O debate sobre ciência e espiritualidade no mundo

Por Eliana Haddad

04 05- Alexander Moreira.jpeg

Um simpósio reunindo os maiores líderes em pesquisa sobre espiritualidade e saúde mobilizou, agora em setembro, quase 700 pessoas de diversos pontos do mundo, interessadas na discussão dos estudos científicos sobre o tema, especialmente as implicações para a saúde, para a compreensão da consciência e da natureza humana. O evento foi realizado virtualmente pelo Nupes – Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora – e coordenado por seu diretor, o professor de psiquiatria Alexander Moreira-Almeida. Convidado a falar sobre esse momento significativo, envolvendo ciência e espiritualidade, Alexander nos concedeu esta esclarecedora entrevista.

O que muda na ciência com as descobertas sobre a relação saúde e espiritualidade? 

Muda muita coisa. O primeiro ponto é sobre duas ideias que existiam com certa frequência no ambiente científico: que a espiritualidade e a religiosidade não seriam importantes no mundo moderno, e que teriam um impacto negativo sobre a saúde. Entretanto, os achados atuais dizem exatamente o inverso: a imensa maioria da humanidade possui uma religião, 84%, e mesmo dos 16% restantes, a grande maioria possui alguma forma de espiritualidade. Hoje, há milhares de estudos evidenciando que maiores níveis de envolvimento religioso e espiritual estão geralmente associados a melhor saúde. Então, o que muda? A ciência reconhece que esse é um tema relevante na atualidade, e, do ponto de vista da prática clínica, nós, profissionais de saúde, médicos, psicólogos, enfermeiros, precisamos levar em consideração a espiritualidade do paciente, já que ela impacta no modo como o paciente lida com a doença e até mesmo na evolução do seu quadro clínico.

Há muitas pesquisas sobre a existência da consciência fora do corpo. Em que etapa estamos para a mudança do paradigma materialista?

Desde meados do século 19, há pesquisas, do ponto de vista científico, sobre a possibilidade da consciência, da mente, existir fora do corpo. Ou seja, ela não seria apenas um fruto da atividade do cérebro, onde, morrendo o cérebro, morreria a consciência. Na realidade, há uma ampla gama de pesquisas sendo desenvolvidas. Por exemplo, pesquisas de experiência de quase-morte. Em situações de parada cardíaca, em que o cérebro não está mais funcionando por não ter mais oxigenação e circulação sanguínea, e que, apesar disso, o paciente está lúcido, conseguindo descrever depois situações que aconteceram durante o momento da parada cardíaca. Também há experiências mediúnicas em que as pessoas produzem informações compatíveis com uma pessoa falecida, informações e habilidades, como poesia, por exemplo, a que o médium não teria acesso. Crianças pequenas que alegam possuir lembranças de vidas passadas e, muitas vezes, lembranças bastante precisas, para as quais também não se identifica um modo pelo qual elas poderiam ter tido acesso a essas informações. São algumas das pesquisas mais estudadas atualmente e que nós também estamos investigando aqui no Nupes. 

É possível citar Kardec como teoria para explicar ao meio acadêmico os fenômenos anímicos ou mediúnicos?

O que o meio acadêmico pode fazer é analisar vários modos como as pessoas lidaram e como tentaram explicar os fenômenos espirituais. Assim, academicamente, pode-se estudar Kardec e o próprio espiritismo, como uma tentativa — como Kardec se propunha — de explorar, baseado em evidências, a espiritualidade. Qualquer outra pessoa que tenha proposto modos de se abordar o tema pode e deve ser investigada.

Qual o impacto do estudo sobre espiritualidade nos estudantes de medicina?

Os estudantes de medicina de um modo geral recebem de forma muito positiva esses estudos, embora a maior parte dos estudantes da área da saúde não receba nenhum tipo de treinamento nesse campo, o que seria muito importante. Hoje, há diretrizes, por exemplo, da Associação Mundial de Psiquiatria, da Sociedade Brasileira de Cardiologia, recomendando o estudo e até a inclusão de treinamento dos profissionais de saúde sobre aspectos da espiritualidade. Isso porque faz parte de uma compreensão mais ampla do indivíduo, e, é claro, quando eu levo em consideração a espiritualidade, não estou negando os aspectos biológicos, psicológicos e sociais. O que nós defendemos é uma abordagem biopsicossocioespiritual, ou seja, que contemple todas as dimensões do ser humano.

