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A participação de Canuto na preservação da memória espírita

Por Rita Cirne*


Hoje é possível termos acesso a livros e a documentos raros escritos por Allan Kardec que nos revelam detalhes sobre os primórdios do espiritismo, sobre as lutas e dúvidas que o envolveram e os diálogos que teve com os espíritos. Se temos hoje a facilidade de chegar a esse acervo, através de uma plataforma digital, a do Projeto Allan Kardec – http://projetokardec.ufjf.br –, ativa desde 2020, muito devemos ao empenho de instituições como a Fundação Espírita André Luiz (FEAL) e a Universidade Federal de Juiz de Fora. Pesquisadores e tradutores trabalham para transcrever, traduzir e digitalizar esse material, disponibilizado gratuitamente.

Mas esse trabalho de preservação do legado de Kardec foi possível, entre outros colaboradores, a partir da atuação de Silvino Canuto Abreu, advogado, médico e farmacêutico que foi, acima de tudo, um grande pesquisador da doutrina espírita.

Ele reuniu uma biblioteca com mais de 10 mil volumes, sendo muitos de obras raras, algumas do século 16, e livros espíritas e espiritualistas do século 19. Canuto Abreu tomou como meta de vida viajar pelo mundo para resgatar a história do espiritismo, pesquisando em bibliotecas como do Museu Britânico, do Vaticano e na Biblioteca Nacional de Paris.

Começou em 1920, em Paris, e conversou com pessoas que tinham convivido com Kardec, como Léon Denis.1 A partir desses relatos, ele conseguiu saber o paradeiro de documentos inéditos de Kardec. Voltou a Paris durante a Segunda Guerra Mundial, quando recebeu a missão de guardar documentos históricos de Kardec que estavam em poder da Sociedade Espírita de Paris e evitar que as obras fossem parar nas mãos de nazistas.

Mas todo esse material que ele recebeu, quase oitocentos manuscritos de Allan Kardec, com cartas, pensamentos, preces e mensagens dos espíritos, não foi divulgado imediatamente. Para decidir como iniciar essa divulgação, em 1958, Canuto Abreu procurou em Chico Xavier, que era seu amigo, uma orientação dos bons espíritos. A resposta foi de Emmanuel, que, em uma longa mensagem, sugeriu que ele dedicasse ao menos duas horas por dia para transcrever, traduzir e produzir artigos contextualizando as cartas para que pudessem chegar ao público. Segundo o site da FEAL, essa missão foi transmitida à sua filha e depois ao neto Lian Abreu Duarte. Por fim, a família confiou essa tarefa à FEAL, por meio do Centro de Documentação e Obras Raras.

Uma paixão por estudos bíblicos

Canuto Abreu não pôde ver a sua obra concluída, mas foi o responsável pelas bases desse trabalho que correspondem à própria expectativa de Kardec, que na Revista Espírita de 1862 afirmou que tinha documentos que estavam ao abrigo de qualquer eventualidade. Canuto foi não só um dos guardiões desses documentos como também contribuiu de várias formas para a divulgação da doutrina espírita no Brasil.

Nascido em uma família espírita de Taubaté, SP, em 19 de janeiro de 1892, formou-se em farmácia aos 17 anos, pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, na qual também concluiu, em 1923, o curso de medicina. Bacharelou-se também em direito pela antiga Escola de Ciências Jurídicas e Sociais, depois Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro. No campo da medicina, escreveu muitos artigos, publicados entre 1925 e 1930, com ideias sobre medicina social. Foi fundador e presidente da Associação Paulista de Homeopatia.

Empolgado pelos estudos bíblicos, escreveu uma versão direta dos evangelhos gregos tomando por base o mais antigo manuscrito do Novo Testamento até aquela época. Em 1936, escreveu uma série de artigos sobre a atuação de Bezerra de Menezes no movimento espírita brasileiro. Esse material foi divulgado em 1950, no 2º Congresso Espírita Brasileiro, e em 1981 foi editado como livro, pela Federação Espírita do Estado de São Paulo, na comemoração do sesquicentenário do nascimento de Bezerra de Menezes.

Em 1953, ele começou a publicar pelo jornal Unificação – órgão da USE do Estado de São Paulo – uma série de artigos que compuseram, depois, O livro dos espíritos e sua tradição histórica e lendária. Ele também integrou a comissão responsável pela organização das festividades do centenário do lançamento de O livro dos espíritos, em 1957, quando publicou a versão bilingue da obra, em francês e em português.

Mensagem aos espíritas

Canuto Abreu faleceu em 2 de maio de 1980. Mas enviou uma mensagem através da mediunidade de Raul Teixeira, nas comemorações do bicentenário de nascimento de Allan Kardec, realizadas em Paris, em 2004. Depois de elogiar Alan Kardec, que “veio ao planeta para representar no campo físico a equipe luminosa do Espírito da Verdade”, Canuto perguntou: “Quantos que ainda supõem que é possível ser espírita sem ajustar a própria existência aos preceitos da codificação, e que se enganam com essa suposição? Quantos que ainda creem na ventura post-mortem longe dos esforços para a superação de limitações e obstáculos encontrados nas vias mundanas, e que se frustram no além?”

  

1-     https://correio.news/bau-de-memorias/canuto-abreu-visita-leon-denis-e-descreve-sua-emocao?rq=canuto

2-     Canuto Abreu. Subsídios para a história do espiritismo no Brasil até o ano de 1895 (Bezerra de Menezes), Feesp.

 

*Jornalista, colaboradora do Grupo Espírita Batuíra, em São Paulo, e do jornal Valor Econômico.