“Minha boa amiga”
Por Adair Ribeiro*
Quando indagado se o espiritismo era uma religião, Allan Kardec disse que o laço estabelecido por uma religião deveria ser essencialmente moral, responsável por ligar os corações, identificar os pensamentos e as aspirações, e não questão de simples compromisso material que pudesse ser rompido à vontade.
Explicou Kardec que o efeito desse laço moral seria o de estabelecer entre as pessoas que ele une a fraternidade e a solidariedade, a indulgência e a benevolência mútuas. Para ele, seria justamente com base nessa comunhão de vistas e sentimentos que poderíamos dizer: a ’religião’ da amizade, a ’religião’ da família.
A aplicação prática por Kardec desse conceito pode ser encontrada em muitas cartas e textos dos diferentes acervos disponíveis no Projeto Allan Kardec da UFJF-MG. Neles verificamos, por exemplo, que ele se referia a sua esposa, Amélie Gabrielle Boudet, como “minha querida amiga” ou “minha boa amiga”.
Vale lembrar que, na França, em meados do século 19, a mulher tinha a sua presença restrita à maioria dos espaços públicos e com direitos civis reduzidos. Para acesso à universidade, o sistema cultural francês disponibilizava estabelecimentos de ensino quase exclusivamente aos rapazes, preparando-os para as profissões liberais, enquanto as jovens eram educadas para se tornarem boas donas de casa, com aulas de costura, música e canto.
Com o casal Kardec era diferente. A comunhão de pensamentos também sobre o papel da mulher já era perceptível entre eles nos anos 1840, afinal Amélie Boudet esteve ao lado do marido, na Escola de Comércio e Pensionato para meninas, preparando jovens para que pudessem trabalhar em diferentes profissões, estimulando-as a continuarem seus estudos.
A documentação histórica nos mostra Amélie secundando e auxiliando o esposo a todo momento durante a construção e divulgação do corpo doutrinário espírita. Nas viagens de Kardec, ela assumiu papel central no gerenciamento dos negócios particulares da família e no trato com os assuntos ligados ao espiritismo. Após a desencarnação do marido, assumiu função central para a continuidade do espiritismo. Foi ela a responsável pela fundação da Sociedade Anônima, como maior acionista, dando sequência à publicação das obras espíritas. Também ocupou importante cargo no Conselho Fiscal da nova entidade, fiscalizando suas operações e emitindo relatórios fiscais e contábeis, além de participar do Comitê de Leitura, órgão criado para autorizar o conteúdo do que seria publicado na Revista Espírita e escolhendo os livros que seriam editados pela sociedade.
A “boa amiga” esteve envolvida com assuntos ligados ao espiritismo até desencarnar, ocupando posição de destaque no movimento espírita francês. Documentos atestam sua lucidez e o equilíbrio de sua razão no final de sua vida corporal.
Tudo indica ter sido esse mesmo ‘laço moral’, empregado para conceituar a religião como união de propósitos, que também ligou o coração de Amélie ao de Kardec e ao espiritismo, uma mulher à frente de seu tempo e que merece o devido reconhecimento e destacado lugar na historiografia do espiritismo.
*Adair Ribeiro Jr. é curador do Museu AKOL – Allan Kardec.online.