Vida e obra de Herminio Miranda

Por Yeda Hungria

Herminio Corrêa de Miranda, um dos mais cultos e ilustres escritores espíritas do Brasil, deu ao longo dos seus 93 anos pouquíssimas entrevistas, dentre elas esta, concedida à jornalista Yeda da Hungria, que o Correio Fraterno publicou em setembro de 1995 e agora, resumidamente, trazemos para a 500ª edição do jornal.

Herminio Miranda assim se apresenta:

Sou uma pessoa sem biografia. Nasci em 1920, em Volta Redonda, RJ, de família modesta. Não tínhamos o supérfluo, mas o essencial nunca nos faltou. Tenho pouca escolaridade formal. Fiz um curso primário muito rápido, compactado em poucos anos. Vim para Minas Gerais porque em Volta Redonda não havia escolas adequadas e muito menos ginásio. Meu padrinho patrocinou-me a instrução em Baependi e, depois, em Caxambu. Em 1933, fui para Barra Mansa, onde cursei o ginásio. Só na década de 1940 cursei contabilidade. Já era casado, com a primeira filha nascida, e trabalhando. Minha escolaridade é apenas essa. O resto é uma curiosidade insaciável de aprender línguas, de ler tudo quanto puder para ampliar conhecimentos. Tornei-me um bom profissional. Entrei para os serviços da Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda, em 1942, com 22 anos de idade e, de simples auxiliar de escritório cheguei a diretor, em 1967.

Como nasceu seu interesse pela doutrina espírita?

Mamãe criou os dez filhos na religião católica. Era uma pessoa de bom senso e inteligente, dotada de razoável formação cultural. Estudou em colégio de freiras. Ela nos ensinava, em casa, a ler e a escrever e, também, um pouco de aritmética. Íamos para o colégio já sabendo um pouco de cada coisa. Dizia-nos que, enquanto estivéssemos sob sua responsabilidade, seríamos católicos, depois disso, que cada um seguiria seu rumo. Comecei a ler na adolescência. Lembro-me da impressão que me causou Schopenhauer, cujas ideias me pareciam brilhantes. Passei a questionar os ensinamentos da Igreja e suas práticas. Um dia, algumas pessoas da família fizeram a clássica reunião mediúnica com o copinho, e me impressionou observar como ele se movimentava, escolhendo as letras e construindo palavras e frases. Por essa época, fui, a trabalho, para os Estados Unidos. Retornei cinco anos depois, decidido a estudar aquele fenômeno. Procurei um amigo que eu sabia espírita, o cel. Euclides Fleury, colega de trabalho na Siderúrgica, que me deu uma pequena lista de livros, a partir das cinco obras básicas da codificação. Ao ler O livro dos espíritos, tive a impressão de que já o conhecia. Anos depois, comentando o assunto com Divaldo Franco, ele me disse que, em encarnação anterior, eu vivera em Paris e até chegara a conhecer Kardec, com o qual estivera pessoalmente, mais de uma vez, propondo-lhe perguntas e trocando ideias com ele. Posteriormente, por certos meios, essa informação me foi confirmada e eu soube que fora um soldado inglês que vivera em Paris entre 1851 e 1866, os quinze anos finais daquela existência. Daí não me ser estranho O livro dos espíritos

O que o levou à produção de livros espíritas?

Quando comecei a ler e a estudar a doutrina, senti o impulso de partilhar com os outros as coisas que eu estava aprendendo e que me estavam sendo tão esclarecedoras. Assim, em 1956, arrisquei-me a escrever um pequeno artigo e o mandei para o Reformador. Publicaram-no. Aquele foi um momento decisivo para mim, porque se a matéria houvesse sido rejeitada, talvez eu me tivesse desencorajado de escrever. De 1958 em diante, durante 22 anos, escrevi para o Reformador. Às vezes, estampavam até três artigos meus no mesmo número. Foi, aliás, por essa época que o dr. Wantuil me sugeriu que adotasse também um pseudônimo. Escolhi o de João Marcus. Em seguida, vieram os livros, que foram tendo boa aceitação1. 

Qual o livro que lhe exigiu maior trabalho de pesquisa?

Cada livro é uma criança, um filho. Primeiro, a gestação, as dores, o trabalho, as angústias e as alegrias, naturalmente. Um livro que me exigiu muito foi Eu sou Camille Desmoulins, pois decidi confirmar as revelações de Luciano dos Anjos. Eram minúcias, detalhes, problemas miúdos da Revolução Francesa. Foram anos de pesquisas, refletidas na quantidade de notas complementares acrescentadas ao texto básico. Cada livro tem sua pesquisa específica. O que estou escrevendo, por exemplo, exigirá bastante trabalho. Farei um levantamento detalhado da obra de Fénelon, além de buscar mais amplas informações biográficas a respeito dele, o que não tem sido fácil. O evangelho gnóstico de Tomé foi também obra que consumiu longas horas de estudo e pesquisa. Em Alquimia da mente, foram muitos os apoios de que necessitei para as teorias que nele desenvolvo. Já os livros mais simples, como Nossos filhos são espíritos, dispensam pesquisas de maior vulto, pois tratam de depoimentos mais do que de citações eruditas. 

