O espiritismo e a teoria do conhecimento

Por Eliana Haddad 

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Acadêmico da Universidade Federal da Bahia, André Luiz Peixinho possui graduação em psicologia, medicina e filosofia. É mestre em medicina interna e doutor em educação, sendo atualmente professor titular da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública e professor associado da Faculdade de Medicina da Bahia. Peixinho é presidente da Federação Espírita da Bahia e tem sido presença de destaque em congressos espíritas, trazendo sempre em suas palestras um conteúdo diferenciado que assinala o importante papel do espiritismo na teoria do conhecimento. Segundo ele, ainda há muito a se descobrir e a se conhecer, e o caminho a ser trilhado depende do nosso empenho no autoconhecimento, através do qual precisamos desenvolver uma consciência clara da nossa natureza essencial como espíritos, criações divinas. Acompanhe-o na entrevista abaixo e saiba por que o espiritismo é a chave para a mudança do paradigma materialista.

Qual o papel do espiritismo no progresso das diversas áreas do saber?

A era moderna, que começou no período histórico conhecido como Renascença e influencia até hoje a organização social, trouxe-nos a diferenciação e a autonomia das esferas culturais:  ciência, filosofia, arte e religião. Na sua progressão, entretanto, por mais de um motivo, adotou como saber hegemônico a ciência, sendo esta centrada na substância material passível de investigação pelos cinco sentidos humanos e aparelhos derivados. Assim, constituiu uma cosmovisão materialista que vigora até hoje na civilização. Além disso, a separação entre as esferas culturais resultou em falta de contato, comunicação, especialização e perda do sentido de totalidade.

O espiritismo, conforme assevera Kardec, é o maior adversário do materialismo. Enquanto cosmovisão, propõe a tese de que a substância primordial do universo é o espírito que anima e transcende a vida material. Portanto, sem excluir a matéria, seus derivados e progressos, demonstra que a realidade é muito mais vasta do que podemos apreender com o nosso mundo sensorial. Assim, abre um vasto campo para a pesquisa da realidade, que inclui regiões ignoradas como o mundo espiritual. Por outro lado, a proposta espírita é de religação dos saberes sem a hegemonia científica da modernidade.

Como podemos analisar essa proposta de integração na produção do conhecimento?

 Encontramos na codificação textos que demonstram esta tese, como se pode depreender do capítulo “A aliança da ciência com a religião” em O evangelho segundo o espiritismo, da filosofia espiritualista estampada no frontispício de O livro dos espíritos e dos estudos de arte publicado em Obras póstumas. Posteriormente, Léon Denis reforçou a visão integradora do conhecimento espírita e anteviu um tempo em que “ciências, filosofias, religiões divididas hoje reunir-se-ão na luz e será então a vida, o esplendor do espírito, o reinado do conhecimento. Neste acordo magnífico, as ciências fornecerão a ordem e a precisão na ordem dos fatos; as filosofias, o rigor de suas deduções lógicas; a poesia, a irradiação das suas luzes e a magia das suas cores; a religião juntar-lhes-á as qualidades do sentimento e a noção da estética elevada”.  

De outra parte, o método de Kardec para a produção de conhecimento abriu caminho para uma parceria interexistencial dialógica bastante frutífera, de que a civilização ainda não se aproveitou adequadamente, em função do seu reducionismo materialista.

O conceito evolucionista espírita permite agregar todos os saberes; assim, as pequenas visões de mundo ou sistemas podem ser colocadas como compreensões parciais, num espectro de manifestações do ser espiritual que vai do átomo ao arcanjo, sem nada desprezar, identificando cada saber como um momento existencial evolutivo do indivíduo ou grupamento que o produz.

O espiritismo prega a fé raciocinada. Como analisar a fé e a razão no processo do conhecimento humano?

O contexto histórico em que nasceu o espiritismo era claramente contra a fé, pois a ela se atribuía os descaminhos da religião e suas ingerências políticas, além dos equívocos cosmológicos que a ciência progressivamente ia demonstrando. Kardec, entretanto, preferiu encontrar uma solução que valorizasse a fé, pois a entendia como instrumento da revelação e da comunhão transcendental e ao mesmo tempo colocou freios ao dogmatismo nascido do mau uso da fé, constituindo um crivo para suas produções: a razão. Daí decorre o seu aforismo:  “Fé verdadeira é aquela que encara a razão face a face em todas as épocas da humanidade”.

Os desenvolvimentos posteriores da gnosiologia espírita mostraram que nossas percepções evoluem e no estágio humano atual podemos contar com algumas faculdades, a saber: sensação, razão, intuição, sentimento, vontade e imaginação. Por outro lado, temos os estados diferenciados da consciência além da vigília, que nos permitem acessar outros níveis de realidade, a exemplo da vida onírica, dos transes, do devaneio, do êxtase, do uso da consciência supraliminar, do superconsciente etc...

A qual faculdade de conhecer pertence a experiência da fé?

