A alavanca da fé

Por Vinicius Trindade Moura*

O evangelho de Mateus narra o seguinte acontecimento. “Quando ele veio ao encontro do povo, um homem se lhe aproximou e, lançando-se de joelhos a seus pés, disse: Senhor, tem piedade do meu filho, que é lunático e sofre muito, pois cai muitas vezes no fogo e muitas vezes na água. Apresentei-o aos teus discípulos, mas eles não o puderam curar. Jesus respondeu, dizendo: (...) Trazei-me aqui esse menino. E tendo Jesus ameaçado o demônio, este saiu do menino, que no mesmo instante ficou são. Os discípulos vieram então ter com Jesus em particular e lhe perguntaram: Por que não pudemos nós outros expulsar esse demônio? Respondeu-lhes Jesus: Por causa da vossa incredulidade.”¹

Bastaria então crer e cada um adquiriria o poder de ‘expulsar demônios’? 

Com o novo ano em curso, o sentido da fé volta a ser colocado em xeque para a realização dos desafios que virão pela frente. 

Costumamos adotar como alavanca da nossa fé a realidade que está apenas fora de nós. Por exemplo, temos fé em Jesus,  com a certeza de que ele poderá nos auxiliar, o que nos coloca muitas vezes em posição passiva, torcendo para algo mágico acontecer.

O comportamento religioso

No meio religioso, há quem ‘consuma’ palestras, lives e livros, ore compulsivamente e pregue mais para os outros do que para si mesmo, realizando, desta maneira, o culto externo, nos moldes do farisaísmo tão combatido por Jesus. Também de forma passiva, aguarda que uma ação de fora para dentro possa realizar um milagre. 

É verdade que Jesus destacou a fé como um atributo do ser, ao declarar: “Tem bom ânimo. Tua fé te salvou!” No entanto, ao exaltar a fé, Jesus se refere à fé capaz de crer com intensidade suficiente para despertar a vontade de agir. 

Sobre esse aspecto, vale também refletir sobre outra passagem do evangelho. “E, entrando Jesus em Cafarnaum, chegou junto dele um centurião, rogando-lhe e dizendo: Senhor, o meu criado jaz em casa paralítico e violentamente atormentado. E Jesus lhe disse: Eu irei e lhe darei saúde. E o centurião, respondendo, disse: Senhor, eu não sou digno de que entres em minha casa, mas dize somente uma palavra, e o meu criado sarará, pois também eu sou homem sob autoridade e tenho soldados às minhas ordens; e digo a este: vai, e ele vai; e a outro: vem, e ele vem; e ao meu criado: faze isto, e ele o faz. E maravilhou-se Jesus, ouvindo isso, e disse aos que o seguiam: Em verdade vos digo que nem mesmo em Israel encontrei tanta fé.”²

O centurião, assim, compreendeu e exaltou o poder do mestre com base em sua experiência de autoridade, pois ele também tinha os seus liderados. A cura se efetivou, portanto, porque ele sabia da autoridade de Jesus. E, ainda, some-se a isso a contribuição trazida pelo evangelista Lucas, que complementa o entendimento com: “é digno de que lhe concedas isso. Porque ama a nossa nação e ele mesmo nos edificou a sinagoga”³, referindo-se aqui, além da vontade, à sua atitude de bondade, que o credenciou à cura. A necessidade de ação também pode ser comprovada nas palavras do apóstolo Tiago: “mostre-me a sua fé sem obras e eu com as minhas obras mostrarei a minha fé.”⁴

Estado de confiança

A obra Nos domínios da mediunidade, psicografia de Francisco Cândido Xavier, traz valiosa contribuição sobre esse tema. Trata-se de um serviço de desobsessão, no qual os doentes entravam dois a dois, acompanhados de frios verdugos. André Luiz e o assistente Hilário reparam que alguns enfermos não alcançam a mais leve melhoria. Os fluidos magnéticos aplicados não lhes penetravam o corpo. Registrando o fenômeno, a pergunta de Hilário não se fez esperar.

– Por quê?

– Falta-lhes o estado de confiança – esclareceu o orientador.

– Será, então, indispensável a fé para que registrem o socorro de que necessitam?

– Ah! Sim. Em fotografia precisamos da chapa impressionável para deter a imagem, tanto quanto em eletricidade carecemos do fio sensível para a transmissão da luz. No terreno das vantagens espirituais, é imprescindível que o candidato apresente uma certa ‘tensão favorável’. Essa tensão decorre da fé. Certo, não nos reportamos ao fanatismo religioso ou à cegueira da ignorância, mas sim à atitude de segurança íntima, com reverência e submissão, diante das leis divinas, em cuja sabedoria e amor procuramos arrimo.⁵”

Condizente com as lições do evangelho, a doutrina espírita também ensina e esclarece sobre a fé raciocinada, comentada por Emmanuel em O consolador: “Conseguir a fé é alcançar a possibilidade de não mais dizer ‘eu creio’, mas afirmar ‘eu sei’, com todos os valores da razão tocados pela luz do sentimento. Essa fé não pode estagnar em nenhuma circunstância da vida e sabe trabalhar sempre, intensificando a amplitude de sua iluminação, pela dor ou pela responsabilidade, pelo esforço e pelo dever cumprido.”⁶ 