O Nupes realiza várias pesquisas sobre espiritualidade. O espírito, afinal, é da alçada de qual ciência? 

Depende de qual é a ideia em termos de espírito ser da alçada da ciência. Se eu entender como espírito a noção da mente, aquilo que nós sentimos, ou somos interiormente, ele pode ser investigado cientificamente, especialmente quando tiver implicações empiricamente verificáveis, ou seja, há consequências que podem ser investigadas. Por exemplo, uma experiência fora do corpo, dentro de uma experiência de quase-morte. Não vai ser possível medir e ver se realmente tem uma consciência ou um espírito fora do corpo. Mas pode haver consequências empiricamente verificáveis. Ou seja, a pessoa volta da parada cardíaca, descreve o que aconteceu e você pode estudar o impacto dessa vivência sobre o indivíduo e até o grau de precisão das informações que o indivíduo traz. Do mesmo modo, uma criança que refere a vidas passadas. Você não tem como acompanhar um espírito de uma vida pra outra, mas você pode ver o que essa criança relata, como ela poderia ter acesso às informações, se elas são verídicas ou não. Neste aspecto, sim, o espírito seria indiretamente passível de avaliação pela ciência. Mas, lembrando, a ciência é um dos aspectos, a filosofia e a própria religião são outros modos de explorar as experiências espirituais.

O conhecimento do espiritismo contribui para as pesquisas em psiquiatria na atualidade? 

O espiritismo tem uma relação muito importante com a psiquiatria desde o começo. Primeiro, chamando a atenção para a importância da dimensão espiritual para a saúde do indivíduo, e hoje em dia esse é um assunto bem aceito. Também o espiritismo foi um grande responsável pela criação de hospitais psiquiátricos em nosso país, para prestar assistência a pessoas portadoras de transtornos mentais graves. Inclusive, essa é uma das características do desenvolvimento da psiquiatria no Brasil. Que eu tenha notícia, em nenhum outro país do mundo fundaram-se hospitais psiquiátricos espíritas, e no Brasil existiram dezenas deles, muitos ainda em atividade. Um outro ponto também importante da contribuição do espiritismo foi chamar a atenção para a realidade dos fenômenos espirituais, como a própria mediunidade, para que os  cientistas pudessem compreender melhor a mente humana. O conceito científico  que nós temos de uma mente inconsciente surgiu em grande parte em estudos na Europa sobre médiuns em situações de transe, por exemplo.

Que papel o Brasil vem desempenhando no campo da ciência com as pesquisas e descobertas acadêmicas sobre a espiritualidade?

O Brasil atualmente é um protagonista importante no mundo na área de pesquisas em espiritualidade e saúde. Na ciência como um todo, o Brasil ocupa o 13º lugar em número de artigos científicos publicados em bases internacionais.  Enquanto que no campo da espiritualidade e saúde, está entre o 5º e o 6º lugar, ou seja, é um dos países que mais produz academicamente sobre o assunto. São pesquisas na área da medicina, na psiquiatria especialmente, também no campo da enfermagem e psicologia. Assim, temos colaborado, investigando, mostrando que os achados de pesquisas em populações europeias e americanas, por exemplo, se aplicam no Brasil, e sobre as especificidades e as experiências religiosas que existem em nosso país.

O Nupes também coordena o Projeto Allan Kardec na UFJF. Isso pode sugerir que o meio acadêmico esteja se abrindo mais ao espiritismo como ciência?

O projeto Allan Kardec na UFJF tem grande importância porque Allan Kardec é provavelmente o pensador francês de maior influência no Brasil, o autor com mais livros vendidos aqui, são dezenas de milhões de exemplares, influenciando milhões de pessoas. Infelizmente, no meio acadêmico, há muito pouco estudo sobre Allan Kardec em si. E uma das grandes lacunas era justamente a falta de fontes primárias, ou seja, de documentos, manuscritos de Kardec. Felizmente, a partir de parcerias com diversas instituições, o Projeto Allan Kardec da UFJF tem disponibilizado dezenas de manuscritos e outros documentos pessoais dele, em português e em francês, para que, tanto o público em geral quanto o público acadêmico possam estudar e investigar com mais detalhes a sua vida, a sua obra, como ele elaborou o espiritismo e o seu consequente impacto.

