Deus muda de ideia?

Por Rita Foelker*

Quando dizemos “Deus permita”, “Deus ajude” ou “Deus proteja”, está subentendido que Deus intervém especificamente em situações diversas que os seres humanos vivenciam. Ou seja, que, em algum momento, voltará sua atenção para nós e cuidará ‘pessoalmente’ de um aspecto de nossa existência.

Essas frases comuns são também expressões do conceito de ‘intervenção divina’, uma ideia frequente na sociedade terrena, mas que merece alguma reflexão teórica sobre bases espíritas.

Deus intervém nos destinos humanos?

A intervenção divina é uma crença muito antiga – podemos dizer, ancestral.

A premissa dessa intervenção é de que Deus queira agir pontual e deliberadamente nos destinos de suas criaturas, seja fazendo que algo aconteça, favorecendo alguém específico em dado momento, influenciando eventos ou circunstâncias.

Pela influência da Igreja e pela força de uma ideia que perdura pelos séculos, pode ser difícil afastá-la de nossa mente, mesmo sendo espíritas, de modo que acabamos repetindo aquelas falas pelo hábito, sem atentar para seu significado – uma ação deliberada de uma divindade que se envolve em assuntos humanos e que geralmente significa: evitar ou garantir que algo aconteça; oferecer um auxílio específico em dada situação; enviar um sinal de evento futuro; curar uma doença; realizar um milagre.

Alguém poderia até mesmo pedi-la a Deus que, por sua consideração a essa pessoa, atenderia. Daí surge a noção de ‘intercessão’, ou seja, de que alguém especial ou santificado, que peça a Deus para fazer aquilo que queremos, dará mais força ao pedido e aumentará a chance de ser realizado.

Mas e quanto às nossas preces, elas são ouvidas e atendidas?

Ao admitir a intervenção divina e a possibilidade de intercessão, porém, assumimos como real uma situação que nega uma premissa espírita básica: a de que Deus é imutável!

O que significa ser imutável?

Imutável é aquilo que não pode ser mudado. Entre os atributos divinos, elencados no comentário de Allan Kardec à questão 13 de O livro dos espíritos, lemos que Deus é imutável pois, “se ele estivesse sujeito a mudanças, as leis que regem o Universo não teriam nenhuma estabilidade”. Como Deus, Inteligência Suprema, já criou leis sábias e perfeitas que funcionam desde o início dos tempos, nossos destinos e atos são regidos por elas desde então, sem precisar de eventuais alterações ou correções.

Essa concepção espírita se aproxima da ideia de Aristóteles (384-322 a.C.) do “primeiro motor imóvel”, que encontraremos também posteriormente na obra de Tomás de Aquino (1225-1274). Sendo imóvel, esse “motor” não é movido por nada anterior ou atual, existindo eternamente como sempre foi já que, como inteligência perfeita, Deus tudo conhece e não necessita “mudar de ideia”, nem que lhe indiquemos como agir; não se alterando por nossos pedidos, desejos, conversões religiosas e promessas.

Há séculos, o ser humano vem atribuindo intenções e motivações impossíveis a seres não dotados delas, de fato. Um grande exemplo disso está nas fábulas. Esopo (620-564 a.C.), na antiga Grécia, a quem se atribui a criação desse gênero literário e cujos escritos inspiraram La Fontaine (1621-1695), popularizou narrativas em que os animais assumem características humanas, causando a impressão de que escolhem racional, emocional e moralmente suas ações, embora sejam incapazes de o fazer.

Nós também atribuímos a Deus pensamentos, intenções e desejos inexistentes. O nome disso é fabulação, uma versão fantasiosa de fatos que mostra como real o que é puramente imaginário e que, às vezes, transforma-se na própria interpretação desses fatos – ou seja, uma forma de compreendê-los e incorporá-los a certa visão de mundo. Um cão, por exemplo, morde por ter sido adestrado ou por sentir-se ameaçado, porém não por “vingança” ou “justiça”. Atribuir-lhe essas motivações é fabular.

Deus, sabendo perfeitamente o que fazer desde a Criação, criou leis que atuam infalivelmente há bilhões de anos e, não, pelo desejo ou impulso que lhe consignamos.

Nossas escolhas e ações têm peso moral e acarretam consequências, não apenas imediatas ou perceptíveis ao entendimento humano, mas que influenciam o destino de uma alma e que podem ser alteradas unicamente pela sua vontade firme e transformação interior.

Podemos, contudo, pedir amparo e inspiração ao Pai Maior e aos amigos espirituais? Sim! As preces são atendidas segundo a vontade de Deus e pela atuação de espíritos elevados, desde que não interfiram no curso das leis divinas. Quanto às provas e desafios que ainda nos aguardam, além desse auxílio do Alto, também o desejo sincero de sermos mais humildes e fraternos, mais resignados, de perdoar e seguir com o coração mais leve – eis o que pode amenizá-las.

* Rita Foelker é jornalista, mestre em filosofia e autora de dezenas de livros.