Guimarães Rosa - A paranormalidade em sua obra
Por Paulo R. Santos
“Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito a compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.” (Comentário de Guimarães Rosa a uma prima numa entrevista).
Ao longo da história humana são muitos os autores que reconhecem uma participação estranha a eles próprios na produção de seus trabalhos. Na arte e na cultura em geral, seja escultura, teatro, pintura, literatura, muitos relatam sentir, sonhar, intuir, imaginar, estar em um estado alterado de consciência enquanto produzem. Com Guimarães Rosa, considerado por muitos críticos o maior escritor brasileiro da segunda metade do século 20, não foi diferente.
Ao iniciar sua carreira como médico, em Itaguara, MG, pequena cidade às margens da atual rodovia Fernão Dias, o escritor conheceu um espírita que de algum modo o influenciou para o resto de sua vida. Esse amigo é citado várias vezes em sua consagrada obra Grande sertão: Veredas como uma espécie de conselheiro distante. É o personagem Riobaldo, quem diz algumas de suas reflexões muito interessantes sobre vida e morte. (É o compadre Quelemém, que é de Cardeq, escrito assim mesmo no livro).
João Guimarães Rosa, nasceu em Cordisburgo, MG, em 27 de junho de 1908 e ficar encantado’ (expressão usada por ele no lugar de morrer) em 19 de novembro de 1967, no Rio de Janeiro. Em 1938, foi nomeado cônsul adjunto em Hamburgo, e seguiu para a Europa, lá conhecendo Aracy Moebius de Carvalho (Ara), que viria a ser sua segunda mulher. A superstição e o misticismo acompanhariam o escritor por toda a vida. Ele acreditava na força da Lua, respeitava curandeiros, feiticeiros, a umbanda, a quimbanda e o ‘kardecismo’. Dizia que pessoas, casas e cidades possuíam fluidos positivos e negativos, que influíam nas emoções, nos sentimentos e na saúde de seres humanos e animais. Aconselhava os filhos a terem cautela e a fugirem de qualquer pessoa ou lugar que lhes causasse algum tipo de mal-estar.
Mas, é no livro Tutameia (Ed. Nova Fronteira) que vemos a sua paranormalidade, em suas próprias palavras, cujos trechos transcrevemos aqui:
“ – Minha vida sempre e cedo se teceu de sutil gênero de fatos. Sonhos premonitórios, telepatia, intuições, séries encadeadas fortuitas, toda sorte de avisos e pressentimentos.”
“ – Talvez seja correto eu confessar como tem sido que as estórias que apanho diferem entre si no modo de surgir. “À Buriti” (Noites do sertão), por exemplo, quase inteira ‘assisti’, em 1948, num sonho duas noites repetido.”
“ – Conversa de bois” (Sagarana), recebi-a, em amanhecer de sábado, substituindo-se a penosa versão diversa, apenas também sobre viagem de carro-de-bois e que eu considerava como definitiva ao ir dormir na sexta.”
“ – Quanto ao Grande sertão: Veredas, forte coisa e comprida demais seria tentar fazer crer como foi ditado, sustentado, protegido – por forças ou correntes muito estranhas.”
Pode ser que não seja fácil para as gerações futuras lerem Guimarães Rosa, com seus escritos num 'mineirês' arcaico, embora ainda conhecido por quem mora nos sertões das Gerais. Com o correr do tempo, num mundo cada vez mais globalizado, é mais que provável que esse regionalismo se perca com o retorno à vida espiritual daqueles que ainda o conhecem. E com essa perda, talvez se perca também um modo único de ver e sentir a vida. Mas, como escreveu Guimarães Rosa “Às vezes, quase sempre, um livro é maior que a gente.” (idem)
Apesar de ambientadas no sertão de Minas, as histórias ou estórias de Guimarães Rosa, têm contéudo universal. Não por acaso o ex-jagunço Riobaldo diz ao seu interlocutor, no Grande sertão: Veredas, que 'o sertão está em toda parte'. Este livro em particular apresenta uma forma nova de ver e sentir o amor. E a história de amor entre Riobaldo e Diadorim ainda vai render muita conversa!
(Artigo original publicado no Jornal Correio Fraterno, edição 443, jan./fev 2012)