Angélica e a fé
O companheiro espiritual cuja história relatamos a seguir é dos que se intitulam "servidores do Cristo de Deus, Caminho, Verdade e Vida". Com voz rouca, quase afônico, respondeu com um "Amém" contrito à saudação inicial do nosso doutrinador. Vinha trazer afeto, compreensão, amizade, desejo de servir. E encontrara "cristãos armados".
– Desarme-se – dizia ele. — Somos um só rebanho. Somos irmãos!
E prosseguiu, no tom pastoral de pregador:
— Vinde a mim, os que quereis servir, e eu vos proporcionarei oportunidade de serviço, enxada para arar o solo difícil do coração dos homens!
Aliás, só falava em tom oratório como se estivesse perante um auditório atento e enlevado com a sua palavra. Com a mesma inflexão de voz, expressou os mais retumbantes elogios ao doutrinador que fazia, na sua opinião, um trabalho tão procurado, tão bem aceito! Quanto a ele, era um orientador, um pregador. Viera em nome da verdade, da compreensão e da fraternidade, de terras distantes, onde disseminava a Verdade Divina. Fora convidado para pregar às multidões nesta banda do mundo e precisava de instrumentos adequados, ou seja, quem lhe captasse e transmitisse a palavra inspirada. Desejava a mão do doutrinador para com ela escrever e a boca do médium para falar por ela.
No decorrer do diálogo, declara-se ministro da Igreja Presbiteriana, mas não deseja falar do passado. Daí em diante, seu tema fundamental, a dominante de toda a sua longa exposição oratória, é a fé. O homem somente se salva pela fé e pelo serviço ao Cristo. A reencarnação de nada adianta. Embora "eles" admitam a reencarnação, não veem necessidade ou conveniência de divulgar tais ideias. (Esta, aliás, é uma atividade bastante comum entre nossos queridos irmãos ex-sacerdotes). O homem precisava aceitar a ideia da ressurreição da carne naquele corpo com o qual estaria representado no dia do Juízo Final. Como reencarnação e juízo final são conceitos que mutuamente se eliminam, o doutrinador chamou sua atenção para o ponto e ele, imperturbável, respondeu que se existia ou não o juízo, não importava; o importante era que o homem acreditasse nisso, ou seja, tivesse a consciência sempre alertada para o fato de que um dia seria julgado. Aceitando a existência do Inferno, por exemplo, ele se esforçaria sempre para agir mudamente. Mas, a grande ideia era mesmo a fé. Não pregava a doutrina da reencarnação porque ela "confundia" a cabeça do homem. O homem precisa é de fé. O resto é irrelevante. O amor, por exemplo, não suporta certos abalos da fé. (Veríamos, depois, a razão disso).
Essa exposição toda vinha recheada de citações evangélicas aplicadas com invariável precisão e propriedade. Quando o doutrinador lhe pergunta se ele sempre foi cristão, ele responde que "renasceu" quando se tornou cristão: "Daí para trás não era eu. Todos nascemos em Cristo. Conto minha vida daí para cá, quando aceitei Jesus". Esse importantíssimo evento está registrado com precisão na sua memória: foi em 1675, nos Estados Unidos.
— E você? — pergunta ele ao doutrinador. — Quando o aceitou?
— Na Galileia — é a resposta.
— Foi batizado? Foi confirmado?
Pouco adiante, na conversa, o tema recorrente da fé volta ao debate. O Espírito insiste na tese da soberania absoluta da fé e o doutrinador lembra que Paulo colocou a caridade acima da fé no capítulo 13 da Segunda Epístola aos Coríntios. Como exegeta do Evangelho, evidentemente ele conhece o texto, mas declara que, ao escrever aquilo, o Apóstolo ainda se achava muito conturbado na sua fé e cheio de dúvidas. Era uma conversão recente a sua. O doutrinador lembra que a Epístola é bem posterior à conversão, escrita em plena maturidade e aceitação, quando se encontrava o Autor já muito trabalhado pelas lutas e meditações. O Espírito, porém, se mostra inabalável: acha que, na realidade, Paulo colocou a caridade em segundo lugar. Aliás, ele custou a chegar à fé; era preso aos problemas terrenos pois, ainda na carta a Timóteo (e esta ele sabe que é realmente das últimas), pedia coisas materiais, como a sua capa que ficara pelo caminho, guardada com um amigo.
