George Sand: O olhar destemido da escritora do tempo de Kardec
Por Alexandre Caroli Rocha*
Para quem gosta de história, literatura e cultura francesa, uma ótima notícia é a recente publicação do livro História da minha vida, de George Sand, pela Editora da Unesp. A nova edição da autobiografia, em volume único – a publicação original, de 1856, tem dez volumes –, é o resultado do trabalho de seleção e organização de Magali Oliveira Fernandes (poetisa e autora de trabalhos acadêmicos com temática espírita). Foi traduzida por Márcio H. Godoy e revisada por mim.
George Sand (1804-1876) fez grande sucesso como escritora; autora de mais de cem títulos, foi a primeira francesa a viver de seus direitos autorais. Era admirada por autores importantes como Dostoiévski, Victor Hugo, Balzac e Flaubert. Com muita dificuldade, conseguiu se inserir no meio literário e social de seu país, na época composto quase exclusivamente por homens. Ela viveu durante anos com o compositor romântico Chopin, e parte desse convívio é tratada no livro. No meio espírita, ela era elogiada por Kardec e, no Brasil, por Chico Xavier.
Na autobiografia, a narrativa de sua vida se entrelaça com a história da França e envolve sua reflexão a respeito dos principais temas do seu tempo. Ao longo do livro, Sand registra suas lutas, decepções e conquistas nos âmbitos social, político, afetivo e familiar. Ela fala da condição das mulheres, de religião, do futuro da sociedade, de fatos históricos, de filosofia, de sua criação literária.
História da minha vida – publicada um ano antes da primeira edição de O livro dos espíritos – discute muitas questões que também encontramos em obras de Kardec. Nesse sentido, o livro de Sand é um meio de acesso ao contexto histórico e cultural em que Kardec desenvolveu suas pesquisas. Ainda que a autora não tenha endossado as conclusões de seu contemporâneo (não sabemos nem se ela chegou a ler os livros dele), ela demonstra grande afinidade com o espiritualismo de sua época.
Abaixo, alguns trechos do livro de George Sand:
“Vivemos em um tempo em que ainda não explicamos bem as causas naturais que se passam até o momento por milagres, mas desde já podemos constatar que nada é milagre neste mundo, e que as leis do universo, embora não estejam todas sondadas e definidas, não são menos conformes à ordem eterna.”
“Suprimir o maravilhoso da vida da criança é proceder contra as próprias leis da natureza. A infância não é para o homem um estado misterioso e pleno de prodígios inexplicáveis? De onde vem a criança? Antes de se formar no seio de sua mãe, não teria ela uma existência qualquer no seio impenetrável da Divindade? A parcela de vida que a anima não vem do mundo desconhecido ao qual ela deve retornar?”
“Orei e recebi forças para resistir à tentação do suicídio. Em certas ocasiões, essa tentação era tão viva, tão súbita, tão singular, que pude constatar que era uma espécie de demência pela qual estava acometida.”
“Existe apenas uma verdade na arte, o belo; uma só verdade na moral, o bem; não mais que uma verdade na política, o justo. Mas quando almejamos colocar cada um no quadro de onde pretendemos excluir tudo aquilo que, segundo nosso ponto de vista, não é justo, foge ao bem e ao belo, estreitamos ou deformamos a tal ponto a imagem do ideal, que nos encontramos fatal e felizmente quase sozinhos em nossa opinião. O quadro da verdade é mais vasto, sempre mais vasto que qualquer um de nós pode imaginar.
“De todas as religiões pelas quais me fizeram passar em revista como um estudo histórico pura e simplesmente, sem me engajar em adotar uma, não houve nenhuma delas, com efeito, que me satisfizesse completamente, e todas me chamaram a atenção por um ou outro motivo. Jesus Cristo era para mim o modelo de perfeição superior a todas as outras; mas a religião que me proibia, em nome de Jesus, de amar os outros filósofos, os outros deuses, os outros santos da antiguidade, me perturbava e me sufocava por assim dizer.”
Uma leitura instigante por meio da qual acompanhamos parte da vida de George Sand.
*Alexandre Caroli é autor da tese O caso Humberto de Campos: autoria literária e mediunidade (Unicamp, 2008).