Manuscritos de Victor Hugo e as sessões espíritas

Por Eliana Haddad

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Nem sempre disposta a reconhecer uma inspiração do mundo invisível, a crítica literária se vê agora diante da publicação dos registros das sessões espíritas realizadas pelo poeta, escritor e dramaturgo Victor Hugo (1802-1885).


Romancista consagrado, político atuante, o autor de obras memoráveis como os miseráveis e de O corcunda de Notre-Dame costumava reunir a família e os amigos para conversar, através das manifestações em mesas girantes. Descobria, perguntava e anotava as experiências. Conversavam, por exemplo, com Moliére, Shakespeare, Rousseau, Mozart, Galileu, Lutero, Rafael e Maomé, dentre outros.


Pela primeira vez, estão sendo trazidas agora a público as transcrições desse rico material histórico (O livro das mesas, as sessões espíritas da Ilha de Jersey, Ed. Três Estrelas), reunido em quatro cadernos manuscritos pelo próprio Victor Hugo e que descrevem em detalhes diálogos e observações das sessões espíritas realizadas em sua casa, na ilha de Jersey, entre 1853 e 1855, onde ficou exilado, após o golpe de Estado de Luís Napoleão Bonaparte.


Na mesma época, em Paris, Allan Kardec também começava a se interessar pelo mesmo fenômeno das mesas falantes, que tanto o intrigou, a ponto de levá-lo a pesquisar incansavelmente o que havia por trás do que era considerado até então simples passatempo, uma fútil curiosidade da sociedade da época. Do fenômeno às causas inteligentes, assim nasceria pouco mais tarde, em 1857, a doutrina espírita, com a publicação de O livro dos espíritos, seguido por outras obras que descortinariam uma nova visão de mundo, um estudo sério que ao longo de 12 anos revelaria os segredos além da matéria.


É notável perceber como o espiritismo influenciou a obra de Victor Hugo, ao se constatar em seus famosos textos temas transcendentais, sempre buscando analisar o homem e o mundo sob uma visão diferente do materialismo da época. Tudo isso pode ser atestado nesse material agora vindo a público, que mostra, inclusive, sua troca de ideias com os espíritos, que opinam, criticam e sugerem mudanças na sua produção intelectual, sem contar as produções compartilhadas em interessantes parcerias além-túmulo.


Não foi à toa também o cuidado de Victor Hugo em registrar e guardar essas informações. Ele pretendia deixar uma publicação póstuma com esse conteúdo. Adquiridos em 1962 e 1972, os cadernos hoje fazem parte do Catálogo da Biblioteca Nacional da França, e o pesquisador e editor Patrice Boivin ainda descobriu no acervo da Maison de Victor Hugo atas e cartas inéditas que atestam a veracidade da vivência espírita do grande escritor.


Boivin assinala a influência que as sessões espíritas exerceram no campo literário, tendo assim contribuído para o complexo processo da criação poética. "Com efeito, as mesas constituem uma etapa importante na obra de Victor Hugo, cuja influência será duradoura". "Elas deram corpo a obras latentes, a uma nova escrita", conclui.


Parceria com Shakespeare


Quarta-feira, 25 de janeiro de 1854
9h30 da noite. Sra. Victor Hugo e o sr. Guérin conduzem a mesa (Ata da sessão espírita, registrada por Victor Hugo):


— Quem está aqui?
— Shakespeare.
— Podes continuar teus versos por intermédio da mesa, tal como ela está sendo conduzida neste momento?
— Sim.
— Desejas outro para conduzir a mesa?
— Sim.
— Quem?
— Charles.

(Charles assume a mesa com o sr. Guérin.)

— Continua os versos começados. Escutamos.
— Minha obra desceu, mas minh'Alma sobranceia.
— Queres mudar alguma coisa nos versos anteriores?
— Não.
— Continua.
— Vivos nos chamamos Shakespeare e ele Moliére.
Fabricamos estrelas com paixões,
E nossa obra, criando mundos etéreos,
Enche o espírito humano de constelações.

Mortos, nos afastamos, humildes, sob as estrelas;
Escondemo-nos, pensativos, atrás de nossos túmulos;
E então olhamos.

(Interrupção)

— Procuras o fim do teu verso e desejas que esperemos um instante?
— Sim.

(Relemos, a mesa recomeça.)

— ... a imensidão sem peias
Sobre nossas frontes e

(Interrupção. A mesa se agita.)

— É um "t" em seguida? *

(Sem resposta)

— Alguma coisa te incomoda?
— Não.
— Desejas recomeçar o último verso?
— Sim.
— Vai.

Mais um silêncio, então a mesa recomeça

— Termina a estrofe.
— É a mim, Victor Hugo, que dizes para terminar a estrofe?
— Sim.
— Eis o que proponho:
O astro eterno apaga as terrenas luzes.
— Diz-nos o teu.
— Em nossos astros apagados acenderem-se suas luzes.
— Tens alguma observação a fazer?
— Prefiro o teu verso.

*Um "t" para completar a conjunção "et" ("e" em francês)

Fonte: O livro das mesas, as sessões espíritas da Ilha de Jersey, Victor Hugo (Ed. Três Estrelas)

(Publicado no jornal Correio Fraterno, edição 481, jan./fev/2018)

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