Dependência química, depressão, suicídio
Por Eliana Haddad e Izabel Vitusso
A assustadora realidade da disseminação das drogas pelo Nordeste impulsionou, há cerca de um ano, um grupo de trabalhadores espíritas de Uberlândia,MG, que organizaram o “Projeto Caminhos”, com foco na assistência e na prevenção da dependência química, suicídio e na depressão. Com braços de apoio que conseguiu amealhar através das Federações Espíritas dos Estados do Maranhão, Piauí, Alagoas e Ceará, o grupo chega a realizar seis palestras por dia em centros espíritas, escolas e outras comunidades, além de atendimentos, que têm revelado a enorme carência de informação. Um dos idealizadores do projeto, o médium mineiro Rener Leite da Cunha, faz, nesta entrevista, um alerta sobre o quanto a casa espírita tem a contribuir.
O que levou vocês a pensarem nesse projeto e irem para o Nordeste?
RENER: Tudo em doutrina espírita começa de cima para baixo. Somos tocados naquilo que temos que fazer. Nós, como médiuns, trabalhadores, precisamos ter a atenção voltada a esses níveis de doenças e desequilíbrios de hoje, que não tínhamos 20, 30 anos atrás. Não nas proporções atuais. Porque hoje não só os jovens, mas também adultos, frustrados, com conflitos íntimos, com dificuldades de relacionamento, têm procurado nas drogas a compensação para aliviar suas tensões.
Por que mudou?
As pessoas hoje não têm resistência e nem resiliência para passar pelos problemas, pelo sofrimento. Mais fragilizadas, encontram no mundo atual acesso muito fácil ao álcool, às drogas... E os números estão aí. Uma pessoa que tem desvio na área da sexualidade, se você der condições de ela acionar esse campo, com certeza ela vai desencadear todo um processo difícil de frear depois. Estando já com o mundo íntimo desarmonizado, ela encontrará no que lhe dá prazer uma saída para suprir carências emocionais e sentimentais.
Depressão, drogas, suicídio estão em grande parte presentes no atendimento nas casas espíritas. O que fazer para ajudar de forma mais eficiente?
As casas espíritas precisam ter um nível de entendimento, de compaixão e comprometimento nesse âmbito, lembrando a questão 793 de O livro dos espíritos, que diz que enquanto não tirarmos os vícios da sociedade nós não teremos passado pela primeira fase da civilização. Somos civilizados, mas não ao ponto de varrer da nossa sociedade todos os vícios e tendências que temos. Há dependências químicas de todos os tipos, inclusive a medicamentosa. E todos os remédios que levam ao torpor do cérebro vão criar uma dependência, porque a pessoa inicialmente se sentirá melhor. O cérebro vai descansar e querer novamente aquela substância.
Como você tem realizado esses atendimentos? Há alguma programação específica a seguir?
Procuramos deixar claro para os assistidos que eles estão sendo tratados, e poderão ficar cada vez melhor, porque seu espírito está se fortalecendo. Temos a prece, palestra de vinte minutos, esclarecimento sob a luz da doutrina, que é imenso, o passe individual e o diálogo fraterno e a desobsessão, para os desencarnados, que são tão necessitados e dependentes quanto os encarnados. Temos o valor da escuta, do dar a palavra para falarem sobre suas emoções, suas dores! É um conjunto de providências, conduzido habilmente pela própria Espiritualidade, reunião por reunião, em conjunto com os trabalhadores encarnados. Os assistidos entendem que estão numa teia de proteção e, onde estiverem, se se ligarem a esse fio através da prece, os espíritos benfeitores irão assisti-los. Então temos um enorme socorro nas mãos da casa espírita.
Viajando pelo Nordeste, o que você vê que mais falta para diminuir o sofrimento e aplacar problemas como as drogas?
Falta acessibilidade a recursos. O governo tem programa antidrogas, mas e o acesso a eles? Há grupos que tiram essas pessoas das ruas, ONGs que até as direcionam para tratamento. Nós, na doutrina espírita, temos que receber esses pacientes. E como vamos fazer? O que um espírito amigo nos passou foi que a nossa função é a de amar. Só vamos poder tocar essas pessoas com o amor. E só vamos conseguir ajudar no combate à dependência química disseminando outra linhagem de pensamento, de sentimento.
