A teoria, o método e a prática de Allan Kardec

Por Eliana Haddad 

Silvio Chibeni: Em defesa do estudo sério do espiritismo para não desacreditar Kardec por amadorismo e falta de rigor em propostas mal fundamentadas.

Silvio Chibeni: Em defesa do estudo sério do espiritismo para não desacreditar Kardec por amadorismo e falta de rigor em propostas mal fundamentadas.

Mestre em física, doutor em lógica e filosofia da ciência, com pós-doutoramento na Universidade de Paris VII, Silvio Seno Chibeni é professor titular do Departamento de Filosofia da Unicamp. Ajudou a fundar, há cerca de 40 anos, um grupo de estudos que se reúne semanalmente na Universidade para estudar textos espíritas. Atento à necessidade de se considerar a metodologia, a teoria e a prática adotada por Allan Kardec, Chibeni afirma que vários dos desvios da essência do espiritismo poderia ser evitados com a valorização do estudo da Revista Espírita, como fonte de pesquisa para melhor compreensão do surgimento e desenvolvimento do espiritismo, no século 19, em Paris.

Você coordena o Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp. Como nasceu esse projeto?

O grupo se formou no final de 1979, informalmente, e permanece assim até hoje. Não é um grupo da universidade; apenas se reúne para estudos espíritas, em horário de almoço e em espaços ociosos, para não interferir nas atividades oficiais da instituição. As reuniões são abertas à participação de pessoas externas à universidade e visam à análise cuidadosa de textos espíritas ou relacionados ao espiritismo. Desde o início, a ênfase tem sido nas obras de Allan Kardec. 1

 Quais as maiores dificuldades enfrentadas hoje para o estudo do espiritismo?

Há um problema mais geral, que é a falta de formação e hábito de estudo das pessoas, decorrente do baixo nível educacional e cultural da sociedade brasileira. Isso afeta não somente estudos do espiritismo, mas também de qualquer outra área. No âmbito especificamente espírita, a dificuldade principal liga-se à perda de referência da abordagem metodológica, teórica e prática adotada por Allan Kardec. Refiro-me à perda efetiva de contato, não a meras menções a ele, sem a devida profundidade. Kardec hoje funciona mais como um ícone, uma marca, do que como uma referência intelectual sólida e não igualada por ninguém, desde sua época.

Como analisar o tríplice aspecto da doutrina espírita?

Já escrevi especificamente sobre o assunto no artigo “O Espiritismo em seu tríplice aspecto: científico, filosófico e religioso” (Reformador, agosto 2003, pp. 315-319, setembro 2003, pp. 356-359, outubro 2003, pp. 397-399). Embora esse texto já esteja, aos meus próprios olhos, um tanto envelhecido, depois de mais estudos e amadurecimento, ainda contém, penso, o principal que teria a dizer sobre a questão. Parece-me importante enfatizar que Kardec não pensou o espiritismo nos termos dessa caracterização. Ele o formulou como uma “filosofia espiritualista”, conforme destaca a frase que encima a folha de rosto da segunda edição de O livro dos espíritos. Com isso, não quis escolher um dos membros da distinção tripartite que costumamos fazer hoje, por nossa conta e risco. Para entender bem isso, é preciso remontarmos ao contexto da época e examinar cuidadosamente as suas próprias análises da questão, sintetizadas no capítulo inicial de A gênese, intitulado “O caráter da revelação espírita”. Deve-se notar que, sob certa perspectiva mais específica, Kardec considerou o espiritismo como a “ciência espírita”, como fica explícito em inúmeros textos seus, especialmente em O que é o espiritismo. Isso não significa que tenha escolhido um dos aspectos da distinção posteriormente introduzida por nós. Estudando e refletindo sobre o assunto, considero hoje mais adequado abandonarmos tal distinção. Ela não apenas não reflete bem o que Kardec propôs, como também tem levado a discussões e cismas lamentáveis entre espíritas, desde a morte de Kardec até nossos dias. 

