A vida sempre nos dá o melhor

Por Nancy Puhlmann Di Girolamo 

No admirável casarão branco de tradicional alameda paulistana havia, naquela manhã, um ambiente de alegria expectante. 

O casal idoso, de ilustre nome e vultosos bens, aguardava o nascimento do primeiro neto. Seu único filho finalmente ia ser pai! 

A nora, moça de fina educação, sensível e alegre, já estava na maternidade. 

— Certamente seria um menino, pensava o pai, andando pelos corredores do grande hospital. Haveria de expandir os altos negócios iniciados há mais de meio século pelos tetravós. 

Nascera uma menina. Três horas depois, a mãe já estava repousada e as primeiras visitas, as primeiras flores e cartões finalmente decorados começaram a chegar. 

Só então o pai ficou sabendo que sua filha era uma criança excepcional. Nascera com síndrome de Down. Cresceria diferente das outras crianças. Talvez viesse a falar, a andar, a entender as coisas, mas sempre com dificuldades.  

— Não! Não! — gritava o pai. Minha filha, não. Não há nenhum caso na família. 

O médico, experimentado e condoído, procurou explicar: 

— Não se trata de síndrome hereditária. É apenas genética. Pode acontecer com  qualquer um. 

— Mas, por que justamente eu? Responda-me, doutor. 

Foi o começo de um grande drama. Na verdade, o primeiro sofrimento íntimo daquele homem, para quem as mínimas vontades tinham sido sempre satisfeitas. 

O médico lhe aconselhou a dar o quanto antes a notícia à mãe e aos familiares. 

— Não. Nunca! Ninguém irá saber. Essa criança nem sairá conosco da maternidade. Direi que morreu. É isso! Nasceu morta! 

Doutor! O senhor vai dar essa criança para quem quiser! Pagarei quanto for preciso... 

— Vamos agir com calma. Primeiro, essa criança precisa ser registrada... 

— Jamais com meu nome! 

Apesar de muita relutância, o pai concordou em explicar a situação à mãe da criança — só a ela —, desde que o médico providenciasse a internação definitiva num credenciado estabelecimento na Suíça. Ele pagaria os custos. Quanto ao nome...

— Já sei, respondeu o médico. Vamos chamá-la... Maria de Jesus. 

— Sim, sim... Filha de pais desconhecidos. 

Na mente da infeliz mãe, o quadro fixo da imagem, tal como exposta pelo marido. Para ela, tinha dado à luz um monstro! 

— Sim. A Suíça é a nossa solução. 

Seis anos se passaram. O casal não teve outros filhos. Sua riqueza material crescera, mas também haviam adquirido ricas experiências com os sofrimentos. Uma doença inexplicável debilitava a saúde da esposa, que passava seus dias entre clínicas, farmácias e psicanalistas. 

Em vão, viagens pelo estrangeiro, sempre se evitando a Europa. O lar era agora um triste casarão.

O ano de 1974, notícias sobre a reabilitação de crianças excepcionais eram assuntos frequentes nos jornais.

As campanhas das associações e as promoções da Instituição Beneficente Nosso Lar [ que trabalha com reabilitação para pessoas com deficiências] chegaram até o casarão da tradicional alameda, com farto material de divulgação. 

Envolvidos por amizades sociais, viram-se forçados, de certo modo, a colaborar.

 Na verdade, já não eram os mesmos. Preconceitos antigos tinham se quebrado. As consciências se comprimiam dentro do peito. No sentimento, imensas saudades vagas. 

Tomaram um dia uma solene resolução. 

Voltam ao hospital e procuram pelo conceituado pediatra. 

Três dias depois, estavam na Suíça. No pátio destinado à recreação, várias crianças brincam. Correm. Pulam corda. Falam. Riem. 

— Onde está Maria de Jesus? Viemos adotá-la. — Meu Deus! Que linda menina! O casal estava chorando, ao impacto da surpresa. Realmente, a menina era extremamente graciosa. Pele delicada, sorriso cativante, olhos amendoados, nariz bem feito, orelhas um pouco pequenas entre longos cabelos claros. Gestos afetuosos. Dedos ágeis.  

— Mas é linda! Repetia entre soluços a mãe que não se desfizera do quadro pintado pelo marido na maternidade. 

A menininha graciosa não entendia o que eles falavam em língua estranha. Abraçou-os como se já os esperasse, e observou-os curiosa. Era a primeira vez que via gente grande chorando. 

O casal ficou duas semanas naquela instituição, aprendendo tudo o que havia de mais atualizado sobre habilitação.

Quando regressaram a São Paulo com a filha adotiva, houve regozijo de todos. Parentes e amigos se reuniram. Elogios se multiplicavam. 

— Que bondade. Adotarem uma criança excepcional! Darem-lhe o próprio nome! 

O casarão da tradicional alameda paulistana se tornou um centro de encontros afetuosos. 

Velocípedes e cavalinhos de pau, bonecas e joguinhos se espalham por todos os cômodos, junto aos risos infantis de Maria de Jesus. 

Referência:

As aves feridas na Terra voam, Nancy Puhlmann Di Girolamo. Ed. Lake.