O impulso das crises na transformação social
Por Eliana Haddad
A vida de Nancy Puhlmann Di Girolamo sempre esteve ligada à Instituição Beneficente Nosso Lar, dedicada às pessoas portadoras de deficiências, fundada em São Paulo, em 1946, por sua mãe, Maria Augusta Ferreira Puhlmann. Escritora, articulista, Nancy publicou vários livros enfocando pessoas com deficiências, enfatizando a importância do desenvolvimento das potencialidades humanas. Enfermeira pela Universidade Federal de São Paulo com especialização em neuropediatria e socióloga pela Escola de Sociologia e Política da Universidade de São Paulo, Nancy tem mestrado em antropologia cultural e é pós-graduada em reorganização neurológica na Filadélfia (EUA). Aos 91 anos, recém-completos em 21 de março, Nancy recebeu com muita alegria o Correio Fraterno em sua residência para esta entrevista. Atenta à modernidade, simples e fiel ao seu raciocínio rápido, Nancy analisou a história e o papel do espiritismo nas transformações sociais, compartilhando ainda com satisfação suas ricas experiências em tempos de longevidade.
O que está ocorrendo com a nossa sociedade e qual o papel do espiritismo neste momento?
A sociedade está em crise, mas as crises sempre existiram. Elas são necessárias, porque fazem parte do processo sociológico do progresso. Percebo também que a doutrina espírita entrou na fase sociológica, tendo dado mais ênfase antes à psicologia e à medicina, no sentido espírita. Toda literatura espírita é sociológica porque o espiritismo é um ensino do destino e dos objetivos do espírito e suas relações com o mundo corpóreo, com o mundo social. Kardec, quando coloca na terceira parte do O livro dos espíritos as leis morais, ele entra no social, mas como uma atitude comportamental interior que se expande sempre através das relações com o próximo.
Em sua opinião, o espiritismo já conseguiu cumprir com esse objetivo no aspecto social?
Acho que sim, pelo sentido real das propostas e ideações ultimamente desenvolvidas. Houve com Chico Xavier uma grande expansão do social na divulgação das ideias espíritas, baseadas na obra estruturada de Kardec. E isso está ocorrendo também com o trabalho de Divaldo no mundo.
A senhora está falando de expoentes. Mas e o espírita de maneira geral, está conseguindo enxergar o papel do espiritismo ou ainda está voltado para si mesmo?
Prioritariamente, sim, ainda. Todo ser humano faz parte de uma história que o obriga a olhar para si mesmo num processo normal de conhecimento. E isso vai permanecer por muito tempo, é um problema de evolução. Na realidade, é na vida social que exercitamos nossos papéis. É no intercâmbio mesmo que o progresso se dá, na lei de sociedade.
Como a senhora vê a bandeira do espiritismo “Fora da caridade não há salvação” na sociedade hoje?
Acho que apesar da insistência de Kardec, de fazer inclusive uma pergunta específica sobre isso aos espíritos, ainda não se compreendeu muito bem o que seja isso. Kardec obteve a resposta clara e definitiva de que a ideia de caridade retrata o pensamento de Jesus: “Benevolência para com todos, indulgência com as faltas alheias e perdão das ofensas”. São três atitudes interiores do ser. Dar é sempre um desprendimento, com valor ou não, mas a caridade não acaba aí. Apenas começa assim e depois esse sentimento vai se desenvolvendo em outros aspectos no relacionamento humano. Caridade é uma atitude sempre nova como agente transformador das relações de uma maneira geral.
Que análise podemos fazer, nesse sentido, do momento atual?
Estamos numa fase de mudanças tremendas. Mas é preciso compreender que esse processo já vem se realizando há mais tempo. Quando os espíritos anunciaram “os tempos são chegados” não se referiam a um exato momento de 1857, como uma transformação que surgisse de um dia para outro, mas assinalavam as circunstâncias que começavam a se fazer presentes e favoráveis às mudanças necessárias e inevitáveis. Quando as mudanças sociais são rápidas, provocam uma crise que exige muita reflexão, pois nem sempre há maturidade suficiente da sociedade para assimilá-las. É preciso comandar, dirigir e administrar a mudança para não sermos engolidos por ela. A lei social humana é lei de progresso.
