Bezerra de Menezes ganha nova biografia

Por Eliana Haddad e Izabel Vitusso


Professor licenciado em história e pós-graduado em história: questões teóricas e metodológica, Luciano Klein é presidente da Federação Espírita do Estado do Ceará, do Memorial Bezerra de Menezes, em Fortaleza, diretor do Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico e Antropológico) e um pesquisador contumaz, motivado, principalmente, pelo desejo de recuperar e preservar a memória do espiritismo no estado do Ceará. O escritor acaba de lançar, em Fortaleza, o livro que sintetiza pelo menos 30 anos de estudos e buscas sobre um dos nomes mais referidos na história do espiritismo no Brasil, o do cearense Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti (1831- 1900). Textos, fotos inéditas de Bezerra, o socorro por ele prestado, os motivos que o levaram a escrever sobre a loucura; sobre tudo isso você lê nesta entrevista.

Bezerra de Menezes: o homem, seu tempo e sua missão, o livro que você acaba de lançar, pela Federação Espírita do Estado do Ceará, envolve muitos anos de pesquisa. De onde vem esse interesse pela vida de Bezerra de Menezes? 

Desde os tempos de juventude espírita, quando travamos contato pela primeira vez com a trajetória existencial de nosso ilustre conterrâneo. Ficamos vivamente impressionados, ao mesmo tempo apaixonados, por sua extrema dedicação ao próximo. Foi alguém que realmente pregava o que vivia e vivia, cotidianamente, aquilo que pregava. E por isso ele simboliza para mim o protótipo genuíno daquele “Homem de Bem”, preconizado por Allan Kardec no capítulo 17 de O evangelho segundo o espiritismo.

Qual o diferencial do livro com relação às biografias já publicadas sobre ele?

As biografias pioneiras foram grandemente importantes, ensejando-nos informações primordiais à perpetuação da memória de Bezerra. No primeiro capítulo, intitulado “Bezerra de Menezes, vários olhares”, comentamos sobre as principais biografias publicadas até a década de 1950, ressaltando o valor de todas elas, inclusive a esquecida e pioneira, da lavra de Prezalindo Lery Santos, escrita em 1880. Nosso trabalho, contudo, apresenta a visão do historiador que, embora espírita, analisa Bezerra como homem de seu tempo – o Brasil oitocentista – em meio às grandes transformações pelas quais o país e o mundo passavam. Durante a realização de nossas buscas, em noites ‘perdidas’ de vigílias fecundas, colhemos farto material, em sua maioria inéditos, acerca do nosso biografado, agora distribuídos em 1.192 páginas ao longo de dezessete capítulos.

 O que você descobriu de mais interessante sobre Bezerra de Menezes?

Muitas, muitas coisas... por exemplo, a relação completa de seus filhos dos dois matrimônios. Dois deles, Adolfo e Antônio, com Maria Cândida, a primeira companheira desencarnada prematuramente aos 19 anos, em 1863. E do segundo casamento, com Cândida Augusta de Lacerda (na intimidade familiar chamada de Dodoca), mais 14 filhos: Maria Cândida, Ernestina, Carolina, Otávio, Emmanuel, Cândida Augusta, Cristiana, José Rodrigues, Francisco da Cruz, Hilda, João, Maria da Conceição, Consuelo e Antônia. Esta última, Antônia Bezerra de Menezes, foi adotada por Bezerra e Dodoca e era escrava alforriada pelo sogro de Bezerra, em 1867, logo após o seu nascimento. Destes filhos todos, porém, quando do retorno do “Médico dos Pobres” ao mundo espiritual, em 1900, estavam encarnados apenas sete: Ernestina, Otávio, José Rodrigues, Francisco, Hilda, Maria da Conceição e Antônia. 

A que você atribui o grande destaque que Bezerra de Menezes encontra ainda hoje entre os espíritas?

Por ter sido alguém que, diferentemente da maioria de nós, punha em prática o pensamento do filósofo e romancista franco-argelino Albert Camus (1913-1960): “Só conheço uma obrigação: a de amar”. Foi essa (e continua sendo!) a tônica recorrente de sua jornada em suas diversas áreas de atuação, como médico, político, abolicionista, cientista, empresário, romancista, jornalista e espírita.

Trinta anos de pesquisa e nas mãos um livro de quase 1.200 páginas. Dá pra falar sobre sua emoção?

Algo indescritível. Uma imensa alegria por contribuir, como historiador, às gerações porvindouras legando informações preciosas sobre aquele que foi, com justiça, cognominado de o “Kardec Brasileiro”. Essa alegria experimentada vem, sobretudo, pelo fato de resgatarmos inúmeros nomes que gravitaram em torno da vida do bondoso Esculápio e que ficariam em completo esquecimento. Aliás, o jornalista e amigo Tarcísio Matos, um dos revisores da obra, chegou a dizer que acreditava ser o livro um pedido do próprio Bezerra, ante o desafio proposital de informar sobre o meio em que nasceu e cresceu, contando menos de si e mais dos outros, entre familiares (pais, irmãos, esposas, filhos, agregados) e amigos à margem da história oficial, como forma de repor verdades históricas, dar crédito às pequenas coisas que fazem muita diferença. 

O que vamos encontrar nesta obra? 

