Pesquisas e documentos inéditos de Allan Kardec. Como vamos lidar com isso?

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Por Alexandre Fontes da Fonseca*

O entusiasmo é sempre natural em quem faz novas descobertas. Mas é preciso amadurecer a forma como elas são apresentadas à comunidade espírita, pois temos responsabilidades em trabalhar o avanço do espiritismo de modo sério e de acordo com o exemplo de Kardec, que agiu conforme a ciência.

Isso não é desrespeito aos que apresentam descobertas, mas uma forma madura e científica de validá-las se forem corretas, e esclarecê-las se estiverem equivocadas, limitadas ou incompletas. Afinal, esse é o sentido da fé raciocinada. 

É verdade que parte do movimento espírita vem clamando por atuar com menos excessos no caráter religioso e mais presença dos aspectos filosófico e científico, mas aceitar descobertas sem analisá-las de modo científico é semelhante a aceitar também a infalibilidade do conteúdo oriundo de médiuns ou Espíritos. 

A forma segura, madura e séria de desenvolver o caráter progressivo do espiritismo é trabalhar de modo similar ao científico e com respaldo doutrinário. Assim, vale lembrar e colocar em prática os pontos fundamentais destacados por Allan Kardec. Eles são conceitos e procedimentos básicos que continuarão a dar ao espiritismo a devida autoridade como “ciência de observação” e “doutrina filosófica com consequências morais”1. 

Sabemos que por sua própria natureza, o espiritismo é progressivo. Esse progresso, porém, não ocorrerá sem critérios. Afirma Kardec em A Gênese (capítulo 1, item 55) que “uma última característica da revelação espírita é que ela é essencialmente progressiva, como todas as ciências de observação. (...) O espiritismo, assim, só estabelece como princípio absoluto o que está demonstrado com evidência, ou o que resulta logicamente da observação.”.

Destaca também Kardec no item 14 da obra como se dá a elaboração do espiritismo: “O espiritismo procede exatamente da mesma maneira que as ciências positivas, quer dizer, aplica o método experimental”. Esclarece ainda que sem a experiência de avanço do conhecimento da ciência, o espiritismo não teria forças para se justificar: “o espiritismo sem a ciência careceria de apoio e de controle e poderia equivocar-se. Se o espiritismo tivesse vindo antes das descobertas científicas, teria fracassado, como tudo quanto surge antes do tempo”, comenta no item 16. Na Revista Espírita de dezembro de 1868, sobre a questão da interpretação e aplicação dos princípios da doutrina, Kardec diz que "essa autoridade será, em matéria de espiritismo, o que é a de uma academia em matéria de ciência."

O laboratório 

Não se deve esquecer, aliás, que a Revista Espírita foi criada por Kardec justamente para a apresentação de novas ideias e princípios, antes que esses viessem a ser considerados como partes da Doutrina.

No prefácio de A gênese, Kardec explica o trabalho realizado. “(...) A Revista é, frequentemente, para nós, um campo de experiência, destinado a sondar a opinião dos homens e dos Espíritos sobre certos princípios, antes de admiti-los como partes constituintes da Doutrina”. E destaca na edição de julho de 1868: “Sendo a Revista um terreno de estudo e de elaboração dos princípios, e nela dando sem rodeios a nossa opinião, não tememos empenhar a responsabilidade da Doutrina, porque a Doutrina a adotará, se for justa, e a rejeitará, se for falsa.” 

Se seguirmos, portanto, as orientações deixadas por Allan Kardec, não haverá dificuldade para a compreensão sobre a forma correta de como devemos agir com relação ao caráter progressivo do espiritismo. Por exemplo:

As propostas e descobertas

Não devemos aceitar, ainda, como verdades ou princípios espíritas, as recentes propostas de descobertas de adulteração de obras básicas, a pretendida recuperação do sentido original do espiritismo, a adoção de novas interpretações de conceitos espíritas, etc.

O movimento espírita, seguindo o exemplo de Kardec, deverá observar, portanto, os critérios por ele adotados para o trabalho do espiritismo, a fim de trazer os conhecimentos de forma similar à ciência no tocante à validação, divulgação, acolhimento e desenvolvimento das descobertas.

