Filosofia Espírita
Por Eliana Haddad
Graduado em filosofia, com especialização em Filosofia da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora, MG, Humberto Schubert Coelho concluiu em agosto de 2020 seu pós-doutorado em filosofia no Centro para Ciências e Religião Ian Ramsey da Universidade de Oxford, Reino Unido, sobre os temas Deus, espírito e liberdade. Nascido em berço espírita (ele é neto da escritora Suely Caldas Schubert), Humberto é palestrante internacional, autor espírita com artigos, ensaios e livros espíritas, sobretudo com enfoque filosófico e histórico. Também está à frente do Grupo de Estudo Filosófico Espírita, que se reúne virtualmente todas as semanas, arregimentando espíritas de vários países, atualmente estudando sob sua batuta a obra de Léon Denis. Acompanhe-o na entrevista.
Como vê o espiritismo atualmente? Acredita que seja a vez do seu aspecto filosófico?
Precisamos ter cuidado com as ondas frequentes de pessimismo e de entusiasmo idólatra. Ambas ocorrem em qualquer movimento de ideias, mas como o espiritismo carece de uma barreira institucional, por não ser igreja ou seguir decretos e estatutos fixos, somos mais acometidos por modismos. O fato de não sermos um corpo institucional dogmático e autoritário é uma de nossas maiores vantagens, mas é natural que essa estrutura também crie dificuldades. Vejo o espiritismo envolvido na típica crise propiciada pela proliferação de agentes, vozes, plataformas e segmentos. A maioria dessas vozes dissonantes brota do puro personalismo e da fascinação com novidades. Mas também há crescimento, enriquecimento, diversificação e maturação do movimento espírita nesse processo. Entre outras transformações positivas, parece haver uma tendência ao resgate da natureza filosófica do espiritismo. Os adeptos e praticantes do espiritismo têm se mostrado mais abertos à filosofia, e também a um embate com os clássicos, fora da visão catequética de uma “formação espírita pura”, a partir exclusivamente da literatura espírita.
Você se especializou na academia em filosofia da religião. Como a filosofia pode auxiliar na compreensão do espiritismo?
Optei por estudar filosofia da religião pela análise racional dos elementos da vida religiosa e pela necessidade de compreender a fusão entre filosofia e religiosidade operada pelo espiritismo. Hoje, encontro-me satisfeito com essa escolha de percurso formativo, pois avalio que ela me ajudou nessas que eram grandes demandas do meu espírito.
A primeira contribuição concreta da filosofia para o espiritismo é a possibilidade de aclaramento conceitual, particularmente necessário em uma doutrina que está suspensa a meio do caminho entre filosofia, ciência e religião, cuja falta vem causando, desde o seu surgimento, problemas facilmente solúveis, pelo correto emprego das palavras e o discernimento entre temáticas, tipos de discurso e perspectivas. Também, a filosofia contribui fortemente para o melhor entendimento da ética, da metafísica e da própria religião no seio do mundo contemporâneo. Grande parte dos espíritas mais instruídos são levados a um estado de confusão a respeito desse “lugar” de Deus, da alma e da moralidade, em face de teorias que as reduzem a funções culturais, psicológicas ou sociais.
O que é, afinal, a filosofia espírita?
A filosofia espírita e o espiritismo são a mesma coisa. Diante da emergência dos fenômenos espetaculares que marcaram um renascimento espiritualista no século 19, o espiritismo foi a resposta propriamente filosófica de que careceram inúmeros outros pesquisadores que, apesar de sua indiscutível competência e valor, não extraíram dos fenômenos conclusões morais, deixando-se paralisar diante do pórtico do esclarecimento, talvez por medo das consequências negativas que certamente teriam de enfrentar. Aceitando com abnegação cristã a destruição de sua carreira, seu nome, sua vida profissional e sustento, Allan Kardec cruzou o pórtico, e retornou com lições profundamente consoladoras, que não haviam sido oferecidas pelos seus contemporâneos dedicados à pesquisa psíquica e ao espiritualismo. Sem idealizações idólatras, que suponham ser Kardec autoridade infalível e incapaz de errar, a razão deve ceder a ele o laurel de organizador da filosofia espiritualista, para a qual ele cunhou o nome de espiritismo.
Distinta das demais escolas filosóficas por condição e natureza bem peculiares, o espiritismo não é facilmente reconhecível pela sociedade como projeto filosófico que é, uma vez que assenta sobre o estudo de fenômenos ainda radicalmente negados pela comunidade científica. Este o principal motivo pelo qual desenvolveu-se, enquanto movimento e até certo ponto enquanto doutrina, como religião e não como escola filosófica.
Você reúne um grupo online de espíritas espalhados pelo mundo todo para estudos filosóficos espíritas. Como surgiu esse projeto, como pode ser acessado?
O projeto foi idealizado pelo amigo Fabrício Assunção, fundador da Sociedade Espírita de Bournemouth, na Inglaterra, após um evento que organizamos naquela cidade, focando o aspecto filosófico do espiritismo. Muitos outros membros do movimento espírita na Europa já me haviam relatado que o discurso evangelista é fortemente repudiado naquelas culturas, e que o espiritismo encontra ouvidos mais receptivos quando é apresentado como visão moderna, liberal, científica e filosófica. Rapidamente, contudo, residentes no Brasil, com os quais comentamos sobre a iniciativa, também se interessaram pela proposta. O grupo ainda está em gestação, mas já cresceu para além da Europa, com participantes inclusive da África. Os vídeos estão hospedados nos canais de Youtube de nossas respectivas sociedades espíritas: Spiritist Society Bournemouth e Sociedade Espírita Primavera, à qual pertenço, em Juiz de Fora.
