Há espíritos ligados aos embriões congelados?

Por Eliana Haddad

Com o avanço dos conhecimentos e técnicas científicas na área da reprodução humana assistida, muito se tem conquistado na solução da infertilidade de homens e mulheres por meio da técnica de fertilização in vitro, que consiste em proporcionar em laboratório condições para a fecundação do óvulo pelo espermatozoide em ambiente externo ao corpo da mulher. Embriões formados in vitro e que contenham até 200 células podem ser implantados no útero materno ou submetidos ao congelamento em nitrogênio líquido.

Um aspecto fundamental envolve essa questão, considerando os espíritos que encarnam vinculados a corpos gerados por embriões que permaneceram congelados por até décadas. Estariam eles ligados às primeiras células desde a fecundação? Nesse caso, estariam sujeitos a alguma perturbação ou teriam suas faculdades espirituais afetadas pela matéria? Permaneceriam inativos no período do congelamento dos embriões aos quais se ligaram? Ou, diferente do que o espiritismo ensina, poderiam se ligar após a fecundação ou mesmo após o descongelamento, no momento do implante do embrião no útero?

O começo da vida

No âmbito geral, não há um consenso para resposta à complexa pergunta sobre quando começa a vida, uma vez que diferentes áreas do conhecimento possuem visões variadas. A biologia identifica vários marcos no desenvolvimento humano que podem ser considerados como início da vida. Para alguns cientistas, a vida biológica se dá na fecundação, quando se forma o zigoto, uma única célula com 46 cromossomos, que carrega informações genéticas dos pais e que, por divisões sucessivas, vai gerar o embrião. Outros argumentam que isso ocorre na nidação, entre o quinto e o sétimo dia após a fecundação, quando o embrião se fixa no útero materno, pois antes disso ele pode não sobreviver. Também há os que defendam a vida em função do desenvolvimento do sistema nervoso, no terceiro mês de gestação, quando surgem os sinais de atividade cerebral, o início da vida consciente.

Também há a visão filosófica e religiosa. O catolicismo, por exemplo, defende que a vida começa na fecundação. Para o espiritismo, também, a encarnação começa na concepção. Algumas correntes filosóficas argumentam que a vida só começa quando há consciência e sensibilidade; outras tradições religiosas podem considerar a nidação ou mesmo o nascimento como o verdadeiro início da vida.

Por isso, a resposta sobre se existe vida quando há congelamento do embrião também vai depender da perspectiva adotada. Para a ciência, um embrião congelado está em um estado de pausa biológica, pois o congelamento suspende todas as atividades metabólicas, não havendo crescimento ou desenvolvimento ativo enquanto assim se mantiver. Quando descongelado corretamente, pode-se continuar o desenvolvimento e o embrião ser então implantado no útero. Durante o congelamento, o embrião não estaria ‘vivo’ no sentido funcional, mas manteria um ‘potencial de vida’, assim como uma semente que aguarda as condições adequadas.

As premissas espíritas

Recentemente, o Jornal de Estudos Espíritas publicou um artigo científico, de autoria de João Paulo Leite Tozzi, sob o título “Reencarnação e embriões criopreservados: uma perspectiva à luz da doutrina espírita, com base nas obras de Allan Kardec”. O autor parte de duas premissas: a de que a união entre o espírito e o novo corpo ocorre na fecundação através de laços fluídicos perispirituais e se fortalece com o desenvolvimento embrionário, e a de que a perturbação do espírito aumenta conforme o embrião se desenvolve.

Ainda há a abordagem, no artigo, sobre os casos de embriões que não se desenvolvem ou que não possuem um espírito ligado, uma vez que a doutrina espírita explica que a ligação do espírito ao corpo ocorre apenas na fecundação, e que há embriões que nunca tiveram um espírito ligado ou, cuja ligação pode ser rompida ainda na fase de gestação. O estudo, enfim, evidencia a complexidade e individualidade de cada experiência espiritual e biológica, buscando um diálogo entre ciência e espiritualidade, segundo os princípios da doutrina espírita. ​

Além de considerar a presença do espírito vinculado ao embrião congelado, o que teria ocorrido na concepção, o autor considera que o congelamento prolongado também não impediria a liberdade espiritual, por estar o embrião ainda com um reduzido número de células, o que indicaria uma ligação perispiritual ainda em estágio bastante inicial. ​ A fundamentação está na obra de Kardec, A gênese (capítulo 11, item 17), que afirma que por sua essência espiritual o espírito é um ser indefinido, abstrato, que não pode ter ação direta sobre a matéria. “Diante do processo reencarnatório de um espírito, um laço fluídico, que mais não é do que uma expansão do seu perispírito, o liga ao gérmen que o atrai por uma força irresistível, desde o momento da concepção. À medida que o gérmen se desenvolve, o laço se encurta. Sob a influência do princípio vital e material do gérmen, o perispírito, que possui certas propriedades da matéria, se une, molécula a molécula, ao corpo em formação (...) e o espírito, por intermédio do seu perispírito, se enraíza, de certa maneira, nesse gérmen, como uma planta na terra”.

