Ser espírita é ser inclusivo

Por Eliana Haddad

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Educadora, fisioterapeuta, doutora em educação física, a gaúcha Sonia Hoffmann encontrou a deficiência visual logo na adolescência. Mas o baque desta realidade só a fortaleceu e a preparou para que hoje ela pudesse estar à frente de projetos expressivos, focados nas acessibilidades voltadas ao movimento espírita. A proposta é sensibilizar as casas espíritas e qualificá-las para a inclusão de pessoas com deficiências/diferenças, aprimorando, para isso, os acessos físicos e afetivos. O Projeto Acessibilidades Jerônimo Mendonça, encabeçado por ela desde 2014, é que ancora as iniciativas, que vão desde realização de oficinas, seminários, vídeos, publicação de cartilhas e livro1, até o apoio a eventos como o Primeiro Encontro Nacional de Surdos e Ouvintes Espíritas, realizado no Rio de Janeiro em 2015. Acompanhe a entrevista de Sonia Hoffmann nesta última edição do ano.

O tema acessibilidades e inclusão é novo na casa espírita?

Não deveria ser, mas para a grande maioria das instituições espíritas não é somente uma abordagem nova como também estranha e difícil como o entendimento da moral trazida por Jesus. Muitos não compreenderam a essência do ensinamento oferecido por Jesus em suas palavras e ações, tanto quanto não perceberam os aprofundamentos inclusivos contidos no ensinamento doutrinário do espiritismo.

Como o espiritismo pode auxiliar a sociedade na compreensão das nossas diferenças?

No momento que nos é esclarecido que todos fomos criados simples e ignorantes, mas que ao longo de sucessivas reencarnações fomos nos diferenciando nas aptidões, experiências e convicções devido ao livre-arbítrio, amadurecimento moral e intelectual e uma diversidade de conquistas evolutivas pelo estagiamento em vicissitudes, gêneros, sexos, faixas etárias e vivências sociais, acadêmicas, culturais e ambientais, em um processo ecológico do mundo externo e interno, possibilitado pelo autoconhecimento.

Há preconceito na afirmação de que a pessoa com deficiência está em processo de resgate nesta encarnação? 

Não necessariamente preconceito, mas a ideia de que alguém com deficiência esteja sempre em resgate pode ser limitante e a demonstração de desconhecimentos quanto à justiça divina, que nos oferece também provas para que possamos testar, ampliar e organizar nossas possibilidades como espírito imortal. É possível da mesma forma ser entendido que talvez a pessoa que traga uma limitação, deficiência ou diferença esteja contribuindo para o despertamento de atitudes mais solidárias, fraternas, conscientes e que promovam a inteligência interativa naqueles com quem  compartilha direta ou indiretamente estas situações mais duradoras (como as deficiências congênitas e adquiridas, sensoriais, motoras, intelectuais, neurológicas e psíquicas) ou temporárias (como as diferenças comportamentais oferecidas pelas crianças, convívio com idosos, gestantes, obesos). As diferenças raciais, sociais, financeiras exemplificam também oportunidades muito ricas para aprendizagens, quanto à generosidade, justiça e acolhimento de todos como criação de Deus.

Em termos práticos, o que pode fazer o movimento espírita para o acesso a todos, nas palestras, reuniões mediúnicas, nos projetos de divulgação? Há algum programa de sensibilização sobre o assunto aos dirigentes espíritas?

Olhar para o outro com a sua deficiência e sua diferença, acolhendo-o como um ser de possibilidades, mesmo que por vias alternativas, e que se encontra em um processo evolutivo tanto quanto as demais pessoas neste planeta. É preciso aproveitar estas oportunidades vivenciais e construir ou tecer uma rede inclusiva, que não dissocia deficiência de diferença porque alguém com sua deficiência não é somente a sua deficiência, mas traz atributos de diferenciação significativos. Por isso, o princípio filosófico de inclusão é a equidade, porque não podemos exigir que todos façam a mesma coisa da mesma forma, e isto nem seria saudável e útil, pois nos manteria estagnados ou limitados no desenvolvimento de nossos talentos. É preciso muito mais do que acolher: precisamos nos disponibilizar, possibilitar que alguém se sinta pertencente dentro deste processo dinâmico, libertador, ‘participAtivo’ e consolador que é a vida inclusiva pela aplicação de recursos de acessibilidades. Por este motivo, eu e meu companheiro Eduardo F. Paes desenvolvemos o Projeto Acessibilidades Jerônimo Mendonça (PAJEM), presencial e virtualmente no Canal do YouTube, não só com o objetivo de sensibilização, porque todos já sabem que a deficiência/diferença existe, mas que é necessário pensar e utilizar estratégias de acessibilidades que consolidem a inclusão com mais efetividade, eficiência e correção.

Por que Jerônimo Mendonça e como funciona este projeto?

Jerônimo Mendonça, o Gigante Deitado, não permitiu que sua deficiência corporal causada pela artrite reumatoide severa deixando-o sem os movimentos de braços e membros inferiores, assim como a cegueira e questões cardiológicas, o impedissem de ser um divulgador do Evangelho e da doutrina espírita. Mais ainda, não aceitou que estas deficiências negassem a bondade divina, que oferece sempre possibilidades evolutivas para quem se reconhece como seu filho. Assim como ele, levamos para diferentes instituições espíritas no Brasil os fundamentos doutrinários inclusivos e a apresentação de estratégias e recursos de acessibilidades por meio de palestras, oficinas, seminários, curadorias e tantos outros eventos que precisam ser contextualizados e organizados a partir da demanda, da realidade e da possibilidade apresentada. Acreditamos que ainda o tema inclusão e acessibilidades será abordado com maior visibilidade e profundidade, em um futuro próximo, nos congressos espíritas.