Você acredita que a formação de grupos virtuais para estudos espíritas seja uma tendência que veio para ficar?
Já acreditava no potencial e importância de tais tecnologias desde que surgiram, mas a atual pandemia consolidou e provou que são muito benéficas e ilimitadas. Embora os encontros presenciais sejam fundamentais, e melhores sob muitos aspectos, a liberdade e a radical equalização das oportunidades marcam o encontro virtual como meio de divulgação por excelência. Trata-se de avanço que evidencia a verdadeira primazia do intelecto, do espírito sobre a matéria, pois podemos nos comunicar, compartilhar vivências e estabelecer profundas sintonias estando a milhares de quilômetros uns dos outros.
Atualmente, você está analisando com o grupo a obra O problema do ser, do destino e da dor, de Léon Denis? Ele pode ser considerado mesmo um filósofo?
Os estudos e publicações sobre Léon Denis, como sobre outros pensadores espíritas, são ainda lamentavelmente incipientes e aquém do que mereceriam. Na falta total de condições materiais e educacionais, Denis foi capaz de elaborar uma obra monumental e de erudição assombrosa. E ele pode, sim, ser considerado um filósofo. Denis pôde integrar o espiritismo ao todo do saber humano porque pensava como filósofo, filosofava, e não recebeu os textos de Kardec como catequese ou manifestos para serem repetidos mecanicamente. Pensou como espírita, e por isso foi de fato espírita. A obra de Denis oferece uma contribuição grandiosa ao pensamento espírita. Em alguns aspectos ele reforçou ou contextualizou o pensamento kardequiano em face das novas realidades de sua geração. Em outros, como no caso da estética e da aplicação da filosofia espírita à arte, ele realmente expandiu o escopo do próprio espiritismo. Espírita por excelência, Denis refletiu a essência da proposta de Kardec e dos espíritos da Codificação porque soube absorvê-la e pensar de acordo com ela, em vez de a repetir apenas na letra.
Qual sua opinião sobre o espiritismo como proposta de autoconhecimento?
Quando não encarado como seita religiosa, e sim como ferramenta civilizatória acrescentada a um conjunto de outras, o espiritismo contribui extraordinariamente para o autoconhecimento, exatamente em razão das peculiaridades de sua natureza, que incentivam o seu praticante a intensificar ao mesmo tempo a fé e a crítica, a empatia e o bom senso, a disposição caritativa e o entendimento filosófico da perfeita justiça de Deus.
Como o movimento espírita pode aprofundar esse conhecimento sobre o aspecto filosófico da doutrina?
Há muitas décadas esse aspecto basilar da doutrina espírita não tem sido suficientemente enfatizado pelos esforços de divulgação. Acredito que os divulgadores de até meados do século 20 sabiam compreendê-lo melhor. Isso ocorre porque o nível cultural do adepto e do trabalhador espírita hoje está aquém da complexidade e profundidade da proposta. O excesso de romances de fraco propósito, livros de mensagens mais subconscientes do que psicográficas, ao lado de obras outras de baixíssimo nível intelectual e moral exerceram um papel. A construção cultural do palestrante como figura encantadora, cativante e capaz de entreter, sem necessariamente esclarecer e instigar ao despertamento, também exerceu indubitavelmente papel deletério.
O remédio, contudo, está à nossa disposição. Basta comparar a literatura espírita dos primeiros oitenta ou cem anos com a mais recente para percebermos que, na média, algo de errado aconteceu. Em sua natureza, a filosofia espírita é filosofia enquanto tal, evoca nas consciências a urgência da meditação filosófica sobre as mais graves questões humanas, provoca o autoexame, e não se pode dissimular essa natureza para aqueles que conhecem os clássicos e buscam leituras comparativas, como recomendaram e fizeram Kardec e Denis, por exemplo.
Em seu livro Genealogia do espírito (Feb) você afirma que o exercício da intuição seria um grande passo para a mudança da mentalidade atual que tudo divide em extremos. A intuição seria o caminho do meio. Como desenvolvê-la?
Para fugir dos clichês e vocabulário místico que também têm sido prejudiciais, poderíamos identificar a intuição com a lucidez do espírito maduro. Não se trata, portanto, de técnica esotérica, como alguns procuram desenvolver com grande esforço e pouco resultado, nem ocorrência espetaculosa, e sim um “senso” da verdade, do bem e do belo que brota naturalmente na alma dos que conheceram a verdade, o bem e o belo. Esta lucidez do espírito, portanto, desenvolve-se inevitavelmente como somatório dos progressos intelecto-morais do espírito, mas, por isso mesmo, será aquisição lenta e gradual.
Como você analisa o desenvolvimento da mediunidade nos dias atuais e como a enxerga no futuro?
Eu a enxergo muito na esteira da resposta anterior. Para desmistificarmos a mediunidade e integrarmos ao conhecimento espírita o que vem sendo desenvolvido pelas neurociências, pela psicologia e, principalmente, pelas atuais pesquisas em espiritualidade, precisamos nos abrir para novas possibilidades de interpretação de nuanças ainda não percebidas ou pouco exploradas desse que não é um fenômeno, mas todo um campo fenomênico. Nossos maiores especialistas em mediunidade reconhecem que, se temos o roteiro prático e a experiência, a ciência profunda do mediunismo e do psiquismo em geral é realização futura ainda distante.
Suas considerações finais
Precisamos pensar na valorização do aspecto filosófico da cultura espírita. Essa nova luz se caracterizará, certamente, como uma onda de estudos, textos e reflexões sobre o que o espiritismo realmente é, o que representa e como pode e deve ser praticado.