A fé raciocinada, explica Kardec em O evangelho, “por se apoiar nos fatos e na lógica, nenhuma obscuridade deixa. A criatura então crê, porque tem certeza, e ninguém tem certeza senão porque compreendeu. Eis por que não se dobra. Fé inabalável só o é a que pode encarar de frente a razão, em todas as épocas da humanidade.”⁷

Estudo e trabalho

É fácil compreender, assim, a necessidade do estudo aliado ao trabalho espiritual, motivo pelo qual as casas espíritas disponibilizam palestras, grupos de estudos, seminários, feiras de livros, entre outras atividades. Por isso, compreende-se também por que o espírita é chamado de ‘tarefeiro’ e as casas espíritas bem orientadas consagram o exercício da caridade sem alarde e sem extravagâncias, cumprindo o mandamento maior de amor ao próximo. 

Reconhece-se a fé cristã em uma campanha do quilo, na evangelização infanto-juvenil, no atendimento fraterno, nos trabalhos de preces, nas reuniões mediúnicas, dentre tantas outras ações voluntárias. “A fé sincera é ginástica do espírito. Quem não a exercitar de algum modo, na Terra, preferindo deliberadamente a negação injustificável, encontrar-se-á mais tarde sem movimento. Semelhantes criaturas necessitam de sono, de profundo repouso, até que despertem para o exame das responsabilidades que a vida traduz.”⁸

Quando ignoramos os mecanismos da fé e vivemos completamente alienados da realidade, acabamos por nos envolver em superstições, crendices e na busca desenfreada da solução fácil para os nossos problemas, tanto de caráter físico quanto de caráter psíquico. Quando desconhecemos as obras de Allan Kardec, podemos exagerar neste aspecto, apresentando comportamentos por vezes excêntricos, sem respaldo na doutrina espírita, e que podem ser erroneamente levados à tribuna, comprometendo o entendimento e o propósito da divulgação do espiritismo.

Sem a fé raciocinada, ficamos como o menino da passagem evangélica. Ora no fogo e ora na água, e nunca em esfera mental segura. É preciso que se cultive a fé em Deus, que sempre nos oferece através de suas eternas e educativas leis belíssimas oportunidades de renovação. Lembremo-nos de Jesus, que disse: “Trazei aqui este menino”. E entre quedas e recomeços, na edificação do nosso espírito, ouviremos a voz do mestre, dizendo: “levanta-te e vai. A tua fé te salvou.”⁹

Referências:

¹ Mateus 17:14 a 20.

² Mateus 8:5 a 10.

³ Lucas 7:4 e 5.

⁴ Tiago 2: 18.

⁵ André Luiz, por Chico Xavier, Nos domínios da mediunidade, cap. 17. FEB.

⁶ Emmanuel, por Chico Xavier, O consolador, cap. 128. FEB.

⁷ Allan Kardec, O evangelho segundo o espiritismo, cap. 19. Item 7. FEB.

⁸ André Luiz, por Chico Xavier, Os mensageiros, cap. 22. FEB.

⁹ Lucas 17:19.

*Consultor em definição profissional, expositor e educador espírita, trabalhador na Fraternidade Espírita Irmão Glacus, em Belo Horizonte.

Características da fé

O evangelho segundo o espiritismo esclarece que a fé é humana ou divina, conforme o homem aplica suas faculdades à satisfação das necessidades terrenas, ou das suas aspirações celestiais e futuras. Algumas de suas características são:

  • Sentimento inato no homem de seus destinos futuros.
  • Consciência das faculdades depositadas em gérmen no seu íntimo.
  • A realidade das faculdades existentes no homem e o seu desabrochar pela ação da sua vontade.
  • A existência do magnetismo e os seus resultados como prova do poder da fé. (Redação)

Entre a calma e a presunção

Cumpre não confundir a fé com a presunção. A verdadeira fé se conjuga à humildade; aquele que a possui deposita mais confiança em Deus do que em si próprio, por saber que, simples instrumento da vontade divina, nada pode sem Deus. Por essa razão é que os bons Espíritos lhe vêm em auxílio.

O poder da fé se demonstra, de modo direto e especial, na ação magnética; por seu intermédio, o homem atua sobre o fluido, agente universal, modifica-lhe as qualidades e lhe dá uma impulsão por assim dizer irresistível. Daí decorre que aquele que a um grande poder fluídico normal junta ardente fé pode, só pela força da sua vontade dirigida para o bem, operar esses singulares fenômenos de cura e outros, tidos antigamente por prodígios, mas que não passam de efeito de uma lei natural. Tal o motivo por que Jesus disse a seus apóstolos: se não o curastes, foi porque não tínheis fé. – O evangelho segundo o espiritismo, cap. 19. (Redação)