 Não há como não lhe perguntar: como devemos agir com o cego? O que o deixa à vontade e o que o constrange? Como proceder com outras deficiências?

Como alguém que neste momento vivencia a experiência da cegueira, além de outras alterações sindrômicas e funcionais, posso afirmar que nós queremos ser entendidos, visualizados, acolhidos como pessoas que estão vivenciando uma etapa reencarnatória importante, que temos defeitos e qualidades tanto quanto quem não apresenta experiências limitantes de deficiência, que desejamos ardentemente ser entendidos como pessoas ávidas pelo sentimento de pertencimento e de participação efetiva nas diversas interações entre as pessoas e na estrutura da sociedade e do movimento espírita. Dialoguem conosco, nos questionem, acreditem ser possível, exercitem a coragem e a humildade de saírem de seus pedestais ou de suas redomas que estão muitas vezes vinculados a mecanismos de autodefesa. Deixem que nossas mãos e almas se toquem fraternalmente.

De uma maneira geral, como se sentem nas programações, nos eventos espíritas? Sentem-se acolhidos?

Infelizmente, em algumas atividades do Movimento Espírita e intercâmbios sociais com as pessoas, ainda prepondera o sentimento de invisibilidade, de descrédito, de um bloqueamento na fluidez do relacionamento normal, onde se evidencia o pânico, o medo e a dúvida causada provavelmente pelo desconhecimento de como proceder ou, então, por um excesso de superproteção que mais aparenta rejeição do que cuidado.

Por que há essa dificuldade velada nessa inter-relação? Como o autoconhecimento pode auxiliar nas acessibilidades, na inclusão de todos?

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Nem sempre a dificuldade interativa é tão velada assim. Ela fica evidente tanto nos comportamentos e atitudes de grande complexidade quanto nas sutilezas que, devido à repetição, são facilmente detectados pelas pessoas que vivenciam há muito tempo a deficiência, a diferença ou ambas. Se as pessoas fizessem uma visitação ao seu mundo

interno com mais frequência, talvez encontrassem sentimentos e conflitos que se traduzem em emoções e distanciamentos que trazem muito mais entraves, conflitos e engessamentos do que libertação, alegria e a felicidade de um convívio desafiante nesta aventura do viver. No entanto, no interior de cada um, existe um tesouro pouco explorado e até mesmo desconhecido ou ignorado. O autoconhecimento cada vez mais se faz urgente e precisamos nos esforçar. Seja aquele com a deficiência em seu corpo físico, como aquele com a deficiência em sua atitude, afinal de contas, reconhece-se o verdadeiro espírita, e mais do que isto, o cristão, pelos seus esforços em sua transformação moral e na educação das más tendências, como o marginalizar, como o magoar, como o negligenciar, como o imobilismo e a permissividade, porque não é somente roubar e matar uma inclinação a ser modificada. De certa maneira, talvez uma atitude deficiente esteja roubando e matando em todos os envolvidos a chance de progresso e de conquista do prazer de conviver.

Como romper as barreiras das acessibilidades e inclusão na casa espírita? Como podemos aprimorar a nossa empatia nos relacionamentos no sentido de se promover igualdade de oportunidades?

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Barreiras de diversas maneiras existem, mas a principal delas está na barreira atitudinal. A mudança para uma atitude mais empática (não apenas cognitiva, afetiva, mas que se traduz na preocupação empática com o outro pela compaixão), a alteridade e o reconhecimento de que podemos a qualquer momento estagiar em qualquer situação, rompe todas as demais barreiras, porque passamos a perceber a nós e ao outro com um olhar sensível e uma ação inteligente. Assim, as barreiras arquitetônicas, comunicativas, informativas, tecnológicas e tantas outras podem ser reduzidas e mesmo eliminadas se as barreiras atitudinais forem trabalhadas e vencidas.

Como você analisa a justiça divina? Acredita que existam deturpações no próprio meio espírita sobre o entendimento dos nossos ajustes morais?

A justiça divina se expressa em toda a sabedoria pouco entendida na sua essência e nas suas intenções, porque o egocentrismo, o orgulho e os instintos de selvageria ainda rugem em muitos corações e na alma. Bendita a possibilidade de aprendizagem que a Paternidade Divina concede a cada um de seus filhos. Precisamos agir de modo mais inteligente, com paciência e resignação ativa por existirem ainda algumas relações nebulosas na instituição espírita em suas diferentes estruturas. Os desafios e os alertas estão cada vez mais presentes e soando mais altos; que tenhamos olhos de ver e ouvidos de ouvir.

Gostaria de comentar sobre algum tema que não tenha sido abordado aqui?

Agradeço a oportunidade em iniciar este processo de conversação e de dialogação inclusiva com todos os leitores diretos e indiretos desta publicação. Muito existe para ser dito e feito, mas algumas vezes o remédio precisa ser ministrado em doses diferenciadas. O importante é que a medicação da inclusão seja ingerida. Compartilhem conosco a rede inclusiva. 

Site: www.pajem.net  
1 Inclusão e acessibilidades. Sonia Hoffmann, ed. Solidum, 2018.