Privações podem ter levado Flammarion a Kardec
Por Aristides Coelho Neto*
O corpo cai, a alma permanece e retorna ao espaço. [...] A imortalidade é a luz da vida, como esse brilhante Sol é a luz da Natureza. – Camille Flammarion (em seu discurso sobre o túmulo de Allan Kardec)
Camille Flammarion foi designado para o discurso de despedida a Kardec quando de seu retorno à pátria espiritual. Era 1869. Mestre Rivail desencarnava antes de completar 65 anos. Camille tinha 27, rapaz ainda, porém cheio de méritos, e de excelente bagagem cultural.
É bem provável Flammarion ter tomado contato com O Livro dos Espíritos aos 15 anos de idade, em 1857. O livro representava um marco na história da humanidade, trazendo a lume pela primeira vez o nome Allan Kardec e a palavra Espiritismo. E mudaria certamente os rumos do pensamento de então. Como se sabe, Allan Kardec era, no princípio, apenas um pseudônimo obscuro do mestre Hippolyte Léon Denizard Rivail, este, sim, nome consagrado como cientista e pedagogo. Por que aquele jovem se interessaria pela obra? Sem dúvida pelo impacto que tal publicação gerou nos meios culturais da França e de tantos outros países. Camille, que viria a se tornar um astrônomo de renome, era intelectual que começara cedo... Esse envolvimento com ciência e cultura fazia parte da sua índole perquiridora — aprendeu a ler aos 4 anos de idade. Aos 5, além de escrever, dominava os rudimentos da gramática e aritmética.
Flammarion nasceu aos 26 de fevereiro de 1842 em Montigny-Le-Roy, na França. Filho de agricultores humildes, desde o momento em que passou a frequentar a escola foi sempre o primeiro aluno. Na sua formação católica, alguns padres marcaram presença, dentre eles um que lhe falou da beleza da ciência e da grandeza da Astronomia. Prosseguiu seus estudos no pequeno seminário de Langres.
Sua infância foi permeada de episódios alegres e gratificantes, mas também de experiências amargas. O ano de 1854 lhe seria marcante. A cólera iria exterminar um quinto da população de Montigny. Flammarion, aos 12 anos, perde seus avós paternos, e seu pai adoece. A mãe, extenuada, mal tem forças para tratar do marido. E sua família ainda perde todos os bens materiais. Em maio de 1854, seus pais partiram para Paris, na tentativa de um recomeço naquela cidade, uma metrópole de mais de 1,5 milhão de habitantes.
Por lá ficaram, tentando sobreviver, porém sem condições de sustentar o filho Flammarion em Montigny. Este sobreviveria de favores de parentes e do cura de Montigny. Em agosto de 1856, Flammarion segue para Paris.
Trabalhava muito. Nem sempre com as coisas das quais gostava. Lia e escrevia muito! Aliás, começara a escrever muito cedo. Era comum Flammarion aproveitar a luz do luar para tal, pois em muitas ocasiões nem vela possuía. Dormia pouco. Em meio às necessidades por que passava, a contemplação da natureza o comovia significativamente. Admirava-se com a grandeza do Universo, e no seu afã de saber mais sobre os astros do céu, improvisava lentes e tubos de papelão, simulando microscópio e rudimentares telescópios, atraído pelo espetáculo do céu.
Aos 15 anos, ei-lo envolto nas dificuldades com subsistência, morando e se alimentando mal, em trabalho não-gratificante. Mas sua perseverança e seus sonhos nunca arrefeceram. Assistia todas as noites aos cursos gratuitos da Associação Politécnica. E continuava elaborando seus escritos.
Tantas privações podem tê-lo levado a Rivail à época. O insigne professor, desprendido quanto a questões de dinheiro e coisas materiais, revelava verdadeira paixão pelo ensino. Aliado a isso, seu amor ao bem levou-o a dar aulas gratuitas. Se Rivail, durante seis anos, ministrou aulas de Química, Física, Anatomia, Astronomia e outras matérias, por que não teria sido esse o motivo do encontro entre o futuro Allan Kardec e o futuro astrônomo Camille Flammarion? o jovem que mais tarde se converteria também num baluarte do Espiritismo, “sempre coerente com suas convicções inabaláveis, um verdadeiro idealista e inovador”, segundo Gabriel Delanne.
Se até Astronomia o professor Rivail dominava, imaginem quantas conversas fraternas não devem ter acontecido entre Camille e Rivail em torno dessa área. Abordagem nova, agora visão clara e racional de civilizações diversas, enchendo de vida aqueles instigantes astros que brilhavam nos céus de Paris e do planeta Terra. Rivail também dormia pouco, como Flammarion, o que é próprio de homens que julgam que seus planos e projetos não cabem no espaço regulamentar de um dia.
Com 16 anos, Flammarion já tinha prontos os manuscritos de seu primeiro livro. E começam a abrir-se as portas para o rapaz sedento de saber. Ingressando no bacharelado em Ciências e Letras, volta de fato suas atenções para Astronomia. Ao deixar, aos 20 anos, o Observatório de Paris, passa a dedicar-se com mais afinco ainda a seus estudos, seguindo-se então muitos sucessos. Sua jornada foi um suceder de prêmios e de reconhecimento por parte do mundo estudioso e intelectual da época. No decorrer de sua existência na Terra produziu mais de cinquenta obras, a maioria delas impregnada dos conceitos que a doutrina codificada por Kardec lhe proporcionou.
Seria Camille Flammarion jovem demais para, em meio a tantas realizações e privações, ter-se tornado ainda espírita convicto – amigo pessoal e dedicado de Kardec –, escritor renomado, reconhecido no meio científico por seu arrojo e capacidade de inovação? Ora, prezado leitor, os grandes espíritos não podem perder tempo...
Títulos espíritas de Camille Flammarion: A morte e o seu mistério, Estela, Narrações do Infinito, Urânia, O desconhecido e os problemas psíquicos, As casas mal-assombradas, Deus na natureza, O fim do mundo.
* Arquiteto, professor, articulista espírita – www.aristidescoelho.com.br
(Publicado no jornal Correio Fraterno - edição 427)