Por que a ciência não admite a existência do espírito?

A ciência, enquanto instituição, não propõe nem rejeita a existência do Espírito (no sentido espírita do termo, que Kardec marcou usando iniciais maiúsculas), simplesmente porque estudar a questão não está em seu escopo, nem deve estar. Esse ponto foi explicitamente abordado por Kardec, no item 7 da introdução da segunda edição de O livro dos espíritos (1860) e, com ainda mais detalhes, em O que é o espiritismo, décima quinta resposta ao Crítico (cap. I, Primeiro diálogo). Também no Segundo diálogo, com o Cético, Kardec trata do assunto: “As ciências ordinárias repousam sobre as propriedades da matéria, que se pode, à vontade, manipular; os fenômenos que ela produz têm por agentes forças materiais. Os do Espiritismo têm, como agentes, inteligências que possuem independência, livre-arbítrio e não estão sujeitas aos nossos caprichos; por isso eles escapam aos nossos processos de laboratório e aos nossos cálculos, e, desde então, ficam fora dos domínios da Ciência propriamente dita.”

Sobre o assunto, recomendaria a leitura de artigos do professor Aécio Pereira Chagas, publicados ao longo de anos no Reformador e na Revista Internacional de Espiritismo; alguns deles encontram-se reproduzidos no site do GEEU (www.geeu.net.br ).

 Como preservar a continuidade do espiritismo em sua essência, segundo Kardec?

Revalorizando-se a obra de Allan Kardec, tomando-a como diretriz efetiva não apenas para a compreensão das bases já firmadas por ele, mas sobretudo para o prosseguimento dos estudos e pesquisas espíritas, e para a conformação de uma didática para sua transmissão para iniciantes. Nesse empreendimento é essencial compreendermos como Kardec trabalhava, e não apenas ver o resultado desse trabalho. Para isso temos a sorte de contar com a Revista Espírita. O estudo da Revista tem sido subestimado no meio espírita, em todos os tempos e lugares. Várias das dificuldades que têm estorvado a continuidade do espiritismo “em sua essência” poderiam ser evitadas com a revalorização dessa fonte primária, fundamental para a formação de qualquer espírita.

Kardec estaria ultrapassado diante das descobertas científicas após o século 19?

Esse de nenhum modo é o caso. Kardec reconheceu a especificidade do campo de estudos do espiritismo e sua autonomia relativamente ao que ele chamava de “ciências ordinárias”, para distingui-las da ciência espírita. Foi essa independência, cuidadosamente observada por Kardec na elaboração do espiritismo, que lhe garantiu a preservação frente às muitas alterações sofridas pelas ciências acadêmicas desde aquela época até hoje. Vejo com preocupação a atitude de pessoas que, ignorando ou desprezando essa sábia distinção, pretendem forçar a aproximação do espiritismo às atuais teorias científicas, especialmente as da física. É, como também notou Kardec, o caminho mais fácil para desacreditá-lo, dado o amadorismo e falta de rigor com que em geral essas propostas são feitas.

Qual sua opinião sobre as teses espíritas defendidas no meio acadêmico?