Mas também podemos atrasar o progresso.
Sim, claro. Isso é exatamente o que Kardec obteve de resposta dos espíritos. Não se pode entravar o progresso, mas pode-se atrasá-lo, sim. Não é que possamos paralisá-lo definitivamente, porque ele é uma força de lei, supremamente superior ao estacionamento e à inércia. Por isso está também presente mesmo quando dizemos que o que vale mesmo é o aqui e agora, que se deve se concentrar somente no presente. O maior perigo é que a inércia pode trazer é o pessimismo.
É o que acontece hoje com a humanidade diante de tantos conflitos?
A situação econômica e política mundial, no Oriente e no Ocidente, está conflitante, confusa. Podemos ter um pensamento pessimista porque aparentemente parece que tudo está perdido. Como se quiséssemos permanecer numa zona de conforto, de acomodação. Ora, a realidade não é essa. Aliás, aí entra o pensamento da doutrina espírita. A sociedade está submetida à lei maior, a lei do progresso, e os conflitos atuais não são um retrocesso, um risco iminente, mas uma maneira de se processar o avanço. Lembro que no meu tempo de estudante de sociologia, a gente estudava o mesmo processo: conflito, competição, interação e miscigenação. Hoje, ultrapassamos essas fases que são repetitivas e entramos na fase da inclusão. Hoje nós incluímos tudo. Incluímos preconceitos que eram rechaçados e que hoje estão em moda. Damos realce, exageramos o seu valor. Isso também não é correto, porque toda oposição reforça o oponente.
E qual seria então, sociologicamente, o próximo passo desse sistema que estamos vivendo?
Falar sobre o próximo passo é o mesmo que indagar sobre qual será nosso futuro. E isso a doutrina espírita mostra ser único. Só há um caminho: o progresso intelecto-moral. Lembrando-se sempre, porém, de que não é pelo desenvolvimento intelectual que o moral se desenvolve. Na questão da inclusão, quando as oportunidades são mais amplas, ela é uma bênção, porque se num primeiro momento ela chega confundindo, miscigenando tudo, na sequência virá a organização. Precisamos refletir e perceber que a lei divina está acima de ideias pessoais, grupais, institucionais. Querendo ou não, estamos progredindo e é reforçando-se o bem que se enfrenta o oponente. É como ensinou Jesus na parábola do joio e do trigo. Eles crescem juntos e somente quando estão bem grandes é que se consegue separá-los. Para curar a sociedade é preciso também sanear a forma de pensar, ter noção de que o pensamento e a mente são nossos grandes colaboradores, se soubermos direcioná-los adequadamente. Nesse sentido, devemos nos trabalhar interiormente na procura do bem. É preciso achar o bem. E se procurar, acha.
E teremos condições de fazer essa separação naturalmente no estágio evolutivo em que nos encontramos?
Sim. Não digo nós, referindo-me à população presente no globo hoje. Mas a população que virá, pelo próprio processo da reencarnação, que poderemos ser nós mesmos. Nossa responsabilidade continua. Não há ruptura. Oxalá, possamos estar encarnados, participando ativamente dessa transformação. Ela não vem de graça, mas está aguardando pelas nossas atitudes, coletivamente, porque sozinhos somos poucos, não iremos conseguir. Por isso há uma lei divina, que é da sociedade. É juntos que precisamos fazer isso.
Com tanta violência, conflitos, a primeira impressão é a de que o bem está distante, que estamos retrocedendo...
A grande questão é: a crise, a dificuldade, é um empecilho ou um avanço? Toda dificuldade é um avanço, porque todo erro é uma experiência já realizada e aí está o aprendizado. Se não errássemos, não conheceríamos. Estamos numa época catártica, colocando para o exterior aquilo que está nos incomodando por dentro. É sempre um momento importante, muitas vezes dolorido, mas o que vai nos fazer crescer, tirando-nos do conforto e nos impulsionando à ação.
