A bagagem avariada de EÇA DE QUEIROZ

Por Júlio César de Sá Roriz

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Em 1906, através da mediunidade do português Fernando de Lacerda1, o escritor Eça de Queiroz (1845 - 1900) faz um balanço sobre o que sentiu ao enfrentar a realidade da vida espiritual, fato que sempre levara com muita ironia e sarcasmo. Ele diz:

"Quando atravessamos a ponte de Caronte, ao encontrarmo-nos do outro lado, somos irresistivelmente levados a balancear toda a nossa obra feita na Terra. Ao balanceá-la vi que estava pobre. Encontrei: riso 40 por cento; ironia 50; amargura 5; dor 4; de todos os sentimentos 1. Era um escritor falido. O riso e a ironia são artigos a que por aqui se dá muito pouco apreço".

Quando encarnado, Eça de Queiroz escreveu um artigo chamado "Espiritismo", publicado no seu livro Notas contemporâneas em que conta que foi à redação da Revista Espírita, em Paris, acompanhado de um amigo brasileiro, sr. E. P. que era, no dizer de Eça, do espiritismo, da teosofia e da magia, mais por diletantismo intelectual do que realmente por convicção ou prática.

Eça estranhou muito a aparência dos livros, pois esperava encontrá-los sóbrios e temerosos. Eram livros graciosos e leves, simples como tudo ali. E enquanto o brasileiro fazia duas assinaturas da Revista, Eça exclamava irônico: "Céus, quão prodigiosamente se tem escrito sobre o espiritismo!... Tudo versando sobre nada”!

Enquanto o secretário oferecia endereços seguros para se assistir a uma boa sessão das famosas mesas girantes, Eça apreciava o busto de Allan Kardec junto à lareira. Perto dessa, um homem se debruçava aquecendo as mãos, que Eça via-o pelas costas: cabelos brancos, trajando um macfarlane que lhe caía dos ombros até o chão. E.P. e o secretário foram se aproximando, trocando impressões em voz alta: "Experimentaram Madame Ravier?”

— Sim, mas ela evoca os espíritos com um extremo e desagradável tom fanhoso e choroso.

— Ah! se cá tivéssemos Samperini!

— Quem?

— Ora essa, é o intermediário italiano! Fez milagres enormes. Todos comprovados, verificados por fisiologistas e por cirurgiões. A Escola de Medicina está espantada... Mas há também o Slade...

Ao ser pronunciado o nome de Slade, o homem do macfarlane disse compenetrado:

— Slade saiu ontem de Chicago para Nova Iorque.

Dito isto, o estranho homem fixou o olhar no amigo de Eça, que a esta altura demonstrava algum medo, e disse: 

— Estou reconhecendo em si um médium e um vidente. O senhor pode, se à faculdade juntar a vontade, pressentir o futuro, avistar o invisível. Mas essa força não lhe pertence propriamente, por ser em si inata e imanente: é-lhe comunicada por um espírito que o acompanha. É a irmã de seu pai!

Eça de Queiroz, diante de tamanha revelação, solicita, quase infantil, que o médium observe se há algum espírito perto dele. Ante a resposta negativa, gracejou à sua maneira: "Caminho na vida, pois, desacompanhado, sem inspiração transcendente, sem egéria (conselheira), sem voz socrática".

O médium, sempre muito sério, respondeu dizendo: 

— Às vezes, somos seguidos por espíritos e não lhes sentimos a influência. É necessário que a alma se afine, adquira uma tal superacuidade, um tão fino poder de penetrar no invisível, de se consubstanciar com ele, que os espíritos se lhe tornem visíveis, audíveis e compreensíveis, como as formas são para os sentidos.

Depois de ouvirem o roteiro das viagens do médium, que propagando a doutrina espírita pela índia, Rússia, Nova Iorque, Constantinopla, preparava-se para mais uma turnê, gracejam:

— A minha alma, disse E.P., segundo afirma aquele homem diabólico, jaz enterrada sob densa camada de materialidade. (...) Mas ela está lá, muito quieta e feliz. É uma coisa perigosa uma alma assim solta pelos ares, em companhia de espíritos... Não lhe parece, Eça?

— Também me parece — respondeu o português risonho.

Entretanto o Eça zombador, brincalhão e irônico enfrentaria a alfândega da espiritualidade, como todos os mortais. Conta que quando sentiu a morte a rondar-lhe os passos tentou um arremedo de arrependimento: 

"... Eu procurava levantar as camadas endurecidas que escondiam aquelas curiosas experiências a que havia assistido e queria ver se meu espírito doente, no corpo doente, podia prever a verdade do singular mistério da morte. Mas recuei, mais uma vez, ante a seriedade de uma coisa para que me confessava ser fraco."

Ele relata esse encontro, dizendo que ouviu uma voz que dizia forte: "Vamos, blasé, dize lá o que fizeste. Por onde andaste com esse fenomenal riso de parvo? Que bagagem dás ao manifesto, ao passar pela aduana celeste?"

O grande autor desfilou suas obras imortais: O crime da estrada de Cintra, O crime do padre Amaro, O primo Basílio e outras. Mas a aduana espiritual foi inflexível: "Homem, pare lá! Será mais verdadeiro dizer que não traz nada de útil. Bagagem avariada!... Não lhe auguro nada de bom aí mais para diante".

Eis o grande Eça de Queiroz, nos umbrais da espiritualidade, vazio de obras e cheio de obras. Foi triste seu comentário:

 "... Eu, grande na minha terra, literato laureado, assim tão rudemente tratado, via serem recebidos com todo carinho e aceitação, bandos sucessivos de miseráveis (...)  Companheiros inseparáveis das lágrimas e da fome que passaram todo o tempo como párias pacíficos, louvando ao Deus que lhes mandava as suas privações e os seus tormentos sem um grito de revolta, sem uma blasfêmia de maldição. E passei então a compreender aquelas lindas frases do Evangelho: "Os últimos serão os primeiros” e "Deixai vir a mim os pequeninos e os humildes, porque deles é o reino dos céus”.

Bibliografia:

1 Eça de Queiroz, póstumo, Fernando de Lacerda, FEB.

 (Acervo do Correio Fraterno, setembro de 1980)