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Quem foi Jesus? O maior protagonista da história

Por Eliana Haddad

Filósofo, escritor e ator, doutorando em literatura pela Universidade da Argentina, André Marinho é autor do livro Quem foi Jesus? – Uma análise histórica e ecumênica, pela Editora Lachâtre. A obra foi publicada em 2018, após dez anos de muita pesquisa.

Desde a adolescência, interessou-se pela figura de Jesus, o que o motivou durante vários anos a realizar estudos semanais com Suzana Mousinho, no Rio de Janeiro. Mais tarde, teve como mestre o teólogo suíço Hans Küng (1928-2021), da Universidade de Tübingen, na Alemanha, que se dedicou à defesa do diálogo ecumênico e à revisão dos dogmas católicos. 

Atualmente, residindo em Buenos Aires, Marinho concedeu essa entrevista exclusiva ao Correio Fraterno.

O que o levou a escrever um livro sobre Jesus? 

Aos 16 anos, comecei a ler tudo o que o espiritismo informava sobre Jesus, desde Kardec, passando pelos autores consagrados. Depois, me interessou conhecer um Jesus fora do ambiente espírita. Eu queria conhecer outras interpretações, para poder compará-las. Aos 18 anos, comecei a estudar teologia por minha conta, e foi um mundo imenso, porque lidar com Santo Agostinho, com Tomás de Aquino, com Orígenes, para citar apenas alguns, é um intenso desafio intelectual. Aos 21 anos, conheci, por correspondência, o grande teólogo católico Hans Küng, uma das pessoas mais influentes na teologia do século 20. Com ele e suas obras, aprendi muitíssimo; posso dizer que ele foi um mestre. Mas também Suzana Maia Mousinho, na casa de quem Chico Xavier se hospedou por décadas, no Rio de Janeiro, debatia comigo essas leituras, esses estudos, três vezes por semana. Foi outra grande influência. Depois, me dediquei a estudar a volumosa historiografia sobre o tema e, por fim, os filósofos ateus. Aos meus 28 anos, pensei que seria oportuno escrever um livro e o fiz ao longo de nove anos. 

É possível estudar Jesus de modo ecumênico? 

Ecumênico significa que vários pontos de vista e perspectivas culturais merecem tanto o respeito quanto a possibilidade de se aprender com elas. Nesse sentido, qualquer interpretação sobre Jesus que seja baseada em um único aspecto é empobrecida; por que usar apenas a história para estudá-lo? Ou apenas a filosofia? Ou apenas as diversas concepções dentro do catolicismo, ou do protestantismo ou das igrejas ortodoxas? Tudo sobre Jesus pode interessar. Posso dizer que aprendi sobre Jesus com Nietzsche tanto quanto aprendi com algum bom historiador ou com um bom estudioso espírita. Qualquer visão que se acredite exclusivista de Jesus  não condiz com Jesus, que foi uma mente totalmente contra qualquer ortodoxia. 

Como podemos analisar historicamente a vinda de Jesus à Terra? 

Não se pode analisar a vinda de Jesus à Terra historicamente a não ser pelos métodos da história. Isso quer dizer que, historicamente, ele foi mais um ser humano que existiu, nascido da mãe e do pai, que viveu num contexto social, que tinha preferências alimentares, que tinha gostos pessoais, que se levasse um tombo machucaria o joelho, e que, como alguns raríssimos seres humanos, foi capaz de mudar o curso do mundo, tal como Sócrates, como Sidarta Gautama, o Buda, por exemplo. Quem discorda desse aspecto, estará entrando em outro terreno, o da teologia, ainda que nem sempre usem esse nome. Pensar que Jesus veio à Terra porque Deus o enviou, porque ele veio concretizar uma revelação, para salvar o mundo etc., é pensar teologicamente. Não há problema algum em pensar sob essas perspectivas. Apenas estou dizendo que muitas pessoas pensam que estão fazendo um discurso histórico sobre Jesus e estão, na verdade, fazendo um discurso religioso. Convém saber as diferenças, porque tanto o Jesus das teologias quanto o Jesus da história têm sido apropriados para fins que seguramente estão contra ao que ele viveu na Terra. 

O que é necessário para melhor compreender o Evangelho de Jesus? 

Não sei te responder, porque se trata de um tema da psique humana e não um tema exclusivo do evangelho. É a grande pergunta que os maiores pensadores se fizeram, desde Dostoiévski até Santo Agostinho. Eu poderia responder com algumas frases feitas, com jargões espíritas ou católicos, mas tudo isso seria uma supersimplificação. Um exemplo: Dia desses estava estudando os inúmeros conceitos sobre o ‘Mal’, desde Aristóteles até Hannah Arendt. O debate é complexo. Então, um conhecido religioso me disse que iria me explicar o que era o mal, e começou a me falar meia dúzia de frases feitas. Pensei: Ele não faz ideia dos inúmeros debates sobre o mal, analisados pelos mais importantes pensadores do mundo ao longo de milênios. Eu sigo por essa linha, o que eu não sei, prefiro me calar. 