Qual seria o papel do espiritismo nessa transição?
Primeiro, é preciso que ele seja muito bem conhecido como doutrina kardeciana, de bom senso. Quanto mais se lê, mais se descobre, mais se admira o pensamento de Kardec, a pesquisa que ele fez, a doutrina como ele organizou. Ela é um farol na escuridão a se projetar para nos auxiliar, inclusive na busca do lado positivo. Acreditando e não desanimando. Tudo é uma questão de sintonia.
O que a senhora proporia para a divulgação da doutrina atualmente? Estamos conseguindo acender essa luz, levar essa mensagem?
Tenho a impressão de que, no sentido sociológico, o grupamento espírita iniciou a unificação de ideias, não no sentido institucional, orgânico, mas de pontos de vista, de forma a centrar e valorizar a base, a obra de Kardec. Mas não podemos esquecer que o Cristo transcende na obra de Kardec. Há uma filiação fidedigna de Kardec para com o cristianismo, o que quer dizer que, se nos centrarmos nesse aspecto, encontraremos inúmeras modalidades de seguir o exemplo do espírito mais elevado que esteve entre nós e alavancar o nosso progresso na contextualização do seu evangelho. Através de perguntas e respostas, Kardec leva-nos a deduzir o que é preciso ser feito. Antes disso, o cristianismo estava devaneando, podemos dizer, estava disperso, avariado, ortodoxo, fundamentalista, tendencioso. Agora, por exemplo, sentimos uma mudança muito grande no sistema sociológico-religioso. Vemos que as religiões estão se abrindo.
A senhora acha que em questão de liderança, o movimento espírita pode se ressentir com o desencarne e a falta de tantos líderes desbravadores?
De jeito nenhum! Pelo contrário, na história do movimento espírita, de Kardec aos dias de hoje, houve fases em que predominou um ou outro aspecto da doutrina, em seu complexo filosofia, ciência, religião, ou moral, como preferirem. Ela é generalista e abrangente. Mas acho que atualmente ela está ainda mais pujante. Na nossa época, éramos poucos líderes. Hoje a própria palavra tem outra conotação, mais participativa. Havia no passado muita projeção intelectual pessoal, quase que uma pessoa dirigia grandes grupos. Hoje somos muitos a dirigir uma multidão. Digo isso por experiência própria, por que no Nosso Lar também foi assim. Durante muito tempo a instituição foi dirigida por minha mãe, depois por mim. O grande salto é quando se muda isso. Tivemos, por exemplo, uma grande mudança há seis anos e dissemos: chega, vamos dividir, tem que haver uma diretoria colegiada, mas que não haja quem predomine. Tem que ser democrática, no sentido espírita, mas que todos participem. E foi aí que tudo melhorou. Mas tivemos que passar por uma grande crise.
E sobre a experiência do avançar da idade? Como aproveitar melhor tal condição?
O envelhecimento não é absolutamente o final de tudo, como se faz parecer, como se você fosse perdendo tudo da vida – a vista, o ouvido, o movimento, as células do corpo que já não se renovam tanto, embora os neuropeptídios estejam aí acenando para mudanças, através das pesquisas da neurociência. O envelhecimento nos traz a ponderação que fez falta a vida inteira. Faço hoje com muita alegria retrocessos da vida e vejo quantas coisas fiz por personalismo. O envelhecimento traz uma oportunidade maravilhosa de se fazer uma revisão, sem artifícios, sem o selo do ‘faz de conta’. Você começa realmente a se descobrir e a achar graça de si mesmo. Estou à procura de mim mesmo. E me pergunto sempre: quem sou eu agora? Isso é uma bênção, compensador. O tempo é precioso e envelhecer pode não ser tão assustador. Querendo ou não a longevidade veio pra ficar. Não temos que ter medo do envelhecimento. É a vida. http://www.ibnossolar.org.br/
(Publicado no Jornal Correio Fraterno - Edição - 462 mar./abr. 2015)