A interpretação do espiritismo sobre Jesus e os textos bíblicos
Por Eliana Haddad
Daniel Salomão Silva nasceu em Juiz de Fora, MG, tem formação em engenharia eletrônica pelo Instituto Militar de Engenharia, no Rio de Janeiro, e doutorado em ciência da religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
Coautor dos livros Jesus segundo o espiritismo e Diálogos espíritas (Ed. Primavera), Daniel é pesquisador dos textos bíblicos, dos cristianismos originários e da mediunidade. Certa vez, viu uma revista em quadrinhos, em mangá, que narrava a história de Jesus e, no episódio dos vendilhões do templo, em que Jesus aparecia como um samurai, de capuz e com dois chicotes na mão, lembrou-se da diversidade de interpretações e expectativas sobre sua figura.
Nessa entrevista, Daniel reflete sobre como o espiritismo compreende Jesus em suas obras, apresentando a essência da mensagem cristã, comentada e interpretada por Allan Kardec e pelos espíritos, destacadamente em O evangelho segundo o espiritismo. Ele chama a atenção para o fato de que o texto bíblico é alvo da atenção de Allan Kardec também em outros livros, mas analisado de forma crítica, não religiosa, seguindo a tendência das leituras mais liberais do século 19.
Acompanhe.
Qual é a ideia espírita de Jesus?
Jesus é a figura central do espiritismo. Em vários trechos da codificação, bem como das obras subsidiárias espíritas, encontramos referências sobre a grandeza de Jesus e de sua mensagem, as quais buscamos reunir em nossa obra Jesus segundo o espiritismo.¹ Partindo apenas da famosa referência em O livro dos espíritos, temos na questão 625 a informação de que Jesus é o “tipo mais perfeito que Deus já ofereceu ao homem para lhe servir de guia e modelo”. Tendo sido criado por Deus como nós, percorreu em outros tempos e orbes a etapa evolutiva na qual ainda estamos inseridos, já tendo conquistado a maturidade intelecto-moral que lhe permite nos conduzir na mesma direção. Para isso, nos deixou orientações claras, bem exemplificadas nos Evangelhos e desenvolvidas em O evangelho segundo o espiritismo. Seguindo esse “modelo”, seremos felizes.
Por que as falas de Jesus são interpretadas por líderes religiosos de forma diferente? Isso não cria desconfiança com relação à essência da mensagem?
Se compreendermos a caridade como essência das falas de Jesus, nenhum ponto de divergência será fonte de desconfiança.
Sem propor nenhum relativismo, mas admitindo que há uma interpretação correta para cada fala de Jesus, escolhemos as explicações espíritas porque as julgamos mais coerentes e mais próximas da verdade. De forma semelhante pensam os não espíritas, religiosos ou não. Todavia, as interpretações dos textos sagrados também estão condicionadas às condições intelecto-morais de seus leitores e às suas intenções, bem como à época e à cultura em que são concebidas. Nas diversas tradições religiosas, porém, há aqueles que conseguem absorver sua essência, ultrapassando quaisquer condicionamentos e transformando suas vidas em modelos de conduta. Em sua jornada, Madre Teresa de Calcutá foi modelo de caridade. Da mesma forma agiu Chico Xavier. Embora discordassem em outros preceitos religiosos, entenderam profundamente a essência do Evangelho, pois que a viveram.
Como a humanidade lidou com os textos bíblicos ao longo da História?
Leituras alegóricas e literais, ingênuas e desconfiadas,² têm convivido desde a produção desses textos. Compreensões radicalmente literais ainda estão presentes em algumas tradições cristãs, enquanto outras já se abrem a leituras mais liberais e científicas, como o espiritismo. Entre os materialistas, encontramos posturas que vão do desprezo à consideração do texto bíblico como importante registro cultural ou literário.
É pretensão nossa dizer que os princípios espíritas nos levam ao verdadeiro sentido dos textos bíblicos?
Como reconhece Kardec, “não existe uma única seita que não pretenda ter o privilégio da verdade”.³ Contudo, se alguns têm certeza de já terem atingido o verdadeiro sentido do texto bíblico, outros reconhecem que estão caminhando em sua direção. Esse é o nosso caso. Embora Kardec afirme que a chave que nos faculta compreendê-lo esteja “completa no espiritismo”,⁴ em outros momentos reconhece sua progressividade, logo sua atual incompletude.⁵ Por exemplo, no que se refere a Deus e à criação, Kardec e os espíritos alertam sobre nossa compreensão ainda limitada de um dos assuntos centrais dos textos bíblicos.⁶ Mas chegaremos lá.
Qual deveria ser a visão dos espíritas sobre o texto bíblico? Qual a nossa hermenêutica?
