Espíritas no censo de 2022

Por Marco Milani*

Allan Kardec, com a legítima intenção de conhecer como estava a difusão das ideias espíritas no mundo no final de 1868, fez uma estimativa superficial sobre a quantidade e o perfil das pessoas que aceitavam os princípios doutrinários. Por não possuir dados censitários, o levantamento foi baseado em cerca de 10 mil observações obtidas da lista de assinantes da Revista Espírita (RE) e das correspondências recebidas de vários países.

Estimativa de adesão

Publicado na edição de janeiro de 1869 da RE, o artigo “Estatística do espiritismo” apontou que a França reunia a maior quantidade de adeptos, com cerca de 600 mil pessoas, representando 1,6% da população francesa, taxa bastante expressiva, considerando-se que o surgimento do espiritismo havia ocorrido há pouco mais de uma década. Eram os espíritas confessos e os que aceitavam os princípios do espiritismo ainda que parcialmente.

O restante da Europa reunia mais 400 mil adeptos, com maior participação na Itália, Espanha, Rússia, Alemanha, Bélgica, Inglaterra, Suécia, Dinamarca, Grécia e Suíça. Em todo o planeta, considerando os simpatizantes, Kardec estimou haver de 6 a 7 milhões de adeptos: 70% homens entre 20 e 30 anos; 60% tinham um perfil socioeconômico considerado médio e 50% possuíam um nível educacional classificado por Kardec como ‘instrução cuidada’ e instrução superior. Tenentes, médicos homeopatas e engenheiros eram as profissões mais frequentes.

Uma característica importante que se deve destacar nessa estimativa é a própria classificação geral de adepto, uma vez que o termo foi aplicado a qualquer simpatizante que conhecesse os fundamentos do espiritismo, ainda que professasse diferentes vínculos religiosos: 50% eram de católicos romanos não ligados aos respectivos dogmas (livres-pensadores), 10% de católicos romanos ligados aos dogmas. Os demais eram de católicos gregos (15%), judeus (10%), protestantes liberais (10%), protestantes ortodoxos (3%) e muçulmanos (2%).

Nota-se que na Europa houve uma maior disseminação das ideias espíritas entre os livres-pensadores de países com forte presença católica (França, Itália e Espanha), apesar de também registrarem-se participações nos países anglo-saxônicos e germânicos. 

O sentido filosófico 

Kardec nunca apresentou o espiritismo como uma religião nos mesmos moldes das instituições tradicionais, mas declarou que se tratava de uma religião em sentido filosófico. A Igreja Católica, porém, sempre viu o espiritismo muito mais ameaçador que um concorrente por fiéis, uma poderosa filosofia que confrontava seus princípios com razão e fatos. No diálogo com o padre, apresentado na obra O que é o espiritismo, Kardec rechaça qualquer comparação com as religiões tradicionais e destaca a liberdade de pensamento e a fé raciocinada como pilares doutrinários capazes de superar posições engessadas que sustentavam o dogmatismo ilógico. Isso justificaria, inclusive, o motivo pelo qual os católicos não presos aos dogmas seriam em maior número no levantamento efetuado, caracterizando uma condição de transição mais simples para esse despertar racional.

Espiritismo religião 

No Brasil, o antagonismo católico sempre marcou a expansão do espiritismo e, desde os primeiros grupos espíritas, formados no final do século 19, o debate religioso fez parte da disseminação das ideias doutrinárias.

Diversos trabalhos de pesquisa histórica procuraram remontar a dinâmica do espiritismo no contexto brasileiro, procurando elencar variáveis que pudessem caracterizar o perfil do atual movimento espírita. 

Há alguns aspectos antropológicos e sociológicos que auxiliam na compreensão de como o espiritismo passou a ser visto como uma religião constituída pelo público em geral, inclusive para a sua própria legitimação em um ambiente juridicamente hostil. Hoje, para parcela significativa dos adeptos, o espiritismo é classificado como religião.

Identificação no censo demográfico

Em 1990, pela primeira vez, o espiritismo apareceu como um grupo religioso no recenseamento oficial, quando foram agrupadas diferentes denominações religiosas que abraçavam práticas mediúnicas. Devido às solicitações de seus representantes para um maior detalhamento, no censo de 1980 foram especificados alguns grupos, como o espírita ‘kardecista’. Já nos censos de 2000 e 2010, o grupo espírita foi tratado sem adjetivações, diferenciando-se de denominações de matriz afrobrasileiras, como umbanda e candomblé.

Para o censo de 2022, a coleta de dados está sendo realizada servindo-se de dois tipos de questionário, um completo, com 77 perguntas, e um básico, com 26 questões e o item ‘religião’ consta somente do questionário completo, que será respondido, segundo o IBGE, por somente 10% dos domicílios visitados. 

Independentemente de se considerar o espiritismo religião ou não, ao se autodeclarar ‘espírita’ no item religião neste recenseamento, está-se colaborando diretamente para que haja um dimensionamento mais realista do espiritismo no Brasil, possibilitando maior assertividade nas análises demográficas. 

*Diretor do departamento de doutrina da USE- SP. 

 Histoire démographique de la France. https://fr.wikipedia.org/wiki/Histoire_d%C3%A9mographique_de_la_France

2-https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/22827-censo-2020-censo4.html