Em uma de suas obras são mencionados os manuscritos do Mar Morto, documentos com ensinos dos essênios e que teriam influenciado o pensamento cristão. Em outras, são citados os achados de Nag Hammadi, no Alto Egito, cópias de textos cristãos primitivos. Qual a relação entre esses documentos? 

Os manuscritos de Nag Hammadi originam-se de uma comunidade reconhecidamente gnóstica. O gnosticismo foi um movimento paralelo ao cristianismo primitivo, ocorrido entre os anos 120 e 240, século 2 e 3, portanto; os do Mar Morto, descobertos em 1947, referem-se a uma seita judaica e seus rituais e procedimentos e, segundo os historiadores, anterior ao cristianismo. Ainda hoje se discute se seus membros eram ou não essênios. Há muito livro bom a respeito disso, como os dos eruditos franceses Charles Guignebert e Maurice Goguel, além de autores mais recentes. Tenho a impressão de haver vivido lá, naquela época; daí porque vagas e imprecisas lembranças me agitam durante a leitura desse material e mexem com minhas emoções. É um tema que me atrai e, como disponho de textos importantes sobre a época, pretendo ainda trabalhá-lo. Não sei, porém, se terei tempo suficiente para escrever um livro a respeito. Anos atrás, eu participava de um grupo mediúnico familiar, no Rio de Janeiro. Numa sessão de regressão de memória, um amigo e eu discutimos a possibilidade de mergulhar nas lembranças ocultas de cada um de nós, a fim de pesquisar a história do cristianismo primitivo. Esse companheiro me dissera, numa das regressões, que, no primeiro século, eu havia sido judeu e ele, romano. Programamos reunir nossas reminiscências pessoais. Um dos aspectos que eu pretendia estudar era justamente a história dos essênios — quem eram, o que faziam, como pensavam e o que pretendiam. Infelizmente o projeto não foi adiante. A tese, contudo, é válida e espero demonstrá-la um dia, senão desta vez, em alguma existência futura, se isso for permitido. Não creio que o Cristo haja sido um essênio, como especula, entre outros, Édouard Schuré. João Batista, sim, parece tê-lo sido. 

Os evangelhos canônicos citam superficialmente Tiago e Judas Tadeu como irmãos de Jesus. Determinadas correntes religiosas os consideram primos. O que revelam suas conclusões?

Tenho encontrado evidências convincentes de que Jesus teve vários irmãos e irmãs. O assunto é tratado com maior amplitude em meu livro Cristianismo, a mensagem esquecida. Quanto a Judas Tadeu, o problema é complexo, porque os textos gnósticos, escritos em copta [egípcio antigo] colocam Tadeu como irmão gêmeo de Jesus, pois o nome Tomé quer dizer gêmeo, tanto quanto Dídimo (em grego). Em suma, Tadeu, Dídimo, Tomé são nomes aparentemente atribuídos à mesma pessoa. É difícil aceitar, contudo, que Jesus haja tido um irmão gêmeo, a não ser em sentido figurado, como alguém muito ligado a ele, uma espécie de alter-ego. Esse aspecto foi abordado por mim em O evangelho gnóstico de Tomé. Quanto a Tiago Maior, contudo, os textos das Epístolas de Paulo e de Atos dos Apóstolos são claros em colocá-lo como um dos irmãos de Jesus. Quando Paulo e Barnabé foram a Jerusalém, no ano 49, a fim de obter a chamada Carta Apostólica, isto é, a permissão para pregar o cristianismo aos gentios, dispensadas, porém, certas práticas formalistas do judaísmo, a decisão final foi de Tiago, irmão de Jesus, como afirma Paulo, sem rodeios. Ao que tudo indica, trata-se, inquestionavelmente, de irmãos de sangue. 

As pesquisas nos textos gnósticos originaram o livro O evangelho de Tomé — título mudado para O evangelho gnóstico de Tomé, na segunda edição. Pretende você escrever sobre os demais textos gnósticos?