Esse é um fenômeno cultural relativamente recente e bastante auspicioso. Acompanhei, por vezes diretamente, a origem e desenvolvimento de vários desses trabalhos. Posso dizer sem hesitar que representam um esforço importante de compreensão do espiritismo a partir de um referencial independente. Os melhores desses trabalhos – dissertações, teses, alguns livros e artigos, a formação de grupos de pesquisa, com intercâmbio interdisciplinar e internacional – começaram a colocar, embora tardiamente, o espiritismo na esfera dos estudos acadêmicos. Isso não deve ser interpretado como uma mescla descuidada de espiritismo com ciência e outras áreas acadêmicas. Nos trabalhos a que me estou referindo, ada um dos âmbitos tem sua autonomia preservada, notando-se um salutar respeito mútuo, com ausência de qualquer tendência de “conversão” para ou contra o espiritismo. Quanto aos temas explorados, noto que há, como aliás sugeriu Kardec, uma concentração nas áreas fronteiriças entre o espiritismo e a ciência ou, mais geralmente, disciplinas acadêmicas, como por exemplo a literatura, a música, a história, a pedagogia, a filosofia, a psicologia e a psiquiatria. São, portanto, disciplinas que tratam do espírito no sentido filosófico do termo, ou seja, do ser humano enquanto ser pensante, com sentimentos, paixões, ideias e ideais. São áreas em que os lados podem aprender um com o outro. A observação desse ponto permite um contraste com as disciplinas tipicamente voltadas ao estudo da matéria inanimada, como a física, a química e a biologia, em que nenhum contato frutífero existe nem deve ser procurado, ao menos a curto e médio prazos, como nos alertou Kardec nas obras já mencionadas. Como Kardec também observou, profissionais dessas áreas podem, naturalmente, se interessar pelo espiritismo, estudá-lo, discuti-lo, abstração feita de sua condição de cientistas. Um exemplo que merece nossa atenção seria o já mencionado professor Aécio Chagas, professor titular de química da Unicamp, e que soube, como poucos, contribuir de forma relevante quer para a química e sua divulgação, quer para os estudos espíritas, sem nunca ter forçado pontes duvidosas entre os dois domínios.

 Como você, como pesquisador e acadêmico, analisa a obra de Kardec?

Justamente levando em conta o que acabo de propor, não cabe a mim, enquanto acadêmico profissional das áreas de filosofia e física, opinar sobre a obra de Kardec. Pessoalmente, e aproveitando meus conhecimentos acadêmicos, estudo essa obra com muito interesse desde que aprendi a ler. Destacaria aqui a importância que teve para mim o contato com a Revista Espírita, especialmente quando seus originais franceses se tornaram acessíveis. O exame crítico dos bastidores da obra de Kardec e suas múltiplas atividades práticas e de pesquisa no desenvolvimento da teoria espírita foi, para mim, um verdadeiro divisor de águas. Pude perceber, entre outras coisas, como o exemplo dele, como pesquisador e como pessoa humana, está longe de ser seguido de forma geral e consistente no movimento espírita.

Como vê o futuro do espiritismo no Brasil e no mundo?

Vejo-o sob perspectivas contrastantes. Por um lado, há entraves enraizados na mentalidade de porção majoritária de espíritas e suas instituições, em decorrência da limitada assimilação efetiva do legado de Kardec. Mais grave ainda é o fato de que há pouca consciência disso e, em consequência, poucos esforços de superação, em que pese a boa vontade da generalidade dos espíritas, mesmo quando a solução está tão ao nosso alcance. Por outro lado, há iniciativas animadoras, tanto as de análise acadêmica de temas espíritas na fronteira com as disciplinas acadêmicas, como as mencionadas anteriormente, como de estudo e valorização do referido legado, considerado não apenas em sua superfície mais conhecida, mas principalmente como estratégia excelente de exploração racional e experimental da realidade espiritual do ser humano. Faz bastante tempo publiquei um artigo intitulado “O paradigma espírita” (Reformador, junho de 1994), em que aproveitei uma das mais importantes análises contemporâneas da ciência, do filósofo Thomas Kuhn, para sugerir que a obra de Kardec poderia e deveria funcionar para os espíritas como um “paradigma”, ou seja, um exemplo de empreendimento de pesquisa a ser seguido. À época  não me era inteiramente claro, porém, que a adoção desse paradigma é algo ainda a ser efetivamente feito, numa escala mais geral e de forma mais profunda. Nesse referencial de análise, o futuro do espiritismo – que está em nossas mãos – dependerá essencialmente de como a percepção desse ponto puder ser ampliada, a partir dos poucos bons exemplos que, felizmente, começam a surgir no meio espírita.

1-    Informações sobre o Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp e publicações de diversos artigos estão disponíveis em www.geeu.net.br.