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Há algo novo no ar

É possível que o leitor não tenha ainda se dado conta, mas pela primeira vez na história da humanidade o debate sobre o suicídio está acontecendo de forma aberta, clara, sem tabus ou preconceitos. Salvo os nichos de resistência dogmática de sempre —, onde a luz da ciência e o amparo da razão não têm lugar — ou certas culturas do passado que normatizavam o autoextermínio, esta seria realmente a primeira vez em que o tabu em torno do assunto não resistiu à urgência de se entender o que leva alguém a se matar.

É evidente que a série mais popular da história da Netflix – um dos maiores serviços de streaming do mundo – contribuiu para isso. Os produtores e realizadores de Os 13 porquês (13 Reasons why) sabiam exatamente no que estavam se metendo. Lançaram uma série onde o suicídio de uma jovem seria o ponto de partida para uma história marcada pelo desejo de vingança, onde todos os supostos algozes da 'vítima' foram denunciados em gravações feitas pela própria suicida. Tudo isso numa escola que reproduz o ambiente competitivo das instituições escolares americanas (especialmente no High School) onde o massacre dos bullyings, a execração pública nas redes sociais pelo cyberbullying, o assédio, a violência sexual, entre outros problemas que asfixiam a garotada em boa parte do mundo, são mostrados didaticamente.

Ponto para a Netflix por escolher o tema do suicídio entre jovens para uma nova série. Só faltou evitar os chamados 'gatilhos' – cenas que podem agravar o desequilíbrio de pessoas fragilizadas psíquica ou emocionalmente – amplamente diagnosticados e registrados em numerosos estudos respaldados pela OMS — Organização Mundial de Saúde). Em bom português, 'gatilhos' podem precipitar tentativas de suicídio e eventuais óbitos. A cena do suicídio da personagem principal foi apelativa e escatológica. Poucas vezes se viu algo parecido na tv ou no cinema. Num primeiro momento, os responsáveis pela série justificaram a exibição de cenas fortes como essa para chocar intencionalmente o público e mostrar como o suicídio é doloroso e dramático (?!).
Semanas depois, pressionados por especialistas em saúde pública mundo afora, os produtores anunciaram a inserção de alertas e advertências em episódios que estavam sem esses avisos. Será o suficiente? Quantos de nós deixaríamos de continuar assistindo a uma série por causa de uma tarja informando que o episódio contém cenas chocantes e violentas?
Em países como a Nova Zelândia, as autoridades de saúde chegaram a orientar país ou responsáveis a assistirem à série da Netflix ao lado dos filhos ou responsáveis. O fato é que toda essa repercussão levou a Netflix a anunciar a continuação da série.
Haverá novos gatilhos? O tempo dirá.

Nas primeiras semanas de exibição de Os 13 porquês, o volume de atendimentos do CVV cresceu 450%. Resta saber se isso aconteceu porque a Netflix abriu espaço para divulgar o serviço voluntário e filantrópico prestado há 55 anos pelo Centro de Valorização da Vida, ou se a série e seus gatilhos fragilizaram parte da audiência.

 

O jogo da Baleia Azul

Concomitantemente ao rebuliço causado por Os 13 porquês, as redes sociais no Brasil viralizaram a preocupação com a "Baleia Azul", que os pedagogos se recusam a chamar de jogo, pois que a palavra 'jogo' deveria aludir a uma brincadeira, um desafio positivo que promove o lazer e o entretenimento sadios. Até o prefeito de Curitiba, Rafael Greca, divulgou nas redes sociais um vídeo se dizendo alarmado com sete tentativas de suicídio supostamente motivadas pela Baleia Azul e prometendo acionar judicialmente os responsáveis. A armadilha virtual intitulada Baleia Azul oferece 50 desafios — todos mórbidos e rudes — que levariam os incautos a realizar 'tarefas' que dilaceram a autoestima e promovem o desequilíbrio psíquico e emocional. Fazem parte do pacote permanecer insone assistindo a diversos filmes de terror, esculpir na pele com objeto cortante uma baleia ou — esta seria a última 'tarefa'— se matar. Se o jovem manifestar o desejo de desistir, recebe ameaças diretas contra si e a família.
Muitos especialistas afirmam que eventuais tentativas de suicídio motivadas pelo Baleia Azul aconteceriam mais cedo ou mais tarde, sendo esta armadilha virtual apenas um atalho para a consumação de um projeto que provavelmente já vinha se desenhando há algum tempo.