Dezessete capítulos bem documentados. Um substancioso dossiê que nos mostra uma alma multifacetada com atuação em vários ramos do conhecimento e do saber humanos. Um dos mais versáteis escritores nacionais de seu tempo. De sua lavra encontramos, além de textos eminentemente científicos da área médica ou correlatas, escritos históricos, geográficos e geológicos, bem como análises econômicas e antropossociológicas do Brasil. A filosofia permeou tanto seus artigos de cunho político, publicados em grande número nas principais gazetas cariocas, na sua incansável peleja jornalística, como também – e principalmente – em seus escritos espiritistas, sobretudo nas páginas do Reformador ou na popularíssima coluna “Estudos Filosóficos”, do jornal O Paiz, editado no Rio de Janeiro. Nesse ecletismo, seus romances proporcionavam ao leitor um passeio pelos mais diversos saberes. 

Das atividades desenvolvidas por Bezerra em sua existência na Terra, qual delas, em sua opinião, melhor o representa. Por quê?

A de médico humanitário, porquanto constatamos, pela lupa do historiador, ter sido ele muito maior, muito mais extraordinário, muito mais incrível do que aquele “Médico dos Pobres” que hoje conhecemos.

O livro vai mudar algum referencial do que representa Bezerra, principalmente para nós, espíritas?

Sim, principalmente por mostrarmos a maneira como ele via o espiritismo, uma doutrina tríplice como Kardec nos deixou. Embora sua predileção pelo aspecto moral, nunca foi um ‘místico’, expressão contra ele pejorativamente empregada por alguns adversários, e sim o mais científico dos espíritas brasileiros oitocentistas, assunto, aliás, tratado em um capítulo específico do nosso livro. 

Quais documentos raros sobre Bezerra você encontrou?

Fotografias inéditas, como a que ilustra a capa do livro (inclusive uma delas sem barbas aos 23 anos), caricaturas, documentos pessoais, diplomas, certidões, condecorações, atas, inúmeras imagens da família (mãe, irmãos, esposas e filhos), etc.

Há tantos casos de curas atribuídas ao espírito Bezerra de Menezes. Você teve acesso a algum relato especial e ainda inédito sobre isso?

Cito algo que foi devidamente documentado. O jornal carioca Gazeta de Notícias, em 27 de fevereiro de 1889, sob o título “Gratidão”, publicou uma nota em que o casal Domingos Manuel Ferreira e Maria Florência Ferreira agradeciam a Bezerra de Menezes por salvar a vida da filha Maria da Glória. A menina havia engolido, no dia 19 daquele mês, uma agulha, que não foi possível ser extraída na Santa Casa de Misericórdia. Talvez como último recurso, o desesperado casal resolveu procurar o dr. Bezerra para a extração do objeto engolido e para que atenuasse a dolorosa inflamação na garganta da criança. Diz o periódico que, utilizando-se de medicação homeopática, ele não só debelou a inflamação, como também fez com que a agulha e toda a linha engolida fossem expelidas, ficando a garotinha curada e fora de perigo. Os pais, profundamente agradecidos, concluem a nota dirigindo as palavras ao médico benfeitor: “Que Deus lhe pague o muito que lhe devemos, perdoando-nos se ofendemos sua bem reconhecida modéstia e caridade”.

Na prática, qual o principal legado que Bezerra deixou no campo da medicina, psiquiatria? 

Em nossa opinião, uma de suas maiores contribuições: A loucura sob um novo prisma, sua pesquisa lançada postumamente, em 1920, foi, verdadeiramente, a obra de sua predileção. Por meio deste trabalho pretendia, como cientista e espírita, legar à humanidade o seu contributo. Desde 1886, ano de sua adesão pública ao espiritismo, passou a trabalhar com mais afã a questão da loucura. Concorreu para tanto o agravamento da saúde de seu filho mais velho, Adolfo Júnior, diagnosticado pela medicina convencional como portador de uma enfermidade psiquiátrica. Adolfo mobilizou especial atenção do pai, que se debruçou sobre tudo quanto existia de mais atual na esfera das ciências perscrutadoras dos transtornos da alma humana. Adolfo Júnior, rapaz de temperamento afável, frequentador de reuniões espíritas, tornou-se agressivo e arredio. A pesquisa de Bezerra passaria por seguidas adaptações à medida que aprofundava seus estudos relativamente às ciências psicológicas e intensificava seus experimentos na área mediúnica. Pretendia, talvez, homenagear o filho que desencarnaria a 22 de janeiro de 1899, oferecendo ao mundo os resultados de suas buscas, através das explicações acerca da problemática de Adolfo, vista por um prisma diferente daquele apresentado pelos alienistas oitocentistas. Bezerra aguardava ansiosamente a publicação em livro dessa pesquisa, fato que infelizmente não ocorreu, devido a sua desencarnação, em 11 de abril de 1900. A pesquisa demorou por mais de um decênio. Acreditamos que a razão do retardamento de sua edição deveu-se à intenção do médico cearense de apresentá-la no Congresso Espírita e Espiritualista Internacional de Paris, em 1900. Esse congresso ocorreu entre os dias 15 e 27, na capital francesa e foi presidido por Léon Denis. 

Bezerra aspirava apresentar sua pesquisa naquela histórica convenção que contou com a presença de nomes como Victorien Sardou, Alfred Russel Wallace, Gabriel Delanne e Alexandre Aksakof. Teria sido algo deveras interessante à história do espiritismo, caso Bezerra de Menezes, a maior expressão do espiritismo na época, houvesse participado do solene encontro, com os maiores estudiosos dos fenômenos psíquicos de seu tempo. Muito provavelmente ele faria alguma preleção apresentando sua pesquisa em francês, idioma que falava fluentemente. Lamentavelmente, em face de seu desenlace ocorrido cinco meses antes da abertura do evento, ele não pôde, pelo menos fisicamente, comparecer.

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