Sim, existe ainda muito material no volume The Nag Hammadi Library — a tradução em língua inglesa dos textos coptas — que não foi aproveitada em O Evangelho gnóstico de Tomé, mas tenho de estabelecer prioridades na ordem dos escritos. Projetos, tenho vários. Gostaria, se possível, de escrever três ou quatro livros simultaneamente, porque são muitos os temas que me atraem, mas há limitações incontornáveis a respeitar. A tradução inglesa oferece material riquíssimo, como os escritos atribuídos a Pedro e a Felipe e a outros trabalhadores da primeira hora. Alguns aspectos podem até ser algo fantasistas, mas precisam ser estudados com vagar, mesmo porque, em muitos pontos relevantes, confirmam passagens evangélicas consagradas nos textos vigentes ou as modificam significativamente. Maria de Magdala, por exemplo, apresenta-se nesses documentos como uma presença muito mais marcante do que a gente poderia supor à vista da relativa descrição dos textos digamos ‘oficiais’ que nos chegaram. Ela era dotada de poderosa mediunidade e exerceu papel preponderante no grupo de pessoas mais chegadas a Jesus. Deveria ser considerada, com todo direito, legítimo apóstolo. É uma figura pela qual tenho uma grande admiração. Em Cristianismo, a mensagem esquecida escrevi uma página arrancada do fundo do coração, sobre ela.

Na sua obra Eu sou Camille Desmoulins, é narrada a regressão de memória com Luciano dos Anjos. Numa das passagens, vamos encontrá-lo em Paris, durante o período da Revolução Francesa. Você lhe solicita uma informação da época e ele, desconhecendo-a, vai a algum lugar buscá-la. Como se explica isso?

Recebi, em envelope fechado, uma pergunta, cujo teor Luciano ignorava e que lhe deveria ser feita depois que ele já estivesse em transe. Somente depois de ter ele alcançado esse estado, portanto, abri o envelope e tomei conhecimento do seu conteúdo. Tratava-se de perguntar a Luciano, já regredido à condição de Desmoulins, qual a frase que dissera durante um jantar, com amigos. Ele observou que não se lembrava, pois dissera e escrevera muitas frases de efeito e não sabia a qual delas se referia a pergunta formulada, aliás, por Murillo Alvim, seu amigo pessoal e professor de desenho anatômico. Quis saber, a seguir, se eu julgava importante o atendimento à pergunta. Afirmei-lhe que sim, porque seria um elemento a mais para conferirmos os dados que ele vinha revelando. Disse-me então: "Espera, que eu vou lá." Apliquei-lhe mais passes e ele aquietou-se e permaneceu em silêncio por alguns momentos. Em seguida, me disse: "Já estou aqui. O que é mesmo que você quer saber?”. A partir daquele momento, ele não estava mais se lembrando do ocorrido; ele se encontrava em algum lugar na interseção tempo/espaço, no qual era capaz de resgatar os eventos como se estivessem documentados. Relatou, então, o clima de tensão vivido naquela fase da Revolução, que começava a devorar-se a si mesma, destruindo seus próprios líderes. Encontravam-se reunidos num jantar ele, Danton, as respectivas esposas e amigos, todos muito tensos. Dirigindo-se a Danton, lembrou-lhe num versículo da epístola de Paulo: "...comamos e bebamos, que amanhã estaremos todos mortos”. Falou em latim, para que as demais pessoas não percebessem o estado emocional em que se encontravam. Esse é o episódio. Não sei como explicá-lo. Em A memória e o tempo digo que o tempo é também um local. Ambos, tempo e espaço, para mim, têm algo em comum. 

Para encerrar, gostaria que esclarecesse o conceito de tempo apresentado em seu livro A memória e o tempo.

 Gostaria muito de poder fazê-lo, mas não me sinto suficiente para isso. Acho que teríamos de sair do contexto de espíritos encarnados em que nos encontramos. Parecem-me conceitos que somente podem ser apreendidos pela intuição; impossível fazê-lo pelo raciocínio lógico, limitador por natureza. Vivemos numa dimensão na qual as coisas são lineares e sequenciais e, pelo que se sabe, no mundo espiritual a visão é substancialmente diversa, como se isso que separamos em momentos — presente, passado e futuro — fossem meros aspectos de uma só realidade atemporal. Reconheço ser muito difícil, para nós, prisioneiros da matéria, entender que não existe passado ou futuro, que tudo isso é uma realidade única, uma espécie de eterno presente de que falam alguns. Seja como for, concordemos ou não, compreendamos ou não, essa é a difícil, mas irrecusável mensagem da profecia, uma sólida realidade que a parapsicologia procurou colocar no nicho classificatório da precognição. 

  1. Pela Correio Fraterno, Herminio Miranda publicou:  A irmã do vizir, O exilado, A dama da noite, As mãos de minha irmã, O que é fenômeno mediúnico?, O que é fenômeno anímico? e Os procuradores de Deus.

(Acervo do Correio Fraterno, setembro de 1995)