O Simpósio Ciência da Espiritualidade, realizado em setembro, contou com a participação dos sete maiores pesquisadores sobre o tema no mundo. Como você avalia o interesse pelo espírito fora do Brasil? 

Sim, nós ficamos muito felizes. O Simpósio Ciência da Espiritualidade, que celebrou os 15 anos do Nupes, do nosso grupo de pesquisa na UFJF, contou com quase 700 participantes de 18 países, mostrando um grande interesse internacional sobre o tema, tanto no meio acadêmico, quanto no público em geral, para a temática das pesquisas em espiritualidade. Mas eu ainda acho que, no Brasil, temos uma abertura ainda maior, um potencial de avançar e de colaborar cada vez mais nesse sentido. Ainda falando sobre o interesse internacional sobre o assunto, as maiores universidades do mundo têm centros de pesquisa em espiritualidade e ciência, como, por exemplo, Harvard, Cambridge e Oxford.

Quais os entraves enfrentados para levar para o debate acadêmico um tema que para nós já é tão evidente?

Para dizer a verdade, acho que existem menos barreiras do que eu imaginava. Nessa área, o rigor científico exigido é ainda maior. Um dos problemas frequentes está no interior do campo. Muitas vezes, as pesquisas não são tão boas na questão da qualidade, sendo desenvolvidas mais pelo entusiasmo ou pela fé do que pelo rigor científico. Isso é um grande problema nessa área, porque a meta das pesquisas não deve ser uma questão de proselitismo, de provar a qualquer custo uma ideia, mas de estudar cuidadosamente a realidade, buscar a verdade, seja ela qual for, com o máximo de rigor e prudência.

Também há problemas externos, um deles é o que nós chamamos de cientificismo materialista. É a ideia equivocada de que o estudo científico da matéria seria capaz de explicar tudo o que existe, e que tudo o que existe estaria restrito à matéria, a forças ou partículas físicas. Essa crença, que muitas vezes se transforma num dogma, faz com que as pessoas excluam a priori, qualquer possibilidade de existência, por exemplo, da consciência extrafísica, considerando isso necessariamente uma superstição ou algum erro científico ou metodológico. Para combater esse equívoco é preciso mostrar — como já é muito bem reconhecido na área da filosofia e entre os pesquisadores de qualidade — que o fisicalismo (pensar que tudo o que existe é matéria), é uma crença, é uma metafisica, não é um fato científico e que não é necessário assumi-lo para realizar a ciência. Na realidade, a maioria dos fundadores da ciência moderna e muitos dos principais líderes da ciência atual não  aceitam o fisicalismo.

Vários estudos já demonstram que pessoas envolvidas com religiões e espiritualidade tendem a viver mais, a apresentar menores índices de depressão, a lidar melhor com as adversidades. Qual o próximo passo? O que esperar do futuro? 

Não há mais dúvidas sobre o impacto da espiritualidade sobre a saúde. Um dos desafios práticos agora é ensinar aos profissionais de saúde como abordar este tema de modo ético e baseado em evidências, jamais impondo visões, crenças, mas levando em consideração o que o paciente vivencia. Outro grande desafio é a abordagem efetiva das experiências espirituais. São elas que geram as crenças espirituais. Devemos estudar com mais detalhes essas experiências, as suas características e até mesmo a sua origem, até quanto elas podem indicar efetivamente esse lado extramaterial do ser humano. 

Saiba mais sobre o tema: TV NUPES (www.youtube.com/nupesufjf), e site do NUPES (www.nupes.ufjf.br). 

Temas das pesquisas atuais no NUPES

Perfil das experiências quase-morte no Brasil

Religiosidade/espiritualidade em uma amostra nacional de psicólogos brasileiros

Experiências de final de vida e seu impacto no processo do morrer

Espiritualidade, religiosidade e felicidade em crianças

Levantamento nacional de casos sugestivos de reencarnação na população brasileira

Possibilidade de investigação científica da sobrevivência pós-morte da consciência na filosofia contemporânea

Obtenção anômala de informações em estados de transe

Contribuições epistemológicas e metodológicas da Society for Psychical Research para a pesquisa da sobrevivência da consciência Exoma (genética) de médiuns