efeitos físicos], iniciaram uma campanha de difamação contra os dois. 

O Chico, acompanhado do Waldo Vieira, esteve em nossa casa com o pedido para que papai “fosse à luta”, defendendo naturalmente a verdade sobre o fenômeno. Através desses embates é que mais pessoas despertavam para o espiritismo. 

Vocês ficavam sabendo das polêmicas nas quais ele se envolvia para defender Kardec e o espiritismo?

Sim, não só ficávamos sabendo como participávamos de quase tudo em relação às polêmicas e aos fatos que se passavam no movimento espírita, pois ele e minha mãe conversavam abertamente, mesmo durante as nossas refeições em família. Ele sempre pedia sua opinião, e percebíamos o quanto era importante para ele ouvi-la. Ela foi sua parceira ‘oculta’ em todos os assuntos. 

Rizzini era médium. Como foi conviver com isso em família?

Havia uma evidência forte da mediunidade dele em nossa casa, especialmente na fase em que ele começou a ‘receber’ as poesias, embora tivesse a mediunidade aflorada desde sua juventude. Através dela, produziam-se estalos, ruídos; ouvíamos batidas de várias sonoridades enquanto ele as escrevia. 

Por vezes, as batidas produziam um som tão alto, a ponto de nos causar sobressaltos. Apesar disso, não tínhamos receio algum. Sabíamos que ele estava de alguma forma ‘conversando’ com a espiritualidade.

Rizzini comentava sobre como estava o espiritismo quando já não havia mais Chico e Herculano Pires encarnados?

Sim. Ele comentava a respeito de alguns artigos doutrinários e sobre livros assinados supostamente por espíritos de grande relevância. Segundo sua análise, alguns não tinham valor doutrinário ou literário. Para ele, a mistificação, tanto em obras ditas espíritas como em sessões ‘mediúnicas’, poderiam comprometer seriamente o entendimento da doutrina espírita. Por esse motivo, suas análises eram frequentemente publicadas. “Kardec em primeiro lugar!”, ele sempre dizia! 

Como era o dia a dia de Rizzini?

Ele era jornalista e trabalhava pelo menos 12 horas por dia, às vezes mais, sendo grande parte delas destinadas a escrever artigos, ou livros de divulgação do espiritismo. Em nossa casa, enquanto escrevia, ele ficava no escritório com a porta fechada, e nada o tirava daquela concentração, mas sabíamos que estava trabalhando, pelo ‘tec tec’ ininterrupto da máquina de escrever. Nós sabíamos que não era para interrompê-lo! A única exceção era para a minha a mãe, que ia chamá-lo para a refeição ou por alguma outra necessidade. 

Lembra-se de alguma recomendação recorrente de Rizzini, de pai para filhos? 

Ele dizia que não importava a profissão que escolhêssemos: “pode ser muito simples, um sapateiro, seja lá o que for, mas deem sempre o melhor de vocês no que fizerem”.

Como foi sua relação com Herculano e Chico? Vocês sabiam do trabalho que ele realizava para defender o espiritismo, enfrentando padres, pastores e jornalistas?

Havia sessões espíritas na casa do Herculano e dona Virgínia. Nessa época, eu ainda era criança e acompanhava meus pais. Mais tarde, passei a acompanhá-los semanalmente no Clube dos Jornalistas Espíritas, SP, onde Herculano Pires era o presidente e depois papai o substituiu no cargo. Nessas ocasiões, eles expunham as críticas que a doutrina estava enfrentando e discutiam estratégias de como agir. 

O espiritismo permeou toda a nossa vida, e sabíamos, de ouvi-lo, tudo o que se passava na doutrina, desde as críticas do Padre Quevedo ao espiritismo, aos embates travados, sobre o Arigó, e o Chico. 

Ele dizia que não tinha medo de ninguém. Só da ‘Cema’. Como era a parceria Jorge Rizzini-Iracema Sapucaia?

Além da parceria deles, do amor, havia muita cumplicidade, o que nos deixa claro o quanto esse casamento foi planejado na espiritualidade. Tinham muita afinidade. Os dois eram escritores: ela, uma das pioneiras a escrever livros com moral espírita para as crianças e ele, como um verdadeiro guardião das obras da codificação. 

Antes de desencarnar, ele estava em viagem com a família. Como foram esses dias na Argentina?

Minha mãe e meu pai faziam aniversário em setembro, dias 21 e 24. Minha filha, Florence, deu como presente de aniversário aos avós um final de semana em Buenos Aires. Um dia após terem lá chegado, papai foi acometido por um infarte, permanecendo por vinte dias em UTI.

Nesse período, em que nos organizamos para estar lá presentes, ele sempre comentava sobre os inúmeros espíritos que por ali passavam. Não sei se havia algum pressentimento de que partiria. Embora continuasse com seu bom humor de sempre, ele nos dizia que queria muito voltar para o Brasil. 

Sem saber que seria pela última vez, papai gravou uma mensagem despedindo-se dos amigos, enquanto deixava transparecer a sua fé profunda, que o acompanhou durante toda a sua vida. E como a intuir sobre os próximos acontecimentos, também mamãe ligou, e se despediram, trocando palavras de amor mútuo. 

Seu desejo de estar de volta ao Brasil por pouco não foi concluído. Ele acabou sendo acometido por um segundo infarto, enquanto viajava para o Brasil, e desencarnou em pleno voo. 

De todas as atividades e defesas doutrinárias de que Rizzini participou, qual foi a mais marcante para você? 

Ele venceu inúmeros desafios em nome da doutrina que se tornaram marcantes para mim, e até hoje me espanto quando os recordo, me perguntando: Como explicar que nas décadas de 1950, 1960 e início de 1970, em meio a um ambiente hostil ao espiritismo e, portanto, aos espíritas, ele conseguiu permissão para realizar um programa essencialmente espírita na televisão, em horário nobre, exibido em São Paulo, e depois no Rio de Janeiro? Como conseguiu, sem conhecer nenhum militar, ser atendido na sede da polícia militar por quem ocupava o posto de comando, e obter permissão para que a banda da Polícia Militar em São Paulo gravasse uma música mediúnica? Como conseguiu autorização para sediar no Theatro Municipal de São Paulo o Festival de Música Mediúnica, e ainda com a presença da banda militar executando o Hino a Kardec? Como conseguiu, sem conhecer um único político, licença da prefeitura para realizar na Biblioteca Municipal de São Paulo a exibição do filme sobre o médium Arigó? Eu ainda lembro o tamanho da fila, com centenas de pessoas aguardando o espetáculo, atraídas pelo assunto...

Nada disso seria possível se ele não tivesse a enorme coragem que vinha da sua fé, uma fé viva, que de tão forte materializava tudo o que idealizava.

Referindo-se a ele em uma das campanhas, Herculano Pires registrou: “neste momento de tantas omissões e tantas traições a Kardec e à doutrina, Rizzini consola e alenta os que conhecem a virtude da franqueza e da fidelidade.”3 

Fica aqui a nossa gratidão a ele e a todos aqueles pioneiros que doaram a maior parte das suas vidas na divulgação da nossa doutrina que tanta esperança e consolo nos traz! 

  1. Ed. Cidade da Criança, [s.d].

  2. Ed. Nova Luz, 1964.

  1. Jornal Mensagem, fevereiro de 1975.