As outras iniciativas que existem não tratam os espíritos. Aqueles que são internados e voltam para casa não têm estrutura psicológica e nem espiritual para suportar a abstinência. Porque é na crise de abstinência que os espíritos aproveitam. Isso que é preciso compreender para não julgar. As casas espíritas precisam ter as portas abertas para dar essa estrutura e mostrar para os assistidos que precisam trabalhar a fé, ligarem-se à oração e resistirem, dizer não. E se a casa espírita tiver esse comportamento, já estará auxiliando. É preciso pessoas comprometidas que mais escutem do que falem. Em nossas reuniões trabalhamos o campo emocional e espiritual, os ‘buracos’ interiores, os conflitos que eles trazem, as carências. Se não tratarem isso, não adianta. Vão sair dali e procurar a droga de novo.
Como essa atenção atua na prevenção à recaída?
Tudo na vida é lei da compensação. Se você não compensar seu cérebro, convencendo-o que existem coisas melhores, ele não vai aceitar simplesmente o argumento. Mas ele aceita substituir. A ‘carência’ é tema de uma das primeiras palestras que realizamos com eles, depois ‘fuga’, ‘depressão’, os ‘níveis de depressão’, a bebida. A maioria dos casos de drogas pesadas e ilícitas começa com a lícita, com a bebida. Precisam entender que a cerveja é legal, mas se houver a predisposição à dependência, ela não será suficiente, vindo as bebidas com maior teor alcoólico e o aumento das doses. Daí passar para droga é um passo.
Como você vê as campanhas contra o uso de drogas?
Com todo respeito, essas campanhas “Não use drogas”, “Diga não às drogas” não têm força como argumento. Se houver a predisposição à dependência é muito difícil. Mesmo porque, existem as personalidades toxicófilas, que dentro de uma mesma família já trazem a predisposição à dependência. É herança física, obviamente com a ascendência espiritual, que já sabemos, sobre as necessidades daquela doença, como um alerta, um aviso de que já houve aquela dependência no passado. Para muitos, tomar uma cerveja é ficar embriagado. Mas existe o que toma duas, três e vai se sentindo cada vez melhor. A tolerância nessas personalidades toxicófilas é muito maior e elas vão se viciar muito mais rápido. A maioria dos pais não sabe disso e as casas espíritas precisam instruí-los sobre essa questão.
Qual o papel do livre-arbítrio da pessoa em ceder ou não a toda essa influência espiritual?
O livre-arbítrio está ali. Posso falar sim ou não. Mas, por experiência nos atendimentos, para quem usa drogas é uma dificuldade enorme. Muitos chegam a relatar que sentem o espírito falando para eles beberem ou fumarem. Por isso é preciso compreender para não julgar. Primeiro é preciso trabalhar com eles essa força mental, para que tenham resistência, para falar não às drogas. Depois entramos com os ensinamentos sobre a fé humana, fé na vida, fé em Deus, fé no futuro. Imaginem que a luta é grande!
Qual a melhor conduta da casa espírita hoje diante dessa realidade?
As casas têm que entender que devem ter esse departamento de atendimento e apoio diante desta realidade da drogadição, com ambulatório e socorro. Em nosso atendimento, deixamos inclusive número de telefone disponível, porque no ápice da abstinência, se eles ligam, você consegue ajudá-los a mudarem a frequência mental, consegue incentivá-los, lembrando que eles são mais fortes. Claro que não é fácil. Por isso as casas espíritas têm mesmo muita dificuldade para lidar com esse problema.
Seria aí um trabalho de equipe: dos espíritos, do centro, do assistido, da família, da sociedade.
Sim. É preciso acima de tudo ter comprometimento com a dor do outro. A dependência química é uma doença como qualquer outra. Mas você não pode virar e falar que é um caso perdido. É preciso mostrar a realidade, mas não fechar a porta para a luta, para a esperança, para a vontade de ser curado. Por que quando Jesus disse “a tua fé te curou” percebeu que quem se aproximava estava pronto, com fé e merecimento. É preciso haver nas casas espíritas muito amor, muito ouvido, estudo específico do assunto. É preciso se conhecer do que se trata, para quando eles falarem, você saber em que nível está o problema e poder ajudar.
