O desdobramento de Lota

Por Gabriel Delanne

Foi em 1858. Falava-se ainda na colônia francesa de uma singular aparição, havida alguns anos antes. Uma família alsaciana, composta de marido, mulher e uma filha menor, estava de vela para o Rio de Janeiro, onde ia se encontrar com patrícios ali estabelecidos.

A travessia foi longa. A mulher adoeceu e por falta de cuidados e de alimentação conveniente, sucumbiu antes da chegada. No dia em que morreu, caiu em síncope, ficou muito tempo nesse estado e, quando recuperou os sentidos, disse ao marido, que estava ao seu lado:

— Morro contente, porque sei agora que está assegurada a sorte de nossa filha. Venho do Rio de Janeiro, onde encontrei a rua e a casa de nosso amigo Fritz, o carpinteiro. Ele estava no limiar da porta. Apresentei-lhe a pequena e estou certa de que, à tua chegada, ele a reconhecerá e a tomará a seu cuidado. 

 Alguns instantes depois ela expirava. O marido surpreendeu-se com a narrativa, sem lhe dar, entretanto, importância.

No mesmo dia e à mesma hora, Fritz, o carpinteiro — o citado alsaciano — encontrava-se à soleira da porta de sua casa, no Rio de Janeiro, quando acreditou que vira passar na rua uma de suas compatriotas, tendo nos braços uma menina. Ela o encarava com ar suplicante e parecia apresentar-lhe a criança. A figura era de grande magreza e lembrava os traços de Lota, a mulher do seu amigo e compatriota Schmidt. A expressão do rosto, a singularidade do andar, que se diria mais de fantasma que da realidade, impressionaram vivamente Fritz. 

Querendo assegurar-se de que não estava sendo vítima de uma ilusão, chamou um dos seus operários, que era também alsaciano e da mesma localidade.

— Olha – disse lhe – não vês passar uma mulher na rua, com uma filha nos braços, e não parece Lota, a mulher do nosso patrício Schmidt?

— Não sei dizer; não distingo bem – respondeu o operário.

Fritz calou-se, mas as diversas circunstâncias dessa aparição gravaram-lhe fortemente em seu espírito.

Algum tempo depois, ele vê chegar seu compatriota Schmidt, trazendo uma criança nos braços e, então, em espírito, lembra a visita de Lota e antes mesmo que ele tivesse aberto a boca, disse-lhe:

— Meu pobre amigo, já sei de tudo; tua mulher morreu durante a travessia e antes de morrer veio apresentar-me sua filha para que eu velasse por ela. Eis a data e a hora.

Eram exatamente o dia e a hora consignados por Schmidt a bordo do navio.

Fonte: O espiritismo e a ciência, de Gabriel Delanne.

Para explicar esse fato, os espíritas admitem que o perispírito ou invólucro fluídico da alma pode, em certas circunstâncias, separar-se do corpo, ao qual ele fica, entretanto, retido por um cordão fluídico. O perispírito reproduz a forma do indivíduo, porque é a ele que devemos a conservação do nosso tipo material e a constituição física do nosso corpo. A alma, nesse caso, goza de parte das faculdades que possui quando está inteiramente desprendida da matéria; assim se explica a rapidez do deslocamento da alsaciana. O estado doentio ou a síncope não são sempre necessários ao desdobramento.