O problema deste companheiro é, pois, algo insuportável para a sua consciência, que ele esconde atrás daquela brilhante fachada oratória que enfeitou, paradoxalmente, com um dos mais belos conceitos religiosos — o da fé! Qual seria a razão dessa posição? O que estaria atrás daquela barreira?
É no contexto dessas ideias que deve ser examinado o relato que se segue, reproduzido a partir do instante em que ele começa a regressão de memória. Antes, porém, o doutrinador precisa vencer certas resistências que persistem. Ante uma observação do Espírito, pergunta o doutrinador o seguinte:
— Como é que foi essa história?
— É melhor não entrar nessa história. Você quer detalhes e eu não sei. Estou confuso. Não tenho certeza do que estou dizendo. (Nova e última tentativa de fuga).
— Isso tudo está registrado em você. Os suspiros de amor, as confissões, as traições, as dores, as alegrias, as esperanças. Somos isso tudo, meu irmão. Somos seres humanos, criaturas falíveis. A imperfeição ainda está muito enraizada em nós, mas os nossos erros não são irremissíveis. Nós nos resgatamos em Deus. O Cristo nos mostrou o caminho e a reencarnação é o instrumento da nossa redenção. Não há juízos finais. Não há infernos. Não há castigos. Não há punições. Somos os artífices da nossa felicidade pessoal ou da nossa desgraça. Percebo que o seu Espírito, tão amado e tão brilhante, está enredado em conceitos que falseiam a verdade. Você construiu em torno de você uma verdade que lhe convém, ou seja, a meia-verdade e a meia-verdade é também mentira, irmão. Vai continuar enredado nela, dentro desse casulo? Você precisa sair, libertar-se disso, voar, voar para Deus. Você crê, viu aceita o Cristo. Por que procura misturar o Cristo com as suas paixões e seus interesses pessoais? Por que procura arrastar outros irmãos para esse emaranhado de doutrinas que você sabe que não são verdadeiras? Um Espírito que conhece, admite e concorda com a lei da reencarnação, não pode pregar o juízo final, a doutrina do inferno; não pode enganar aquele que deseja esclarecer-se. Você não transmite a luz, transmite a sombra com esses conceitos. E você tem luz para dar porque conhece o Evangelho e porque ama.
— Não é uma história bonita. . .
— Meu filho, não precisa contá-la para mim. Não quero arrancá-la a qualquer preço. O que desejo é que você saiba que não precisa ficar preso a esse passado de desenganos, nem continuar a ser instrumento de interesses e paixões daqueles que o estão manipulando. Você obedece a interesses do seu grupo, na esperança de que, enquanto estiver lá, esteja protegido. Protegido de quê? Do amor? Da evolução? Do Cristo?
— “Eles" sabem! "Eles" conhecem o meu segredo. Não sei como souberam. Ela era uma moça muito jovem e bonita. Veio num navio e foi morar numa fazenda próxima. Chamava-se Angélica. Eu era casado. Tinha mulher e um casal de filhos. Eu me apaixonei... Ela vinha todas as noites... (Maravilha!) pelas duas crianças, para ensinar a elas o Evangelho do Cristo, que ela chamava de catecismo. Eu não me interessava, mas passei a me interessar por causa dela. Passamos a nos encontrar no bosque. Ela, sempre com a Bíblia na mão, e eu, com o pretexto de quem desejava aprender. . .
— Meu querido, não precisa contar a história toda. Eu só queria que você se voltasse um pouco para o seu passado, a fim de entender o seu presente e buscar soluções para o futuro.
Mas ele prossegue, naquela invencível compulsão de falar:
— Eu tinha um barco. E um dia.. . Já não aguentava mais de paixão! Levei minha mulher para um passeio e a atirei na água. . . (Pausa)
— Meu querido companheiro. Sabemos que a mágoa e o remorso têm mantido você nesse esquema de falsidades e de angústias. Não estamos aqui para o aprisionar, nem para o humilhar. Estamos aqui, em nome do Cristo, para estender- lhe a mão. Não porque sejamos perfeitos, meu irmão. Estamos cheios de erros e falhas; tropeçamos frequentemente nas nossas paixões.. .
Mas, ele parece não ouvir e prossegue, inexoravelmente:
— É por isso que acabei indo para a Igreja dela, cantar no coro com ela. Lia a Bíblia. . . Cego! Louco!
