Memórias de vida passada na infância

Embora haja mais de dois mil casos catalogados de crianças que alegam ter memórias de vida passada, não existem muitos estudos que mostrem como elas evoluem ao longo da vida. Este assunto foi o que levou o médico de família e comunidade Eric Vinícius Ávila Pires a desenvolver a sua tese de mestrado, localizando e entrevistando adultos que, quando crianças, passaram por essas experiências e foram na época investigadas por pesquisadores. A defesa da tese ocorreu em fevereiro, através do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde, da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG, e é sobre ela que Eric Pires fala nesta entrevista ao Correio Fraterno.

Por Eliana Haddad

Por que você teve interesse para estudar o tema na academia?

No início do curso de medicina, questionei fortemente as crenças que eu trazia e participei de um simpósio sobre a relação entre mente e cérebro. Ali surgiu o interesse de um dia realizar pesquisas envolvendo esse tema que me intrigava desde a adolescência, quando ‘perdi’ duas familiares próximas num mesmo ano. Ao conhecer o trabalho do psiquiatra Ian Stevenson, fiquei encantado com seu rigor científico e abertura mental. Isso me levou a escolher esse campo de investigação no mestrado, pensando num estudo que avaliasse adultos que apresentaram as supostas memórias na infância e que já tivessem sido investigados no passado. Meu orientador, Alexander Moreira-Almeida, propôs que eu conhecesse melhor as pesquisas do Hernani Guimarães Andrade e fizesse um estudo de seguimento com as pessoas que ele investigou.

 Como você realizou cientificamente essa investigação? Quantos casos?

Quase 50 anos depois dos registros iniciais feitos por Andrade sobre pessoas que alegaram memórias de vida passada na infância, investiguei a persistência dessas memórias, de comportamentos e de marcas de nascença; a condição atual de saúde mental, qualidade de vida e religiosidade dessas pessoas; as interpretações relacionadas ao fenômeno; e as percepções de impacto em suas vidas e na de seus familiares. Após mapear os casos, busquei por essas pessoas por meio do Google e redes sociais. As entrevistas foram guiadas a partir de um questionário com perguntas fechadas e abertas. Ao todo, 18 sujeitos e 18 familiares foram entrevistados, a maioria presencialmente e no sudeste do Brasil. A Society for Psychical Research, de Londres, financiou o projeto.

Pode relatar algum caso?

Um garoto que, aos 4 anos de idade, relatou ter um nome diferente do seu e disse que tinha sido curandeiro e ajudado muitas pessoas. Contou aos familiares o nome de um suposto irmão e insistiu para irem até onde ele morava. Revelou o ano em que teria morrido, picado por cobra. Disse que, antes de falecer, pediu ao irmão para guardar a imagem de uma santa, pois voltaria para buscá-la. Os pais levaram a criança até a cidade vizinha e buscaram informações sobre o suposto irmão. Chegando na rua para onde os pais foram orientados a ir, a criança identificou a casa e reconheceu aquele que dizia ser seu irmão. Foi ao encontro de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida e afirmou ter ido buscar o objeto que lhe pertencia. O menino ainda perguntou sobre uma cisterna que teria existido naquele local, ao que o suposto irmão respondeu que o poço havia sido aterrado. Hoje, o menino já tem quase 50 anos e ainda possui algumas dessas lembranças relacionadas à suposta vida passada.

Quais as implicações clínicas observadas nos episódios de memória de vidas passadas?

Parte das crianças que vivenciam o fenômeno apresenta fobias específicas (medos intensos de algo, presentes em 35% dos casos, podendo se manter até a idade adulta), filias (interesses fortes por algo), aversões e habilidades precoces, passíveis de correlação com a alegada personalidade anterior. Sintomas compatíveis com estresse pós-traumático também podem estar presentes, além de marcas de nascença e malformações congênitas (algumas delas passíveis de correlação com o mecanismo de morte da suposta personalidade anterior). O estudo desse fenômeno, além de poder contribuir na investigação da relação mente-cérebro, tem o potencial de abrir portas para entendermos melhor a etiologia e o mecanismo de manifestação de algumas fobias, filias e aversões; elucidar fatores que possam influenciar a identidade de gênero; e permitir melhor compreensão sobre o desenvolvimento infantil, marcas de nascença e malformações congênitas.

 Por que essas lembranças normalmente desaparecem depois da infância?

Apesar de haver uma tendência de desaparecimento dessas memórias, um terço da nossa amostra disse ainda ter memórias mesmo após meio século, mas houve uma redução de 70% delas ao comparar com as falas da infância. Há hipóteses para explicar a tendência ao desaparecimento das memórias. A partir do início da idade escolar, a criança teria vários outros estímulos, situando-se mais no ‘presente’, reduzindo as falas sobre o assunto e, consequentemente, também reduzindo essas memórias. Existe a possibilidade de que quanto mais vinculação emocional a essas memórias ao longo do tempo e quanto mais espaço para se falar sobre elas, mais as memórias tendem a perpetuar.

A memória de vidas passadas está ligada à mediunidade?