A liberdade do espírito

O que o espírito pode ou não fazer, onde pode ou não ir ao se afastar do seu embrião depende de seu estágio evolutivo, porém a doutrina deixa claro que há a possibilidade de distanciamento e que, nela, o espírito pode vivenciar experiências como estudar e trabalhar no plano espiritual, assim como um encarnado o faz durante o sono. Como o estágio embrionário se encontra mais próximo do momento da concepção do que do nascimento, a perturbação espiritual tenderia a ser pequena, podendo o espírito gozar de mais liberdade quanto ao uso de suas faculdades.

Tozzi cita no artigo que os embriões que são encaminhados para a criopreservação se encontram em estágio de blastocisto (5 a 7 dias após a fecundação) e possuem, variavelmente, entre 120 e 200 células. Não havendo informações específicas na doutrina espírita para afirmar se 200 células seriam ou não suficientes para causar uma perturbação significativa em um espírito reencarnante, tendo em vista também que essa influência pode variar de espírito para espírito, o pesquisador lembra que um bebê possui 1 trilhão de células e uma criança de dez anos de idade, 17 trilhões de células. Como o espiritismo afirma que a perturbação cresce gradualmente com o desenvolvimento do feto, ele infere que um espírito recém-ligado a um embrião, contendo apenas aproximadamente 200 células, estaria em um estágio bem próximo da mínima perturbação espiritual possível.

A literatura científica registra casos de embriões que permaneceram congelados por longos períodos e resultaram em nascimentos bem-sucedidos e de embriões que não se desenvolvem diante da realização do procedimento da fertilização in vitro, cujas causas poderiam variar tanto advindas do próprio espírito reencarnante quanto do embrião em si e da futura gestante, passando desde problemas endócrinos a anatômicos e fisiológicos.

Quando não há sucesso

Nesse sentido, considerando as condições de uma mulher saudável do ponto de vista reprodutivo, poderiam ser mencionadas quatro razões para um embrião congelado não concretizar a nidação: 1) embriões que nunca tiveram um espírito ligado; 2) embriões que tiveram um espírito ligado e que foi, porém, desligado por vontade do espírito reencarnante antes de serem implantados no útero; 3) embriões que tiveram um espírito ligado, mas não vingaram por questões morais envolvendo a mãe e o espírito reencarnante, decorrentes de provas ou expiações; e 4) por problemas materiais gerados durante o congelamento ou descongelamento do embrião, cuja delicadeza do processo pode causar danos na estrutura das células.

Para a visão espírita, ainda é acrescentada a explicação do item 345 de O livro dos espíritos, em que Kardec pergunta se é definitiva a união do espírito com o corpo desde o momento da concepção e se, durante esta primeira fase, poderia o espírito renunciar a habitar o corpo que lhe está destinado. A resposta é que “a união é definitiva, no sentido de que outro espírito não poderia substituir o que está designado para aquele corpo. Mas como os laços que ao corpo o prendem são ainda muito fracos, facilmente se rompem. Podem romper-se por vontade do espírito, se este recua diante da prova que escolheu. Em tal caso, porém, a criança não vinga.”

“Kardec não disse tudo”

Outro ponto salientado no artigo se refere aos argumentos de que a doutrina espírita ainda não estaria finalizada ou de que “Kardec não disse tudo”, para justificar ideias incoerentes com as afirmações dos espíritos. A conclusão do pesquisador é que, embora as obras de Allan Kardec afirmem que a ligação espírito-corpo se inicia no momento da fecundação, é possível que futuras revelações, alinhadas aos avanços do conhecimento humano e espiritual, ampliem o entendimento sobre o tema. Porém, nesse contexto, qualquer revisão ou aceitação de novas ideias deve observar os critérios estabelecidos pela própria doutrina espírita e ser fundamentada no bom senso e na razão.


Para acessar o artigo, clique em PDF, depois de acessar o link: https://doi.org/10.47626/1516-4446-2024-3958