— Mas duas coisas positivas existem nesses horrores. Você hoje reconhece, arrependido, a força do amor e traz o conhecimento do Evangelho. Você comprovou a existência do amor. Só que o baixou à condição de paixão. Quando era preciso renunciar, você seguiu os seus impulsos. O erro está cometido, é certo...
— Interessante que, agora que falei, me sinto aliviado! Não é mais segredo. Você também já sabe.
— O segredo vai ficar aqui. Respeito a sua dor mas, como costumo dizer, o arrependimento precisa ser construtivo. Você precisa buscar aqueles Espíritos novamente e servi-los com amor e dedicação. . .
— Matei minha mulher, fiz meus filhos órfãos!
— E você nunca mais encontrou o Espírito daquela que foi sua esposa? No mundo espiritual, por exemplo.
— Eu fugia dela. Não tenho coragem bastante para isso! Ela era uma boa mulher.
— Você acha que ela te condena ou te perdoou?
— Não sei.
— E a outra? Angélica... A vida prosseguiu. . .
— O pai dela tinha outros planos para ela. No fundo, medo de que ela desconfiasse. Eu lhe propus casamento...
— E as crianças, como é que ficaram?
— Com uma tia, que também acho que desconfiava. Não sei, parece que todos desconfiavam, que todos sabiam. E me refugiei na minha crença. . . que não podia aceitar, mas servia de refúgio. Ordenaram-me ministro. Meu primeiro sermão foi justamente no casamento dela. Maldita! Fez de mim um criminoso!
— Não, meu querido. Não é bem isso. O que fez vim você cometer esses desatinos foi a sua paixão, não foi ela. Meu irmão, o que podemos fazer aqui, neste momento, para te ajudar, para te servir?
— Não sei. Eu era uma árvore que estava de pé e você me cortou o tronco.
— Ela estava seca. Quando se corta uma árvore seca ela brota outra vez, com novo vigor. É isso que vai acontecer com você.
— Estou com as raízes no chão e o tronco tombado. Que posso fazer?
— As raízes estão mergulhadas na vida. Nascerá um novo tronco e você poderá dar novos frutos, novas flores, abrigar pássaros, e dar sombra. . .
— Sombra para que ela viesse sentar-se em baixo com o seu marido?
— Você, então, a odeia?
— Como pode? Como pode odiar quem tanto amou?
— Se você pesquisar no seu passado mais remoto, vai descobrir por que razão isso aconteceu. Não somos criminosos por compulsão da lei divina; somos criminosos por escolha, por livre escolha. Agora, a lei divina é tão perfeita, tão pura, tão boa, que nos concede sempre a oportunidade da redenção e os meios de reparar os nossos erros. Mas se continuamos a atrair outros Espíritos para aquele erro em que vivemos mergulhados, como vamos corrigir as nossas falhas? Se você permite uma sugestão de companheiro, de amigo: Pare um pouco com as suas loucuras. Examine a sua consciência. Expulse do seu coração todo sentimento de rancor, de ódio, de revolta. Volte-se para o Cristo. Desvista-se da sua pompa, da sua retórica. Fale com Ele como um ser que sofre e que espera o amor. Peça a Ele que o ajude a descobrir o caminho da paz. Sei que não vai ser fácil. Você tem que refazer muitas coisas, tem que retomar caminhos abandonados, tem que ir buscar cada um desses Espíritos a quem prejudicou, para trazê-los de volta ao seu coração. São tantas as compensações, tão belas as esperanças e as certezas de redenção e pacificação, que vale a pena a dor do resgate, em lugar dessa dor em que você vive no momento; a dor estática, que nada constrói, que nos envenena de tal forma que em tudo aquilo que transmitimos aos nossos irmãos vai também um pouco do nosso veneno. Você me dizia, há pouco, que está cansado, É verdade. Cansado de enganar a si mesmo, cansado da dor, cansado de fugir, cansado da angústia, do desespero. Fique conosco, repouse, medite, recomponha o seu pensamento. Você poderá então planejar novas existências de redenção e de alegrias. Deus está em nós, e nós vivemos em Deus, como dizia o nosso Paulo. Está nos "Atos". Está de acordo em ficar conosco?
— Nada mais me resta a fazer.