Depois de tantos estudos, como você analisa o Reino de Deus anunciado por Jesus? 

Respondo pelo caminho histórico. Reino de Deus é uma expressão política. Lembremos que Jesus nasceu no que os judeus do século I consideravam a terra prometida, terra como espaço físico, territorial, geográfico. Jesus, ao falar de Reino de Deus, usa a palavra reino, que é uma monarquia governada por um rei. Ora, esse rei é Deus, como está explícito em inúmeras parábolas (quase todas as parábolas são sobre o Reino de Deus). E nesse reino existem súditos, que são todos os seres criados por Deus. Então, Reino de Deus opõe-se a reino dos seres humanos. Reino de Deus é, portanto, o dia, no aspecto temporal, mas também o espaço, no aspecto territorial, em que a humanidade vai reconhecer Deus como o rei e vai entender que reino é esse. É uma metáfora que significa basicamente o dia em que o ser humano deixará de querer ser Deus. 

É possível entender Jesus fora de seu contexto histórico? 

Claro que é possível. Entendê-lo pela experiência de fé, por exemplo; foi o que aconteceu ao longo de dezenas de séculos. Mas, no mundo de hoje, em que temos mais evidente os usos políticos e ideológicos que se fez de Jesus, faz parte, de nossa época, usarmos dos conhecimentos da história para não cairmos em fundamentalismos religiosos, algo tão típico dos ambientes religiosos a partir do século 19, justamente, a partir do momento em que a história das religiões se tornou um tema tão estudado. Mas, particularmente, acho que só o estudo da história não conduz a uma experiência completa, em se falando de Jesus. É um pouco como estudar as partituras de Mozart e não as ouvir. Jesus ganha dimensão quando a pessoa experimenta seus conceitos, sua vida. Nesse sentido, quanto mais a pessoa conhece os evangelhos e, no caso específico, a história de Jesus, mais ela pode ‘experimentar’ Jesus no mundo contemporâneo. 

Jesus falou em reencarnação, em comunicação espiritual, em vida após a morte. Como isso tudo se perdeu na história? 

Você perguntou muitas coisas muito complexas, vou ficar só na reencarnação: Jesus era reencarnacionista? Te respondo como um historiador, não estou respondendo pela fé... Veja, seria muito fácil eu dizer que sim. Mas só os autores espíritas enxergaram que Jesus era reencarnacionista? E todos os historiadores? E os tradutores do mundo todo, ao longo de vinte e um séculos? E as maiores inteligências, como Santo Agostinho, Tomás de Aquino? Todos estavam e estão cegos para essa perspectiva? Todos estavam e estão enviesados no olhar, menos os espíritas? É plausível se fazer essas perguntas. Acho ao menos honesto desconfiarmos sempre dos discursos, das interpretações, e, nesse sentido, creio que Allan Kardec concordaria comigo. Então, feitas essas ressalvas, que me parece uma obrigação, eu me sinto mais à vontade para responder. É possível. Havia na época de Jesus, sobretudo em determinados grupos de fariseus a ideia do Gilgul, um termo hebraico que poderia ser traduzido por reencarnação. Poderia, porque reencarnação é um conceito latino; metempsicose grego; e gilgul hebraico. Não significam exatamente a mesma coisa, mas, para simplificar, dizemos que é a mesma coisa. O karaísmo, uma das vertentes do judaísmo pós-talmúdico, um dos primórdios da Cabala, era reencarnacionista. A passagem de João 3:3 ou outras passagens semelhantes, podem ser interpretadas como reencarnacionistas, mas, note, estou falando de interpretação, e o ato de interpretar envolve muitas questões. Eu te respondo: é possível. Agora, saiba que dentro desse possível existe o debate: e é provável? Então, se formos pela história, teremos que debater muito, nos questionarmos muito. Mas se formos pela fé, a depender da fé da pessoa, pode ser um sim ou um não. Creio que falta aos estudiosos espíritas enfrentarem mais esse tema. Sem colocar a culpa na tradução, no papa x e y, ou na Igreja. Se alguém quer defender essa tese, o que é legítimo, que enfrente os estudiosos do tema e investigue. Afinal, isso é dialogar com a ciência, no caso, a história. 

Jesus mostra uma compreensão muito profunda das limitações humanas, uma visão de ternura e misericórdia com as nossas fraquezas. Para cada um, uma resposta. Como podemos fazer essa aproximação individual com ele? 

Jesus não dramatizava nada nem ninguém: é um hiper-realista. Não acreditava num mundo colorido de “paz e amor” e conhecia, profundamente, as mazelas do ser humano, a radicalidade do mal. Enfrenta face-a-face o real, fosse no seu cotidiano, fosse na hora da cruz. Creio que é desse conhecimento profundo que emerge sua compaixão. Jamais age como em um gesto caritativo. É superior a isso: o entendimento da realidade humana o leva ao ápice da ternura.