Sobre o espírito de sistema

O que significa a expressão “espírito de sistema” a que Kardec se refere em suas obras? - Alexandre, por e-mail.

Por Marcelo Henrique*

A expressão “espírito de sistema” sempre surge em discussões de grupos de estudos espíritas, especialmente em fóruns livres de debates, em ambientes presenciais ou virtuais.

O conceito estrutural da expressão é a atitude de reduzir tudo a sistema, um conjunto de preceitos organizados, para atuar com juízo preconcebido. Também pode ser enquadrado como a atitude de (cega) obediência à ideia de um filósofo, de um religioso, de um determinado pensador, na intenção de tudo condicionar, em termos interpretativos, a uma situação preestabelecida, estanque, deixando quase nula margem para a liberdade, o livre-arbítrio.

O espírito de sistema, portanto, levado a cabo pelos adeptos do espiritismo, resultaria em dogmatismo e pretensa superioridade sobre outras crenças ou filosofias, não permitindo que cada um construa em torno de si ambientes mais arejados e dispostos à progressividade das ideias, tal como asseverou o professor Rivail.

De início, havia muito de “espírito de sistema”, sobretudo cristão, católico-protestante, no homem Rivail, em face de suas convicções, formação e personalidade, naquela e em encarnações anteriores. Mas, mesmo assim, já como Kardec, ele foi se libertando de tais amarras. Por exemplo, em janeiro de 1866, na Revue Spirite, referindo-se à questão da prece, afirmou: 

“Se o espiritismo proclama a sua utilidade, não é por espírito de sistema, mas porque a observação permitiu constatar a sua eficácia e seu modo de ação. Desde que, pelas leis dos fluidos, compreendemos o poder do pensamento, também compreendemos o da prece, que é, também ela, um pensamento dirigido para um fim determinado”.

Essa não foi a primeira vez em que Kardec validou a tese não sistêmica do espiritismo. Em O livro dos espíritos, nos “Prolegômenos”, ele cita que a obra livro seria “o repositório de seus ensinos. Foi escrito por ordem e mediante ditado de espíritos superiores, para estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional, isenta dos preconceitos do espírito de sistema. Nada contém que não seja a expressão do pensamento deles e que não tenha sido por eles examinado”.

Depois, em O livro dos médiuns, explicou no capítulo 14: “A experiência demonstra que os sábios, tanto quanto os demais homens, sobretudo os desencarnados de pouco tempo, ainda se acham sob o império dos preconceitos da vida corpórea; eles não se despojam imediatamente do espírito de sistema. Pode, pois, acontecer que, sob a influência das ideias que esposaram em vida e das quais fizeram para si um título de glória, vejam com menos clareza do que supomos. Não apresentamos este princípio como regra; longe disso. Dizemos apenas que o fato se dá e que, por conseguinte, a ciência humana que eles possuem não constitui sempre uma prova da sua infalibilidade, como espíritos”.

Kardec, assim, reafirma o absoluto distanciamento da doutrina dos espíritos com qualquer espírito de sistema e adverte para a questão da interpretação lógico-racional acerca das afirmações contidas nos diálogos com as Inteligências Invisíveis. 

Importa, pois, para a doutrina dos espíritos os princípios, decorrentes do processo dedutivo de investigação de Kardec, que se mantém inalterados e permanentes, sem reparos, até hoje. Mas não se pode esquecer que o espiritismo, filosofia dinâmica, aberta e progressiva, jamais esteve encerrada em um molde sistemático e nem nas tendências exclusivas de dadas correntes de pensamento ou expoentes de determinada ideia ou doutrina. Kardec jamais escreveu sob a influência de ideias preconcebidas ou qualquer espírito de sistema, preferindo afastar hipóteses a acatar qualquer delas, e só adotava uma hipótese quando ela era capaz de resolver todas as dificuldades da questão, para, só assim, formular a lei que regia o fenômeno.


*Marcelo Henrique é escritor e articulista, coordenador do ECK – Espiritismo com Kardec: www.comkardec.net.br