Seria interessante também que as descobertas espíritas, portanto, não fossem apresentadas no primeiro momento na forma de livros, mas publicadas em artigos ou relatórios de pesquisa (veja quadro), de preferência em periódicos que adotam o método de análise por pares, ou seja, revisão e avaliação por especialistas das diversas áreas do conhecimento e que, no nosso caso, sejam também estudiosos do espiritismo.

Além de ser o método adotado por Kardec, o quadro (abaixo) mostra como isso se alinha com a forma pela qual a ciência, na atualidade, lida com as descobertas. 

1  Allan Kardec, O que é o espiritismo, FEB. 

As regras da ciência para as descobertas
Os pesquisadores, ao fazerem uma descoberta, adotam os quatro passos seguintes. Embora haja diferenças nesse esquema em algumas áreas do conhecimento, essa sequência é bem geral e traduz a forma como, na atualidade, as ciências desenvolvem seu conhecimento.
1) Preparam um artigo, reportando a descoberta, os métodos utilizados, e suas consequências e aplicações.
2) Submetem o artigo para publicação em um periódico que realiza análise dos artigos por pares. Isto é, outros pesquisadores conhecedores da área, recebem anonimamente o artigo para analisá-lo quanto a critérios de qualidade teórica e metodológica, bem como coerência entre conclusões, argumentos e dados. Eles preparam um relatório recomendando: rejeição, aceitação desde que façam correções e melhorias, ou aceitação na forma como está.
3) Se o artigo é aceito e publicado, a comunidade da área lê e utiliza seus resultados em futuras descobertas. Quanto mais um artigo é citado por ter sido usado como base de novas descobertas, mais é valorizado como contribuição ao avanço do conhecimento. Por outro lado, se o artigo é questionado e/ou refutado através de outras pesquisas que resultam em conclusões diferentes, a comunidade o rejeita. No final, o artigo cujos resultados e conclusões foram confirmados por outros artigos e pesquisas, recebe da comunidade da área, a chancela de “conhecimento” ou “avanço”.
4) Somente após receber chancela de conhecimento é que o conteúdo de um artigo ou de uma série deles é escrito na forma de livro e apresentado à comunidade da área, como parte de sua doutrina ou teoria. Somente depois disso, as descobertas são ensinadas aos neófitos da área.

Coerência e trabalho coletivo

Para a realização de análises sobre qualquer descoberta é preciso ter como bases fundamentais a doutrina espírita e a ciência, a elas submetendo todas as evidências e argumentos apresentados (Veja esquema lógico). Deve-se analisar todos os ângulos e consequências, questionando-se sua coerência com o conteúdo das principais obras de Kardec, não e esquecendo, obviamente, de analisar a qualidade das premissas científicas e filosóficas. 

Seria extremamente interessante, inclusive, se o movimento espírita se interessasse e valorizasse as contribuições menores e até mesmo as mais simples para o avanço do conhecimento espírita, uma vez que indivíduos ou grupos podem e devem realizar estudos e, também, publicá-los na forma de artigos. Isso aproximaria o movimento espírita do aspecto democrático da ciência que incentiva o trabalho coletivo de construção do conhecimento. Afinal, foi de modo coletivo e democrático que o espiritismo se formou.

O caráter solidário e democrático da revelação espírita
Não há nenhuma ciência que tenha saído pronta do cérebro humano. Todas, sem exceção, são fruto de observações sucessivas, apoiadas em observações precedentes, como de um ponto conhecido para chegar ao desconhecido. (...) Não confiou Deus a um único Espírito a responsabilidade de promulgar a doutrina, quis Deus, também, que o mais pequenino, como o maior, tanto entre os Espíritos, como entre os homens, trouxesse sua pedra para o edifício, a fim de estabelecer entre eles um elo de solidariedade cooperativa, que faltou a todas as doutrinas decorrentes de uma única fonte. (...) Essa ainda é uma razão por que, em cumprimento dos desígnios do Criador, não podia a doutrina ser obra nem de um Espírito só, nem de um só médium. Tinha que emergir da coletividade dos trabalhos, comprovados uns pelos outros.” (Allan Kardec em A gênese, cap. 1, item 54).

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*Alexandre Fontes da Fonseca responsável pela Assessoria de Ciência e Pesquisa Espírita da USE-SP.