— Não, meu filho. Não estou pedindo que você fique de qualquer maneira ou que seja obrigado a ficar. Se quer seguir a alternativa do desengano, você é livre, meu querido. Mas você sabe que de outras vezes não deu certo. Estou-lhe propondo uma opção que sabemos ser positiva; a que você seguiu deu nisso que se está vendo: um quadro de desolação, de dor, de saudade. . .
— De remorsos. . .
— Sim, mas com base nesse remorso você vai reconstruir uma existência, vai ao reencontro do amor, vai pedir perdão a quem prejudicou. O perdão está nas leis divinas. Deus nos perdoa sempre, mas a Lei exige o reparo.
— Estou cansado, muito cansado. . .
— Você tem algum rancor de mim?
— Não. Tenho rancor de mim mesmo. Como é que fui parar nisso tudo, assim de repente?
— Fiquemos por aqui hoje. Você já tem aí bastante material para meditação e para reformulação da sua existência, dos seus pensamentos e da sua filosofia de vida.
— Eu agi como uma fera traiçoeira. Matei, traí. Você já carregou um crime na consciência? Não me esqueço dos olhos assustados das crianças, dos seus olhos arregalados. . . Era um casal. Oito e seis anos. O menino tinha seis.
— E você viveu até que eles se tornassem adultos?
— Eu os abandonei também. Fui para a Igreja. Fui ser ministro. Fui viver na Rectory (Casa paroquial). Eles me lembravam ela. Tinha medo do remorso. Tinha medo de me trair. Via o crime nos seus olhos assustados, como se tivessem medo de mim. . . Medo de mim, o próprio pai!
— Você nunca teve oportunidade de fazer algo por eles, no mundo espiritual?
— Tinha medo.. . tinha medo de encontrá-los. Qualquer deles.
Ele chora, afinal, desatando as lágrimas que por tanto tempo reteve atrás daquela barragem de falsa fé. O doutrinador transmite suas últimas observações.
— Acredito que todos esses Espíritos o perdoaram; a sua consciência é que ainda não o perdoou, mas é preciso que você se lembre de que o primeiro passo para a nossa recuperação não é a tolerância com os nossos erros, mas a decisão de nos perdoarmos também, para que o remorso não nos paralise. Estaremos com você, ao seu lado, nas suas dificuldades. Sempre que você precisar de ajuda para as suas fraquezas nos momentos difíceis, lembre-se de que o Cristo está ao alcance da nossa voz. Nenhuma prece fica sem resposta. Se, às vezes, não somos atendidos da maneira que desejávamos, é porque não era a maneira que nos convinha. Você sabe orar?
— Oh! Não estou em condições.
— Não agora, mas você vai ter condições.
Para suprir a sua dificuldade compreensível, o doutrinador ora por ele, como se fosse ele próprio, expondo seus dramas e pedindo socorro, enquanto ele chora sem parar.
Ele somente consegue dizer uma palavra final:
— Obrigado. Muito obrigado!
Essa é a tragédia que o nosso caríssimo companheiro arrastou durante trezentos anos na consciência atormentada. Naquela noite de segunda-feira, após o emocionante diálogo com ele, manifestou-se ainda a nossa querida Angélica, a bela moça loura que, em tempos idos, ensinara catecismo às crianças do nosso irmão.
Serenamente nos disse que, de certa forma, sentia-se culpada daquele drama terrível. Não porque haja induzido nosso companheiro ao crime, mas não podia fugir à evidência de que a paixão que lhe inspirou foi, de certa forma, por ela admitida, senão consentida ou estimulada, como se evidencia naqueles encontros secretos no bosque, ainda que a motivação fosse o estudo do Evangelho.
Conseguira, agora, consentimento para retornar à carne, recebê-lo como esposo, tendo como filhos a antiga esposa sacrificada e mais os dois filhinhos, em cujos olhos assustados se escrevera o terror silencioso inspirado pelo próprio pai que tão cedo na vida os privara da presença da mãezinha.
O futuro dirá se essas angústias se extinguirão juntamente com as paixões e os desacertos ou se, novamente, haverá falhas a corrigir em novas tentativas, um dia, três ou quatro séculos depois, quem sabe?
Capítulo 11 do livro As mãos de minha irmã, autoria de Herminio C. Miranda, da coleção “Histórias que os espíritos contaram”, edições Correio Fraterno.