O brasileiro que conheceu Allan Kardec

Por Luciano Klein*

“Paris, 31 de janeiro de 1863

 Amigo Gonçalves Dias:

Na segunda-feira da semana passada remeti ao Porto Alegre os livros que me encomendou; não sei se já chegaram, bem como um número da Revista, que o Allan Kardec informou-me ter enviado no princípio deste mês. (...)Um abraço do seu (amigo) do coração Borja”.


O trecho da carta acima transcrita, gentilmente cedida pelo jornalista Ubiratan Machado, não nos deixa a menor dúvida acerca da existência do encontro entre um brasileiro identificado apenas por Borja e Allan Kardec. Em seu livro Os intelectuais e o espiritismo, Ubiratan Machado, ao discorrer sobre as experiências mediúnicas realizadas por Manoel de Araújo Porto Alegre (1806-1879), futuro Barão de Santo Ângelo, menciona que, em 1863, Kardec teria enviado a Araújo Porto Alegre um número da Revista Espírita. Afirma que Porto Alegre, diplomata, exercendo o cargo de cônsul do Brasil na Prússia e Saxônia, pode ter sido apresentado ao codificador do espiritismo, através de um brasileiro de nome Borja, então residente em Paris, resultando daí o seu interesse pelo espiritismo. Ubiratan não traz informação alguma sobre esse misterioso personagem. Divulga, porém, trecho de uma carta de Borja, datada em 31 de janeiro de 1863 e dirigida a Gonçalves Dias, o grande poeta maranhense, na qual comenta sobre uma remessa de livros que havia encaminhado ao diplomata brasileiro.

Diante desta informação, tentamos descobrir algo sobre esse brasileiro, conhecido apenas como Borja, que tivera o ensejo de conhecer o codificador e privar, quem sabe, de sua amizade. As dificuldades eram imensas devido à insuficiência de dados. Contudo, há alguns anos ‘acidentalmente’ desvendamos esse quase insolúvel mistério. 

Movido pela curiosidade

Pesquisávamos na biblioteca do Colégio Militar de Fortaleza, onde lecionamos, sobre a comissão científica de exploração do império que esteve no Ceará entre 1859 e o início da década seguinte. Quando folheávamos um velho livro, coletânea das correspondências dirigidas ao senador Tomaz Pompeu de Souza Brasil (1818-1877), fundador do Liceu do Ceará e professor do jovem Adolfo Bezerra de Menezes, entre 1847 e 1850, deparamo-nos com cinco cartas remetidas a ele por alguém chamado Borja. Esse homem esteve no Ceará estudando seu clima e a geografia, como membro da comissão científica, quando se fez amigo do senador. Numa de suas cartas enviada de Paris, esse Borja fala, para nossa estupefação, da amizade que nutria por Manoel de Araújo Porto Alegre e Gonçalves Dias. 

Os detalhes das demais correspondências eram categóricos para dirimir qualquer dúvida de que se tratava do brasileiro que conheceu Kardec. A partir desta novidade, saímos a campo a fim de colher subsídios para compor sua biografia.

O brasileiro Borja

Tratava-se de Agostinho Victor de Borja Castro, que assinava suas cartas como Victor de Borja ou simplesmente Borja. Cursou, em 1850, o primeiro ano da Academia de Marinha, e depois se transferiu para a Escola Central, onde fez o curso de matemáticas. Para a obtenção do grau de doutor em ciências matemáticas defendeu, em 1861, a tese intitulada “O princípio das velocidades virtuais no equilíbrio dos sistemas”.

Foi professor do curso de engenharia civil da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, 1872, foi membro do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura e sócio da seção zoológica da Associação Brasileira de Aclimatação. Quando integrou a comissão científica que veio ao Ceará, o poeta Antônio Gonçalves Dias era chefe da seção etnográfica e narrativa de viagem. 

 O conselheiro Borja Castro viajava com certa frequência à Europa. Sua desencarnação, aliás, aconteceu em Paris, em 20 de outubro de 1893. 

Elucubrações

Diante da correspondência do conselheiro Borja ao poeta maranhense, podemos fazer algumas conjecturas. Primeiramente, ao utilizar o artigo definido ‘o’ antes do pseudônimo do codificador, presume-se que ele privava de certa intimidade com Kardec. Segundo, podemos ponderar sobre a possível familiaridade que o grande Gonçalves Dias tinha, senão com as ideias espíritas, talvez com o próprio Allan Kardec. Além disso, não seria de estranhar o interesse do poeta maranhense pelo assunto, tendo em vista ser ele profundo estudioso de etnografia e por ter estado na França, mais de uma vez, inclusive com o próprio Borja, na fase preparativa dos trabalhos da comissão científica de exploração, entre 1857 e 1858. E ainda, posteriormente, em Dresde (Alemanha) ter dividido com Borja o mesmo hotel no qual se estabeleceram por algum tempo.


Referências bibliográficas

1 Ubiratan Machado. Os intelectuais e o espiritismo. Ed. Lachâtre, 1996.

2 José Aurélio Câmara. Correspondência do Senador Pompeu. Ed. Minerva, 1960.

O Paiz, de 10 e 18 de novembro de 1893.

4 Anais da Biblioteca Nacional, v. 91, 1971, Rio de Janeiro, 1972, p. 281.

Historiador, escritor e presidente da Federação Espírita do Estado do Ceará.*