O saber fideístico usualmente é atribuído à percepção intuitiva, agregada ao sentimento ou a estados de consciência além da vigília. Portanto, a fé não nasce no raciocínio lógico ou do experimento empírico. Mas seu conteúdo pode ser passível de verificação através da razão e do sensório. O conhecimento da reencarnação, por exemplo, foi inicialmente de origem fideística, ora revelado em estados de transe, ora intuído. Posteriormente, foi motivo de demonstrações filosóficas, a exemplo da lei dos contrários de Sócrates e da explicação da justiça divina para as diferenças humanas por Kardec. A seguir, passou a ser pesquisada e aceita por experimentos comprovados de regressão a vivências passadas e marcas de nascença. Assim, concluímos que nenhuma faculdade é capaz de perceber a totalidade da realidade.

Mas o que seria então intuição? O que ela pode conhecer? Como se desenvolve?

A intuição é uma faculdade psíquica que nos permite apreender a realidade focada sem passar por processos analíticos. Léon Denis a denomina sentido íntimo ou sentido espiritual que permite descobrir as verdades essenciais. Afirma ainda ser a faculdade de entendimento que se desenvolve no estudo silencioso e no recolhimento. A melhor comparação que conhecemos sob a forma de uma metáfora entre o método da razão e a intuição foi criada por Henri Bergson (1859-1941), filósofo intuicionista francês que tomou como exemplo o conhecimento do que é um banho de rio. A razão por sua natureza analítica precisaria de vários sujeitos pesquisadores especializados que estudariam as condições ambientais, os tomadores do banho de rio e suas impressões etc... E depois, juntos, fariam um relatório circunstanciado da pesquisa. A intuição se utilizaria apenas de um sujeito que tomasse o banho e já teria o conhecimento do que é o motivo da pesquisa. A razão estuda o fenômeno a partir de suas manifestações; a intuição experiencia o fenômeno diretamente e, por isso, é indispensável transportar o próprio eu com sua sensibilidade até o centro dos acontecimentos, tornando-se um com ele em perfeita comunhão. Assim, enquanto a razão divide para melhor estudar através da análise, a intuição procede por síntese. É claro que exige para funcionar uma maturação psíquica evolutiva que faz aparecer esta capacidade. Assim como na evolução a consciência sensorial foi ampliada com o surgimento da consciência racional analítica, o futuro evolutivo deverá tornar comum a consciência intuitivo-sintética.  

Que rede devemos jogar nesse mar de conhecimentos para pescarmos com maior sabedoria em tempos de tanta informação?

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Creio que o melhor caminho para lidar com o conhecimento disponível é estudarmos a nós mesmos, através das nossas diversas faculdades psíquicas, identificarmos nosso nível existencial evolutivo e nossas possibilidades futuras e selecionarmos no mundo as experiências, que nos auxiliam a progredir como espíritos em manifestação no mundo dos encarnados. Como já advertia Léon Denis, muita informação distrai a mente, impede-a de perceber o que lhe revela o sentido íntimo.

O aspecto filosófico do espiritismo não tem sido negligenciado pelos próprios espíritas?

O conhecimento espírita é uma proposta de revolução paradigmática evolucionária que pretende, em nossa compreensão, transcender a visão materialista, incluindo-a como um aspecto particular restrito do Cosmos. Seu potencial, entretanto, pela própria antecipação evolutiva que representa, não pode ainda ser devidamente explorado, pois não temos a massa crítica de pessoas que consigam vivê-lo na sua integralidade epistemológica. Por isso, entrevemos futuros desenvolvimentos das esferas culturais baseados nas noções estruturantes do espiritismo como a evolução, a palingênese, a interexistencialidade. Por enquanto, estamos na fase de aproveitamento do saber espírita já coligido para atender nossas demandas imediatas, relativas à liberação do sofrimento ou, pelo menos, à consolação.

Qual o papel do Evangelho para conhecermos uma realidade mais transcendente?

Numa abordagem evolutiva, o Evangelho é o nosso horizonte futuro mais distante; a mais elevada aspiração do ser, o zênite da sua evolução humana. Jesus é o modelo e guia para nos tornarmos espíritos puros, crísticos, revelando no mundo nossa natureza essencialmente divina. Viver o Evangelho é trans-humanizar-se, sendo perfeito como Deus o é, expressar uma amorosidade tão universalista que inclui os inimigos, renunciar a todo apego, a toda impermanência, dedicar-se a experienciar o reino dos céus e sua justiça como objetivo de vida e unificar-se em perfeita comunhão com Deus, superando toda separatividade. Assim pensadas, as lições evangélicas são o estímulo para a nossa realização plena ou estado de bem-aventurança.

Como espíritas, qual o grande trabalho que ainda nos aguarda?

O grande trabalho é agilizar o nosso processo evolutivo pessoal e coletivo. Para tanto, precisamos de uma dedicação profunda ao estudo espírita e sua aplicação na vida cotidiana. Precisamos desenvolver uma consciência clara da nossa natureza essencial como espírito, criação divina, perceber com nitidez a dinâmica da evolução em nós e na comunidade, utilizarmos da grande potência da alma, a vontade para agilizarmos nosso progresso até tornarmos nossa vida uma gravitação em torno de Deus. Ampliando nossos estados de consciência e elevando seus estágios evolutivos, conceberemos mundividências que hoje estão recônditas no universo à espera de seres que as identifiquem e delas se aproveitem.

(Publicado no jornal Correio Fraterno, edição 476, jul./ago2017).

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