A mediunidade é uma das hipóteses explicativas propostas para o fenômeno. A criança poderia apresentar comportamentos sob influência do falecido e fazer afirmações direcionadas por esse indivíduo já morto. No entanto, a maior parte dos casos investigados não apresentam outros elementos que corroboram a presença desse tipo de habilidade nas crianças. Também não há estudos que demonstrem maior proporção de pessoas alegadamente médiuns entre aquelas que alegam memórias de vida passada, em comparação com quem não alega. Em minha pesquisa, fiz esse tipo de investigação, mas não encontrei nenhum indício de correlação.

O espiritismo ensina sobre a razão do esquecimento de vidas passadas. Como você analisa esses casos? Qual objetivo teriam essas ‘exceções’?

Assumindo a hipótese de determinados casos terem como explicação a reencarnação, a ciência não teria ainda uma explicação minuciosa do porquê umas crianças apresentariam lembranças e outras não. No entanto, considerando que a maior parte dos casos envolve alegadas memórias relacionadas a mortes traumáticas (causas não naturais), pesquisadores da área acreditam que o tipo de morte pode ter uma influência importante na determinação das possíveis lembranças. Essas mortes violentas teriam a capacidade de desencadear um maior impacto mental, permitindo uma fixação desses eventos na mente; as memórias se manifestariam a partir de algum fator que atuasse como gatilho. Associado a isso, a ideia de haver ‘negócios inacabados’ (fatores que manteriam um sujeito fortemente vinculado emocionalmente à suposta vida anterior) é também uma hipótese ventilada para a presença dessas memórias.

As evidências comprovadas das lembranças de vidas passadas confirmariam a tese da reencarnação e, portanto, da existência do espírito imortal, que guarda em sua essência essas experiências. O que diz a academia sobre isso?

Não há na academia um consenso de que as pesquisas existentes sejam capazes de atestar a reencarnação e, consequentemente, a sobrevivência da consciência (mente, espírito, ou outro nome que se pretenda dar) após a morte. Há casos muito intrigantes, que, na visão de alguns, são suficientes para evidenciar essas hipóteses como realidade. No entanto, toda pesquisa é sujeita a vieses e há quem considere que os possíveis vieses desse tipo de estudo impediriam a conclusão segura em favor da sobrevivência e da existência da reencarnação, partindo da ideia de que afirmações extraordinárias demandariam evidências extraordinárias. É certo que concluir pela sobrevivência da mente e pela existência da reencarnação implicaria a construção de um novo paradigma, com inúmeros desdobramentos para a ciência. Há um número muito importante de casos investigados, especialmente pelo Ian Stevenson, que merecem ser submetidos a um crivo detalhado para verificar se resistem às principais críticas relacionadas ao método de investigação, buscando explicitar os possíveis vieses e, a partir daí, avaliar se as hipóteses ditas convencionais (que não necessitam do componente transcendental) são capazes de explicar em totalidade o fenômeno observado. Este é o próximo passo de pesquisa que pretendo dar, podendo impactar essa discussão.

Desde as pesquisas de Ian Stevenson, surgiu esse campo novo de investigação científica. Como está, atualmente, o interesse acadêmico nesse assunto?

Embora o Stevenson tenha influenciado muitos pesquisadores e contribuído decisivamente na formação de pessoas capazes de investigar academicamente esse fenômeno, houve uma redução no número de pesquisas e de publicações nesse tema nos últimos 10 anos. Ainda é escassa a formação de novos pesquisadores com bagagem acadêmica sólida para investigar esse fenômeno de maneira minuciosa e com rigor, mas há novos pesquisadores brasileiros que recentemente iniciaram estudos nesse campo e têm potencial de trazer contribuições.

Como é feita a certificação de que são lembranças de vidas passadas e não fantasias infantis ou percepções extrassensoriais?

Meu trabalho não teve por finalidade discutir a natureza ontológica do fenômeno. No entanto, o início da investigação desses casos passa pela tentativa de verificar se as afirmações feitas pelas crianças são correspondentes, de maneira específica, com fatos da vida de alguém já falecido. Para se considerar a hipótese da reencarnação como a mais forte, seria importante que, no caso investigado, ficasse clara a impossibilidade de a criança ter tido acesso às informações específicas sobre a pessoa falecida por vias ‘normais’ e não apresentasse habilidades que fossem compatíveis com a hipótese de uma percepção extrassensorial.

Que orientação você daria para os pais que estejam passando por experiências similares com suas crianças?

O desafio pode ser grande no período em que as crianças alegam memórias de vida passada, mas é importante acolher a sua criança, sem repressão, sem reforçar nela a reprodução dos comportamentos da suposta personalidade anterior, sem superproteger devido ao medo de algo ruim acontecer e ajudá-la a se situar no presente. Por volta dos sete anos de idade, as afirmações tendem a já ter diminuído, e a maior parte dessas crianças se tornam adultos com boa saúde mental, boa qualidade de vida e com a percepção de que essas memórias não geraram impactos em suas vidas.