A hermenêutica kardequiana, que deve ser a base para a compreensão espírita, parte de certa confiança na metodologia histórico-crítica, tratando a exegese bíblica como importante para nossa aproximação do sentido original texto. Contudo, admite incongruências e anacronismos no texto bíblico e, assumidamente, seleciona o que é válido ou não a partir dos pressupostos espíritas, como a mediunidade e a reencarnação, e científicos, como conclusões da astronomia e da geologia de sua época. Logo, não tem compromisso radical com episódios históricos, mas com a grandeza ímpar da mensagem de Jesus, evidente nos evangelhos. Nesse sentido, adota também uma hermenêutica de cunho ético, ou seja, tem por ponto de partida a validade indiscutível da moral de Jesus como a compreende o espiritismo: o que se alinha a ela é aceito, o que se desvia dela merece desconfiança. Logo, submete a exegese bíblica aos preceitos espíritas: quando as conclusões exegéticas discordam deles, investiga problemas de tradução, interpolação, redação ou interpretação.⁷
Nessa direção, ao retirar a “sobrenaturalidade” das ações e da própria condição extraordinária de Jesus, não vê conflito entre o Jesus-histórico e o Jesus das religiões, o “Cristo da fé”. Por exemplo, sempre de forma crítica, Kardec levanta hipóteses para os ditos milagres a partir dos preceitos espíritas, ou até mesmo nega a ocorrência de alguns, atribuindo seus registros à ignorância ou má interpretação dos apóstolos.⁸ O espiritismo, buscando satisfazer as exigências da razão, apresenta um Jesus mais próximo de nós.
Kardec tem uma postura analítica em relação às falas de Jesus. Emmanuel, por exemplo, teria agido da mesma forma ao comentar passagens evangélicas?
Emmanuel, em sua vasta obra através da mediunidade de Chico Xavier, trabalhou o evangelho de múltiplas formas. Destacamos aqui três, que entendemos como perfeitamente alinhadas à postura de Kardec. Em alguns momentos, como na obra O consolador, propõe pequenas exegeses do texto bíblico; em outros, como na fantástica coleção Fonte Viva, extrapola os possíveis sentidos originais e contextos, convidando-nos à aplicação cotidiana do Evangelho; por fim, em alguns de seus romances, como Paulo e Estêvão, dialoga com os registros históricos e bíblicos, buscando ampliar nossos conhecimentos sobre o cristianismo nascente. Em todos os casos, destaca a ética cristã como mais importante que quaisquer outras questões bíblicas.
Como podemos analisar a presença de expressões pouco afeitas aos princípios espíritas em O evangelho segundo o espiritismo, como “castigo”, “mãos de Deus” etc.?
Ao questionar sobre o motivo de os espíritos elevados responderem a pessoas sérias “a respeito do inferno e do purgatório, segundo a ideia que deles fazemos vulgarmente”, Kardec recebeu deles a informação de que falam “numa linguagem que possa ser compreendida pelas pessoas que os interrogam”, afinal não querem chocá-las ou ferir suas convicções.⁹ Jesus também agiu assim ao expor sua mensagem, emoldurada pelas tradições judaicas de sua época.¹⁰
Nessa direção, pensamos que esses espíritos partiram de expressões religiosas comuns à época, oriundas do vocabulário católico e protestante europeu, com a intenção de se fazerem bem compreendidos e dialogar com as crenças já estabelecidas. Contudo, nunca deixaram de bem explicar seus sentidos.¹¹
Como os espíritas devem lidar com as diversas interpretações do cristianismo?
Urgente é o diálogo inter-religioso e a aproximação das religiões naquilo que têm em comum. A despeito das diferenças interpretativas, o espiritismo se abre às demais tradições religiosas desde seu estabelecimento teórico, quando admite a caridade, e não a confissão religiosa, como única condição de “salvação”.¹² Ademais, para Kardec, “o espiritismo é o mais poderoso auxiliar das religiões”,¹³ enquanto confirmador de suas bases, como, por exemplo, a imortalidade da alma; e enquanto promotor da caridade, tanto em seu aspecto material, quanto espiritual.
Quanto às diferenças de interpretação, comentamos anteriormente sobre sua dependência de condições intelecto-morais, intenções, épocas e culturas. Partindo disso, somos convidados a ver compreensivamente os demais religiosos como também em tentativa de entender Deus e a realidade espiritual. Assim, ao negar qualquer proselitismo radical,¹⁴ o espiritismo revive e inaugura um conjunto de ideias que propõe uma revisão de certos dogmas e crenças das demais religiões, mas que serão aceitas ou não.
Além disso, se escolhemos as respostas espíritas por nos serem mais coerentes e próximas da verdade, não temos a pretensão de entender mais que os demais religiosos em todos os assuntos, nem de estar em condição evolutiva superior. Pelo menos quanto às tradições cristãs, judaicas e islâmicas, nossos pontos de concordância são muito maiores que as diferenças.
Nesse sentido, levando em conta sua condição minoritária, os espíritas agirão efetivamente pela melhoria da sociedade se em parceria com outros religiosos (ou não), na promoção do bem e no combate ao materialismo. De forma concreta, procuremos igrejas, mesquitas, terreiros e templos de todos os tipos e, sem abrir mão de nossos preceitos, abramo-nos ao trabalho conjunto a partir do que é comum.
¹ Ed. Primavera.
² Daniel Salomão. A hermenêutica bíblica espírita. In: 160 anos de O evangelho segundo o espiritismo. CCDPE-ECM.
³ O evangelho segundo o espiritismo. c. 15.
⁴ O evangelho segundo o espiritismo (int.) e O livro dos espíritos. q. 628.
⁵ A gênese. c. 1.
⁶ O livro dos espíritos, q. 3 e 11.
⁷ O evangelho segundo o espiritismo., c. 14, 19, 23.
⁸ A gênese, c. 15.
⁹ O livro dos espíritos, q. 1014.
¹⁰ O céu e o inferno, c.4, 5, 6 e O evangelho segundo o espiritismo, c. 1.
¹¹ O livro dos espíritos, q. 627.
¹² O evangelho segundo o espiritismo, c. 15.
¹³ O livro dos espíritos, q. 148.
¹⁴ O que é o espiritismo, c. 1.