Você percebe que com esse trabalho as casas espíritas têm se interessado mais pelo problema?
Tivemos um seminário em novembro, em Araguari, MG, na Aliança Municipal Espírita, em que reunimos as casas espíritas. Ao final, três delas já estavam comprometidas em começar o trabalho. Isso numa cidade de 90 mil habitantes. A casa espírita precisa primeiro começar a fazer palestras de orientação sobre o assunto. Se estiverem predispostas a fazer, temos todo o material, orientação, que é muito simples. Não tem nada de especial a não ser amor, mesmo porque você não vai corrigir um vício de um dia para outro. Estou com um caso de crack , em que o menino sai da reunião dos assistidos, vai ao banheiro e usa uma pedra. A gente sabe disso. Agora eu vou até o banheiro, chamo, e ele volta. Você tem que saber que essas situações acontecem.
Como começar a se engajar nesse trabalho?
Querendo. Um espírito nos falou que somente se combate um processo de vício nessa escala de disseminação que está propondo-se tratamento na casa espírita. O Brasil é campeão mundial no uso de crack. Recife, por exemplo, é a capital do crack, ganha de São Paulo e do Rio. No Nordeste, temos uma cidade com 15 mil habitantes, próxima de Teresina onde 90% dos 15 mil habitantes são alcoolistas. Fora as outras drogas.
Como você analisa essa corrida das drogas? Espiritualmente, por que estamos perdendo para elas?
Porque o dinheiro que se movimenta com o tráfico perde só para a indústria bélica e para a indústria farmacêutica. Tráfico de drogas dá dinheiro. O que os traficantes ganham é um absurdo. Eles pegam crianças, meliantes, de 7, 8 anos, aqui no nosso bairro mesmo, onde estamos trabalhando, dá cinco reais para eles para levar um papelote. Se levarem quatro, ganham vinte reais. Os meninos não querem trabalham mais.
A casa espírita tem consciência da necessidade desse trabalho?
A FEB tem uma apostila antidrogas para ser baixada no site. Se a FEB já tem isso, por que os espíritas vão achar que isso não tem a ver com eles? Realmente falta mais divulgação e mais chamamento.
Se você perguntar em qualquer casa espírita no país, no mínimo 4 ou 5 pessoas vão se referir a problema familiar com uso de droga, ou seja, estão na codependência, ou o vizinho, ou o amigo. Só que não há conscientização. O espírita acha que por ter que dar palestra na casa espírita, dar passe, dar água fluidificada, já fez a sua parte. Mas e aí? Então Jesus se equivocou, porque ele disse: “Curai os enfermos, ressuscitai os mortos (...) expulsai os demônios”. E quem são esses doentes? A doutrina espírita tem como fugir disso? Não tem. E a nossa negação tem preço e vai bater dentro da nossa casa, com filho alcoolista, com marido com problema...
Qual a melhor forma de reagirmos a isso tudo?
“Destruindo o materialismo”, está em O livro dos espíritos, sobre o progresso da humanidade. Um médico, em uma dessas viagens, me perguntou o que fazer com seu filho dependente químico, que não conseguia se adaptar ao voltar do processo de internação. “Mando embora? Interno de novo?” – perguntou-me desacorçoado. “Não existe cura de nenhum ser humano se ele não for tocado no coração, no seu sentimento”, eu disse a ele. E nós estamos cansados de saber que a doutrina espírita tem todo esse arsenal para tocar no coração, provocar a mudança e “trazê-lo de volta para a vida”.
Quantas desencarnações acontecem por conta disso? A cada 40 segundos temos um suicídio no mundo. A cada 45 minutos, um suicídio no Brasil. Quantos filhos dependentes químicos que desencarnam entre 18 aos 23 precocemente! Esses espíritos vão voltar para a Terra. E esses pais também vão precisar de ajuda. Porque vão desencarnar amargurados, amanhã, cheios de culpa. É uma corrente. E a doutrina espírita tinha que estar trabalhando com isso há pelo menos 20 anos. Estamos atrasados!
Coordenação Regional Nordeste da Área de Atendimento Espiritual da Federação Espírita Brasileira - Sub-área Maranhão, Piauí e Ceará. Email: procaminhos@ gmail.com
(Publicado no Jornal Correio Fraterno - Edição 461 jan./fev. 2015)