Neste período em que a Netflix e o Baleia Azul vieram à tona, tornou-se possível — como nunca antes no Brasil — debater o problema do suicídio em segmentos da mídia onde isso antes nunca havia acontecido. É o caso, por exemplo (dentre muitos outros exemplos), do programa matinal da TV Globo Encontro com Fátima, em que a ex-âncora do Jornal Nacional conduziu o tema por aproximadamente uma hora com vários entrevistados (pedagoga, psiquiatra, a mãe de um suicida que escreveu um livro sobre o assunto, etc) de forma clara, serena e objetiva. Um baita serviço de utilidade pública.

Quando lançamos em 2015 o livro Viver é a melhor opção: a prevenção do suicídio no Brasil e no mundo pela editora Correio Fraterno não imaginávamos que chegaríamos à marca de 40 mil exemplares vendidos (com 100% dos direitos autorais do CVV), por causa do tabu em torno do assunto. E foi justamente o tabu a principal inspiração para o livro. Como continuar justificando o imenso silêncio de governos, ongs, empresas, escolas, universidades, mídias, etc, em torno de um problema que é reconhecidamente caso de saúde pública no Brasil e no mundo? Como virar esse jogo sem informação? A quem procurar quando houver uma tentativa? Quais os fatores de risco? Por que o suicídio é prevenível em pelo menos 90% dos casos? Essa é a função do livro, como essa também é a função do Setembro Amarelo (mês em que se realiza uma ampla campanha em favor da prevenção do suicídio) ou ainda do Dia Mundial de Prevenção do Suicídio (10/9), criado pela Organização Mundial da Saúde, para abrir espaços na direção desse debate tão importante e urgente.

Algo mudou. E para melhor. Deus escreve certo por linhas tortas, diz o ditado.

André Trigueiro

 

André Trigueiro é repórter da TV Globo, editor-chefe do programa Cidades e Soluções (Globonews) e comentarista da Rádio CBN.

 

 

Mitos e verdades

 

Cão que late não morde 

A maioria das pessoas que tiraram a própria vida ou tentaram fazê-lo (pelo menos dois terços dos casos) anunciaram a intenção previamente.

Se alguém deseja se matar, não há nada que possa ser feito

Ajuda apropriada e apoio emocional podem reduzir o risco de suicídio. Não é possível evitar em 100% dos casos, mas em grande parte das situações.

Quem só fica tentando o suicídio, não vai se matar realmente

Quem já tentou se matar alguma vez pertence ao grupo de maior risco de suicídio e deve ter suas ameaças sempre levadas a sério.cntinua..

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Falar sobre suicídio pode encorajá-lo 

Ao contrário. Dar oportunidade para alguém desabafar e compartilhar seus maiores medos e sentimentos pode fazer a diferença em favor da vida.

Se uma pessoa já pensou seriamente em se matar, ela será sempre um suicida

 Quem deseja tirar a própria vida pode pensar isso por um período limitado de tempo. Com apoio emocional, pode superar a crise e seguir em frente.

O suicídio é um ato de covardia (ou de coragem)

O que dirige a ação autoinfligida é uma dor psíquica insuportável e não uma atitude de covardia ou coragem.

Pessoas que se matam não avisam a ninguém 

De cada dez pessoas que cometem suicídio, oito deixam pistas concretas de suas intenções. Mas essas advertências nem sempre são verbais ou percebidas com clareza por quem está próximo.

Quem fala sobre suicídio está tentando apenas chamar a atenção 

Em mais de 70% dos casos, quem ameaça se matar realiza a tentativa ou comete suicídio. Quem pensa seriamente em suicídio costuma deixar pistas ou avisos que devem ser entendidos como gritos de socorro.

A melhoria do estado emocional elimina o risco do suicídio

 Em boa parte dos casos, os suicídios ocorrem no prazo de até três meses após uma aparente melhora, depois de um estado depressivo severo.

Depois que uma pessoa tenta se matar, é improvável que ela tente novamente

Em 80% doa casos, quem comete suicídio já realizou pelo menos uma tentativa anteriormente.

Uma tentativa de suicídio mal sucedida significa que a pessoa não estava realmente determinada a se matar 

Algumas pessoas são ingênuas quando intencionam se matar. A tentativa em si é o fator mais importante, não o método.

 

Fonte: Viver é a melhor opção, a prevenção do suicídio no Brasil e no mundo, de André Trigueiro (Editora Correio Fraterno, 2015).

(Artigo original publicado no Jornal Correio Fraterno)